O Místico Orfeão Sónico de Um Corpo Estranho & Saturnia

Os projectos Saturnia e Um Corpo Estranho uniram forças e lançaram em conjunto “O Místico Orfeão Sónico de Um Corpo Estranho e Saturnia”. Um disco Sgt Pepperesco, José Cidesco e pesadesco. Chapeau!

«Que não fique espaço para dúvidas: trata-se de um disco de rock onde as guitarras de Um Corpo Estranho se deixaram contaminar pelo universo psicadélico de Saturnia!», afirmava a nota de imprensa sobre este trabalho. A conjunção entre o projecto de Luís Simões e o duo composto por Pedro Franco e João Mota poderia ser, per se, algo que alude a uma conspiração cósmica e o dramatismo afecto ao nome deste disco não será por acaso. Sendo Setúbal a residência de ambos os projectos, decidiram que o disco iria ter a mística do Rio Sado, o espírito lírico de Luísa Todi e o canto trágico das Sadinas que inspiraram Bocage. A tripla conta com a participação dos bateristas Samuel Palitos (Censurados, A Naifa, Ladrões do Tempo, GNR) e Filipe Caeiro (Awaiting the Vultures, Daniel Catarino) e da viola campaniça de Tozé Bexiga (Projecto RAIA:Planeta Campaniça). Produzido por Sérgio Mendes e editado pela Malafamado Records, a parte gráfica do disco ficou a cargo do ilustrador Paulo Buchinho.

A abertura, “Desafinação”, e “A Torre” remetem-nos para uma fusão sónica com a trilogia de discos em que Fausto musicou os Descobrimentos – os míticos “Por este Rio Acima”, “Crónicas da Terra Ardente” e “Em Busca das Montanhas Azuis”, uma narrativa que é, simultaneamente, a de um certo grupo de portugueses que encontrou a fortuna e a tragédia ao longo dos séculos e a nossa história enquanto nação, conquanto ela é, até hoje, inseparável do facto de um dia este pequeno reino encravado à beira mar ter decidido navegar, comerciar, namorar, guerrear e evangelizar-se com outros povos e gentes. E assim…

“A Velha Carruagem” transporta-nos para o psych rock dos texanos Black Angels e para os mantras que Simões evoca habitualmente em Saturnia. Depois, “Sete de Bastões” acrescenta a essas sensações o desert rock, como foi idealizado por Homme nos Kyuss e nos QOTSA. Esta excessiva referenciação não pretende, de modo algum, diminuir o feito dos músicos que fizeram o disco, mas permitir um certo mapeamento estético ao leitor/ouvinte. De qualquer forma, se leram até aqui, certamente intuem que o calibre deste disco não é coisa pouca e que vale cada uma das gramas da sua prensagem em vinil.

Quando se ouve mais claramente os drones de sitar de Simões, em “Para Lá Do Fim Do Mundo”, poder-se-ia pensar que, após vibrante sequência de abertura, os temas entrariam numa certa espiral de indigência. Mas sucede, precisamente, o oposto. A força das guitarras, o preenchimento harmónico, a calorosa linha vocal e o percussionismo com algo do folclore português, revelam-nos uma malha para figurar entre as mais ilustres do cânone do rock nacional. Abre ainda caminho a um tema onde as idiossincrasias de Um Corpo Estranho se fazem notar mais, “A Força” – tema de riff impactante e frenética sincopagem a fechar a primeira parte do disco.

“Afinação” é a abertura da segunda parte, fazendo ponte para a estética de um western etéreo, de um Morricone adepto de kraut, de “Ermita”. Parece predominar a aura de Saturnia neste tema e em “Covil”, tema maior do disco, que abre como uma descida, num exercício necessariamente órfico, às entranhas uterinas da terra que acabarão por desaguar, em ciclo de renascimento, na “Fonte Sado” – um andamento e corpo musical bem Grails, para parar com as referências. É absolutamente envolvente esta viagem…

Não a diria conceptual, afinal a criação é tantas vezes feita seguindo o instinto, agrupando-se um rol de associações que a mente consciente mal consegue enformar. É somente a posteriori que os criadores, artista e o intérprete (que interpretar também é criar) olham para a obra lhe apreendem (ou projectam) um sentido, uma temática, um subtexto. Seja como for, “O Místico Orfeão Sónico de Um Corpo Estranho e Saturnia”, é um dos grandes discos do ano de 2021 (mais um para Simões) e um dos melhores de sempre na música criada dentro destas fronteiras.