Sleep, A Rara Versão Não Editada de Dopesmoker e a História dos Seus Amps

Um álbum com um dos melhores paredões de guitarra e baixo de sempre, a história de “Dopesmoker” começa nos primeiros momentos do pós-guerra, nas traseiras de uma mercearia. Aí nasceu uma marca ensombrada e uma das maiores marcas de amplificação do mundo. Aí surgiu o poder de válvulas que tornaria o controverso álbum dos Sleep numa obra-prima para colocar ao lado de “Master of Reality”.

Os californianos Sleep disponibilizaram no seu Bandcamp oficial a versão não editada/recortada do clássico “Dopesmoker”, originalmente lançada a 20 de Abril de 2013, pela Southern Lord. O álbum está agora disponível em streaming, com nova remasterização áudio e, pela primeira vez em formato digital, uma versão mais extensa de “Hot Lava Man”. Esta versão do disco vai também ser editada em Fevereiro de 2023.

«Estávamos em 2011 quando a Southern Lord foi contactada pelo Al Cisneros, dos Sleep, sobre a possibilidade de lançar uma versão deluxe desta gravação clássica que é o ‘Dopesmoker’», recorda Greg Anderson, dos Sunn O))) e estratega do selo independente norte-americano. «Ele [Cisneros] queria dar uma nova vida à velha fera e finalmente ter a visão original do álbum totalmente realizada. A Southern Lord ficou extremamente entusiasmada com o desafio de tomar as rédeas de uma das gravações mais importantes da história do heavy metal! A versão Lord apresenta uma nova capa do artista de longa data dos Sleep, Arik Roper, que criou algo especial para o renascimento do álbum». Além do artwork, a maior diferença entre esta nova versão e os lançamentos anteriores é o trabalho fenomenal de remasterização de Brad Boatright, que «aprimou a gravação original sem a alterar de uma forma drástica».

AS VÁLVULAS DE DOPESMOKER

Em 1945, terminara um dos maiores flagelos na história da humanidade. A meio caminho entre Leeds e Manchester, Mat Mathias, um jovem melómano, lançou a primeira pedra daquilo que viria a tornar-se um álbum monumental. Mathias, nesse ano, criou a empresa RadioCraft, nas traseiras da mercearia da sua esposa, em Huddersfield. Mathias vendia acessórios e equipamento a jovens músicos e, amante do underground, expandiu o negócio até o tornar num estúdio de baixo custo, onde bandas jovens e sem contractos discográficos podiam gravar as suas próprias demos e fazer o “corte” do vinil. Essa devoção pela música e pelo som alastrou ao seu amigo Tony Emerson, um construtor de amplificadores de alta-fidelidade, e no início dos anos 60 nascia a MATAMP (Mat And Tony Amplifiers).

Mat Mathias (1923-1989), o fundador da Matamp e duas das suas criações, a stack SERIES 2000 e o MATAMP GT-120, o mais provável "Green" usado pelos Sleep.

Mat Mathias (1923-1989), o fundador da Matamp e duas das suas criações, a stack SERIES 2000 e o MATAMP GT-120, o mais provável “Green” usado pelos Sleep.

Tony haveria de abandonar a empresa e passar a trabalhar directamente com os Fleetwood Mac. Mat encontrou outro parceiro em Cliff Cooper. Cooper possuía uma pequena loja em Londres, chamada “Orange”. Em conjunto, começaram a construir os amplificadores Orange Matamp, em Huddersfield e a vendê-los na boutique londrina. A reputação dos amps cresceu até, em 1971, ultrapassar os números de vendas da Marshall. Cliff Cooper quis manter os números de vendas, entrar seriamente no padrão industrial, na produção em massa. Mathias nunca abdicou dos seus elevadíssimo padrões de qualidade, preferiu o som ao dinheiro. Cooper separou-se da marca que possuía os esquemas originais, os protótipos, levando consigo os desenhos dos circuitos (assim reza a lenda, pelo menos) e nasceu a Orange.

No final dos anos 80, Matt Pike e Al Cisneros eram dois putos fanáticos por Black Sabbath, como qualquer puto que se preze. O “Holy Mountain” ilustra bem tamanha devoção. Além da capa, os Sleep não abdicavam de Laney, claro, e Orange nos seus rigs. O sucesso desse segundo álbum levou a banda ao Reino Unido, em digressão com os Cathedral, companheiros de label na Earache. Aí, Pike e Cisneros apaixonaram-se pelos Matamp “Green”. Depois da pedra angular, começavam a erigir-se as paredes de “Dopesmoker”, um monstro conceptual e uma enorme besta sonora. Pelas melhores e piores razões, “Dopesmoker” tornou-se no álbum que define toda a carreira dos Sleep. “Holy Mountain” levou a Elektra a desejar os Sleep no seu roster, mas a duração do novo álbum, entre outros conflitos com a label, fez com que, apenas em 1999, fosse editado numa versão não finalizada, com o título “Jerusalem”, pela Rise Above. Só em 2003, já com o título originalmente pretendido, a Tee Pee Records editou o álbum sem os cortes impostos em ’99. Depois, em 2013, como acima mencionado, a Southern Lord editou a versão completa com retratamento sónico.

dsmoker

O sleeve da edição de 2003 da Tee Pee (em cima) e o gatefold da reedição da Southern Lord.

O sleeve da edição de 2003 da Tee Pee (em cima) e o gatefold da reedição da Southern Lord.

“Dopesmoker” conta, ao longo de uma hora e pouco, sem interrupções, a saga da peregrinação épica de uma raça de viciada em “erva” a seguir um dos seus sacerdotes, na procura de se libertar do mundo físico e entrar num estado de transcendência induzida pelo opiáceo: «Drop out of life with bong in hand / Follow the smoke to the riff filled land».

Os Sleep, segundo declarações dos gurus Al Cisneros e Matt Pike, estiveram constantemente pedrados a escrever o álbum, mas ouvir a lentidão e peso de riffs do LP, desde os segundos iniciais, é um exercício capaz de provocar indução num estado lisérgico, por si só. “Dopesmoker” é visto como um leviatã sonoro. Um álbum com um dos melhores paredões de guitarra e baixo de sempre, especialmente a partir do minuto 05:00, quando o baixo de Cisneros começa a ressoar com distorção também. Uma obra-prima para ser colocada ao lado de “Master Of Reality”.

Gravado em 1996, no Record Two Studio, na Califórnia, e com o avanço monetário da editora, a banda fez questão de alugar e comprar modelos Matamp, aos quais se convertera no UK, para ter em estúdio. Nesse período, a marca britânica “chapava” o logo “Green” em vários dos seus modelos. Portanto, é difícil precisar os modelos concretos a que a banda recorreu. GT120, GTL, TO, Roadster…

Todos foram “Green”. Contudo, parece plausível que o mais recorrente em “Dopesmoker” seja o GT120. Aliás, esse modelo é bastante próximo aos modelos originais de Mathias e Cooper da série OR120, um dos últimos modelos criados pela Matamp para a Orange. Nos primeiros concertos de reunião dos Sleep os amplificadores que se vislumbram nas imagens são modelos Orange bem vintage. Já Cisneros terá usado, provavelmente um velho Bass 200, com a correspondente Slave Unit.

Matamp Green GT120

Matamp Green GT120

Captar os amps foi um trabalho gigantesco. Além de o álbum ter sido gravado em reel-to-reel, com o limite da fita em 22 minutos de duração (de resto, esses “picos” de junção podem ser ouvidos), o grande problema prendeu-se com os vários takes de dobragem. O Matamp e a coluna Green 4×12”, nas pistas de base, foi captado com um Shure SM57 e um BeyerDynamic M88. Além disso, nos destaques de guitarra somaram-se duas full stacks, uma pelo suposto GT120 e outra por um Green Matamp Combo 2×12”; ambos captados pelo mesmo par de micros, mas com um acréscimo de sala por um micro de diafragma largo (Bill Anderson, engenheiro de som, refere, sem certeza, um Neumann U67). Depois, os três micros era misturados numa única faixa e, para somar a segunda guitarra, o setup era o mesmo.

Algumas guitarras de ritmo foram gravadas com o Pignose meio aberto, com um micro também no meio da caixa.

Algumas guitarras de ritmo foram gravadas com o Pignose meio aberto, com um micro também no meio da caixa.

Aos três sinais (o original de base e os dois acréscimos, cada um com dois stacks), em determinados momentos é acrescentado uma faixa de guitarra ritmo, usando um Pignose, captado com um AKG 414, num padrão figura 8. Os leads foram feitos com o setup Pignose ou o de duplo full stack e as guitarras limpas foram gravadas com o combo em baixo volume, usando um ribbon como micro de proximidade e ainda um micro de sala. Uma tarefa verdadeiramente hercúlea e, praticamente, destinada à impossibilidade de duplicação…

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