Amália, Ensaios

Tão raro, quanto íntimo, este disco que reúne os ensaios de 1970, é uma peça fundamental para compreender não só o seu legado como a própria Amália. A coordenação e as notas são de Frederico Santiago, numa colaboração entre a Valentim de Carvalho e o Arquivo Nacional do Som.

Em Dezembro de 2020, estávamos prestes a entrar no ano do Centenário de Amália Rodrigues, a Valentim de Carvalho editou um disco duplo que revelou um novo ambiente discográfico, momentos que jamais se repetirão e que são um extraordinário património sonoro. “Ensaios” é um arrojado exercício de intimidade artística, que nos remete para momentos de criação, a que o grande público raramente tem acesso. Um disco que só seria superado pela possibilidade de termos estado naquelas sessões.

Nestes ensaios, em estúdio e em casa de Amália, compreende-se que a cantora é mais do que uma intérprete. Evidencia-se o processo de busca e repetição, de quase co-composição com Alain Oulman, até à perfeição. Um percurso essencial e necessário até à forma final de importantes fados da sua carreira. O primeiro disco reúne gravações de Amália em estúdio e as suas conversas com os músicos e o técnico Hugo Ribeiro. O segundo disco, gravado em sua casa, revela um testemunho verdadeiramente entusiasmante dessa faceta criativa e eterniza a voz de Alain Oulman a cantar para Amália.

Esta nova edição reúne documentos inéditos, gravados em 1970 e 1971, nos quais sobressai «o grande virtuosismo vocal e artístico» de Amália que, «mais do que um aperfeiçoamento apenas formal, mais do que fazer uma ‘voltinha’, diferente aqui, ou uma variação ali», procurava também «novos e por vezes inesperados caminhos emocionais para cada peça», referiu o investigador Frederico Santiago, coordenador deste projecto.

Os discos, inteiramente preenchidos com música de Alain Oulman, são uma verdadeira janela para a oficina de trabalho e a cumplicidade artística entre Amália e o compositor, a que se juntava o guitarrista José Fontes Rocha, na construção do ambiente certo para cada fado ou canção. «Aqui se prova que Amália também trabalhava, e muito. Nunca se sentindo totalmente satisfeita com o resultado, mesmo que para nós ele seja já perfeito, o que não deixa de ser um dos segredos do seu génio – o eterno descontentamento e procura permanente da perfeição», afirma Santiago.

Num período distinto daquele reunido neste álbum, podemos ver alquimia entre Alain Oulman e Amália, ensaiando “Soledad”, em 1989.

O musicólogo sublinha ainda que este universo de canções feitas com Oulman é um «repertório que Amália, certamente por temer a censura, viria a editar depois do 25 de Abril de 1974, mas em versões gravadas mais tarde, com menor brilhantismo vocal do que estas» que aqui se revelam. Defende Santiago que, ainda antes da Revolução dos Cravos, como se prova nesta edição, «existe uma Amália, totalmente livre de preconceitos artísticos e políticos». A maior parte dos poetas que Oulman musicou nesta altura, e aqui ensaiados, eram da oposição ao regime. Também o compositor tinha sido preso pela polícia política da ditadura, a PIDE, e expulso do país em 1966. Entre esses poetas estavam Manuel Alegre, Ary dos Santos e Armindo Rodrigues. Alguns deles eram cantados no estrangeiro por Amália, nessa altura, mas não em Portugal.

Outra parte do repertório aqui ensaiado ficou inédito e só nesta edição foi trazido a público, como “Sete Estradas”, de Armindo Rodrigues, e a adaptação em estilo de tango do poema “Objecto”, de Ary dos Santos, do qual resultou “Com Vossa Licença”, ensaiado em casa de Amália, com os guitarristas e com Alain Oulman ao piano. Este duplo álbum «realça de forma ainda mais decisiva a importância e a modernidade criativa de Alain Oulman (1928-1990)», insiste Frederico Santiago, que, no seu texto, nesta edição, cita o compositor sobre o fado “Rosa Vermelha”, do qual surgem vários ensaios e ‘takes’ experimentais.

«‘Rosa Vermelha’ foi uma ideia minha. Queria fazer uma canção sobre uma rosa encarnada e, francamente, foi o único poema em que colaborei com o Zé Carlos [Ary dos Santos], algumas das metáforas são minhas», escreveu Oulman. Neste fado, do ponto de vista da melodia, pode-se mesmo falar abertamente numa co-composição entre Amália e Alain, como se pode ouvir no extraordinário caminho percorrido entre a versão ‘pura’ do compositor e as últimas versões, já próximas melodicamente da leitura editada anos depois. Por isso, acrescenta Santiago, este disco é «uma forma de podermos ser também testemunhas de um excepcional caminho criativo, que na música quase nunca é preservado para a posteridade».

Enriquecida pelas notas de Frederico Santiago sobre cada um dos fados, a edição é complementada por um livro que traça a cronologia de 1970, ano particularmente activo para Amália. Em Março chegou o LP “Com Que Voz” e a diva actuou um pouco por todo o mundo – do Japão, na Expo’70, em Osaka, à Itália, dos EUA à Alemanha, passando pelos Países Baixos – e também por Portugal. Para além de fotografias inéditas da cantora, são também reproduzidas imagens dos cadernos manuscritos de Alain Oulman com partituras e poemas experimentados nestes “ensaios”.

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