Amália Rodrigues, A Vizinha do Medo

O dia oficial do seu nascimento é 23 de Julho, ao jeito das divas celebrava o seu aniversário no dia 1 desse mês. No dia 6 de Outubro, de 1999, Amália Rodrigues tornou-se, ela própria, aquela intangibilidade que se lhe ouvia na voz.

Estas palavras iniciam o seu decurso embaladas pela ondulação rítmica do “Barco Negro”. E por aquela voz visceral, com a potência harmónica de uma deusa – a réstia duma Lusitânia imemorial, mais pura. A voz de Amália era o cumprimento da entoação ao Infante na “Mensagem” de Pessoa, a grandeza pedida pelo poeta, «Quem te sagrou creou-te portuguez. / Do mar e nós em ti nos deu signal. / Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal!»

Amália da Piedade Rodrigues nasceu, a 1 de Julho de 1920 (era a data que a diva celebrava) e terá sido registada no dia 23 do mesmo mês. E logo Lisboa a chamava sua e lhe pedia, ainda menina, que cantasse – como se as ruas e as gentes fossem a voz do destino. Tornou-se mulher, reconfiguração lusa do pulsar da tragédia grega: um rosto umas vezes austero e outras belo, emocionante, e as cordas vocais como o som da natureza expressiva da dor e esperança dum povo, duma estranha serenidade negra. Nada do que é dito sobre Amália é suficiente…

É difícil estabelecer uma cronologia precisa do início da sua carreira; são apontados vários momentos e eventos: a participação, aos 15 anos, nas Marchas de Lisboa, em 1936; a recusa inicial em actuar na casa de fados Retiro da Severa, onde se estreou depois em 1939, a par das casas Café Luso e Solar da Alegria (onde se firmaria em 1940), actuando já ao lado dum nome como o do basilar artificie da guitarra portuguesa: Armandinho. Conheceu nesta altura aquele que se tornará o seu empresário, José de Melo, que impede a gravação de discos seus, para manter a desejo de ouvir a fadista ao vivo. Contudo, pode afirmar-se que um início profissional sucede integrando o elenco de “Ora Vai Tu”, no Teatro Maria Vitória, em 1940. Isso levou ao protagonismo, junto da grande amiga e grande fadista Hermínia Silva, em “Rosa Cantadeira”, em 1944, e aí surge o convite para actuar no glamoroso Casino Copacana, no Rio de Janeiro, no mesmo ano.

Amália modernizou a imagem do próprio feminino português, um género submetido às actividades duras do campo, do mar, num país de costumes asfixiados por um tradicionalismo pesado. Deu sexualidade e erotismo à mulher portuguesa, através da sensualidade artística, da sedução pura do talento em palco, da simpatia que lhe vemos nas suas intervenções públicas.

Aí a sua projecção internacional ganhou uma dimensão que, ainda hoje, não estará bem apreendida no nosso país. Conquistou a admiração de gente que não era a sua, que a idolatra ainda hoje, e ganhou o refinamento das divas, das estrelas mundiais – modernizou a imagem do próprio feminino português, um género submetido às actividades duras do campo, do mar, num país de costumes asfixiados por um tradicionalismo pesado. Amália, se é permitido dizê-lo, deu sexualidade e erotismo à mulher portuguesa, através da sensualidade artística, da sedução pura do talento em palco, da simpatia que lhe vemos nas suas intervenções públicas. A sua internacionalização continuou em expansão, principalmente após o final da II GGM, quando os principais artistas de cada país foram chamados a apoiar o Plano Marshall, Amália encanta Paris, Londres, Berna, Tieste, Dublin…

DISCOGRAFIA

As sessões gravadas nos Abbey Road, em 1952, apenas foram editadas no nosso país em 1992. Em Março de 1952, Amália foi a Londres, aos estúdios da Electric and Musical Industries Ltd (EMI), em Abbey Road, gravar aqueles que se acreditou durante muitos anos serem os seus primeiros registos para a editora, que apenas seriam editadas no nosso país em 1992. Em 1997, a Valentim de Carvalho editou as suas últimas gravações inéditas, que compreendem um período entre 1965 a 1975. Postumamente, a 24 de Novembro de 2014, chegou uma raridade anterior às sessões no icónico estúdio britânico, quando foi descoberta uma prova em acetato com a data de Junho de 1951 que provavam que as primeiras bobines da Rua Nova do Almada eram anteriores às gravações londrinas.

Foi também no Chiado, numa sala (mais tarde dita da alta fidelidade) do segundo andar da loja da Valentim de Carvalho, que nesse Junho de 1951 se deu o encontro entre a voz de Amália e Hugo Ribeiro, o técnico de som da casa. A diferença de qualidade, mesmo depois do natural envelhecimento das fitas, entre estas gravações e as de Londres é assinalável. A paixão que os ligava à arte de Amália, aliada ao engenho para ultrapassar as dificuldades técnicas, levou Hugo Ribeiro e Rui Valentim de Carvalho a superar os resultados conseguidos em todos os outros estúdios. Hugo Ribeiro inventou no Chiado a distância ideal entre o microfone e a voz de Amália. Logo nesse primeiro ano o resultado é notável, tanto do ponto de vista técnico como artístico. Amália não só grava alguns dos seus “clássicos” de então, como nos oferece registos algo exóticos no seu repertório. Rui Valentim de Carvalho possibilitou o uso ilimitado das bobines e a sua preservação, deixando-nos momentos extraordinários que em normais circunstâncias teriam sido apagados.

Entre estes registos, alguns viram a sua única edição nos discos de 78 rpm da época; outros seriam apenas editados em 1989, na caixa comemorativa dos 50 anos de carreira de Amália (hoje indisponível); outros, ainda, nunca chegariam a sair, muito provavelmente por duplicarem temas regravados mais tarde. A sua edição, em 2014, reuniu pela primeira vez as gravações de Amália na Loja do Chiado, e inclui alguns inéditos de estúdio, além de numerosas versões nunca publicadas.

Deopis de Londres, também em 1952, chegaria a Nova Iorque e a Big Apple tornou-se pequena para o seu talento colossal. Ali cantou para a cadeia televisiva NBC, gravou discos de fado e flamenco, aliás gravou mesmo o seu primeiro LP, no recente formato de 33 rotações, “Amália Rodrigues Sings Fado From Portugal And Flamenco From Spain” que nunca foi editado no nosso país, apesar do grande sucesso internacional que teve. Foi em 1957 que gravou o álbum ao vivo, “Amália No Olympia”. Esse foi o disco que iniciou a sua discografia oficial, por assim dizer, onde se destacam os álbuns “Busto” (1962), o multi-premiado “Vou Dar De Beber À Dor” (1969), considerado a quintessência da sua carreira, ou os mais tardios, “Amália Gostava De Ser Quem Era” (1980) e “Lágrima” (1983).

A sua pessoa confunde-se com o Fado, de tal modo foi responsável pelo conhecimento e projecção desta forma musical portuguesa em todo o globo, sem ter deixado de se preocupar com a sua renovação. Amália Rodrigues ultrapassou todas as fronteiras: as fronteiras territoriais (apresentou-se ao vivo e teve os seus discos publicados praticamente em todo o mundo, da Austrália ao Azerbeijão; actuou tanto em palcos em pequenas aldeias de Itália como no Lincoln Center de Nova Iorque); as fronteiras linguísticas (interpretando repertório em diversas línguas como o Português, Castelhano, Italiano, Francês ou Inglês); e, sobretudo, as fronteiras de género musical, afirmando-se como intérprete do fado, mas também das rancheras mexicanas, do flamenco ou da canção italiana, entre outros repertórios, inspirando autores como Aznavour ou Vinicius de Moraes, que para ela compuseram. Graças a uma capacidade musical absolutamente extraordinário, revolucionou o género nas suas múltiplas dimensões (musical, poética e interpretativa).

MEMÓRIA DO MUNDO

Foi por isso que, em 2021, ano do centenário do seu nascimento, o Ministério da Cultura candidatou as gravações da cantora ao programa da Unesco “Memória do Mundo”. A candidatura foi promovida através da equipa do Arquivo Nacional do Som (do Ministério), em colaboração com a empresa Edições Valentim de Carvalho, proprietária da colecção de fitas magnéticas gravadas pela intérprete entre 1951 e 1990 e de outras gravações, algumas que nunca foram publicadas (ensaios, outtakes, experiências de gravação, gravações informais, entre outras), e surge na sequência do trabalho há muito desenvolvido pela Valentim de Carvalho na preservação e divulgação de tão importante fundo documental e do início de um trabalho conjunto com a equipa do Arquivo Nacional do Som.

A candidatura não só afirma a importância deste fundo documental, como reforça a visibilidade destes documentos e articula-se em quatro vertentes. «Do ponto de vista patrimonial, o reconhecimento da importância universal destes documentos e a sua preservação e divulgação. Reafirmar inequivocamente o compromisso nacional de desenhar, implementar e fortalecer uma política consolidada para o património sonoro. Estamos a trabalhar para instalar as infraestruturas tecnológicas do Arquivo Nacional de Som, encerrando definitivamente uma história já com 85 anos. E estamos a fazê-lo e vamos sempre fazê-lo com com todos os agentes detentores de património sonoro».

O programa “Memória do Mundo” é uma iniciativa da UNESCO que visa realçar e preservar documentos ou conjuntos de documentos com especial significado e valor para a humanidade, documentos (também fonográficos) com «importância mundial e valor universal excepcional». As primeiras inscrições tiveram lugar em 1997 e, até hoje, já foram inscritos como “Memória do Mundo” mais de 400 documentos ou conjuntos de documentos, da Magna Carta à Bíblia de Gutenberg. Entre esses Portugal inscreveu já 10 documentos, entre os quais se podem referir o Tratado de Tordesillas, o Diário da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia, a Carta de Pêro Vaz de Caminha ou o registo de vistos atribuídos pelo cônsul português Aristides Sousa Mendes.

No domínio do património documental sonoro, são vários os documentos inscritos: o disco com a gravação do apelo à resistência francesa na II Guerra Mundial pelo General de Gaulle; as colecções históricas dos arquivos de som de Viena, de Berlin e de São Petersburgo; as 103 fitas-magnéticas com a gravação do julgamento de Frankfurt – Auschwitz; ou uma colecção de discos comerciais de Carlos Gardel. Esta trata-se da primeira candidatura portuguesa de um documento audiovisual.

ANÁTEMA

Amália foi sempre mais que uma simples artista. É triste constatar, actualmente, um certo preconceito para com uma artista tão grande e universal, fazendo-se a associação (tal como sucede com o grande Eusébio e as conquistas do Benfica desses tempos) aos três baluartes da matriz do Antigo Regime, como se um dom fosse culpado da era em que surge, como se o destino fosse sujeito a qualquer tipo de controlo político. Aliás, a música de Alain Oulman e o poema de David-Mourão Ferreira em “Abandono” (o fado de Peniche) colocaram a dor dos presos políticos na voz de Portugal, acabando por tornar-se anátema pelo Estado Novo, e então Amália começou a cantar o âmago do “Povo Que Lavas No Rio”, de Pedro Homem de Mello.

Logo após o 25 de Abril de 1974 (em Junho), por sugestão de Rui Valentim de Carvalho, Amália gravou um single com “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso. Nesse mesmo dia gravou também, para o lado B desse disco, um dos mais conhecidos temas do nosso folclore, “Alecrim”, sublinhando assim, talvez a maior qualidade da música e da poesia do extraordinário criador: a ilusão de ter sempre existido no nosso cancioneiro. A primeira versão do poema foi escrita, em Maio de 1964, por José Afonso no “rescaldo” da sua ida à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense. Entre ela e a gravação de 1971 – para o álbum “Cantigas de Maio” –, não só compôs a música como escreveu uma nova segunda estrofe. Gravaria esta canção à maneira do Cante Alentejano, repetindo as quadras com a ordem invertida dos versos – estrutura respeitada por Amália.

A solene e visceral versão de Amália potencia toda a tragédia mediterrânica da canção e o seu lado ritual, tão próximo do canto popular. Amália chegaria a cantá-la ao vivo nesses primeiros tempos de esperança do pós-revolução (que depressa se tornariam de desilusão e de amargura para ela). Ao vivo, e em coro com o público, acentuava ainda mais esse sentido de hino, liderado pela voz que melhor encarna o povo português.

A arte será sempre mais forte que a mesquinhez política ou intelectual, será mesmo mais forte que a morte, afinal, depois do triste dia de 6 de Outubro de 1999, tornou-se mesmo imortal. E Amália tornou-se, ela própria, aquela intangibilidade que se lhe ouvia na voz.

Um pensamento sobre “Amália Rodrigues, A Vizinha do Medo

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