Lions Among Men, A Ascese dos Firstborn

Os The Firstborn catapultaram-se sonicamente através da estética do álbum “Noble Search” (2008), que refinaram depois em “Lions Among Men” (2012). Se desde o início da sua carreira sempre transpareceram um sentido criterioso e musicalmente exigente, aí afirmam-se com uma maturidade plenificada. O frontman Bruno Fernandes fala-nos do disco que terá sido o último…

O crescimento dos Firstborn foi afastando a sua sonoridade de algumas sombras do death e do black metal (bem presentes ainda, em momentos como “Vajra Eyes”). Progressivamente, a banda tornou o seu som mais rocker, mais coeso e orgânico. Essa coesão permitiu uma simplicidade ou um sentido de base musical mais directo, que permitia acolher perfeitamente os arranjos e desenvoltura conceptual da sua fusão estética com o mundo oriental. Que não se leia que este “Lions Among Men” é um álbum de absorção simples, apenas que pode – caso o ouvinte opte por isso – ser ouvido de uma forma descomprometida. Aquela solidez rocker do disco permite isso. Contudo, fazê-lo será desperdiçar uma experiência enriquecedora. De percorrer uma banda sonora que, longe de ser um tratado, possui uma enorme pertinência filosófica. Este faz parte de um tipo de discos que, algures nos anos 70, perdeu a guerra contra a indústria. Assim, não prestar atenção à minúcia detalhada de arranjos que os The Firstborn nos oferecem, é abdicar de ouvir a música como algo maior.

A progressão musical dos temas – solidez de baixo e crescimento das linhas de bateria que se desenvolvem para puxarem pelo clímax melódico final – é sustentada por mantras de repetição nas guitarras. Estas camadas conduzem a uma elevação cognitiva súbita sobre a peça em causa. Um exercício que, somado no final, pode ser aplicado analogicamente ao próprio álbum. Ao longo de “Lions Among Men”, os The Firstborn unificam as parcelas com a totalidade. Um sentido perfeitamente ilustrado pelo entrançamento das linhas de guitarra ao longo do trabalho. Negro. Denso. Melódico. Espiritual. Surpreendente. Autêntico. Discaço.

Uma década depois, parece ter sido o último disco de uma trilogia (excluindo daqui “From The Past Yet To Come”, apenas por enquadramento estético) absolutamente obrigatória de explorar e cujo pináculo recordamos com Bruno Fernandes que, na altura, sentia que a banda tinha atingido um plateau em termos de estática e desenvolvimento. «Sentimos isso ao compor ‘Lions Among Men’. Fizemos apenas o que se pode chamar o refinar daquilo que tínhamos delineado no ‘Noble Search’. Pegámos no que melhor, na nossa opinião, resultou no disco anterior e trabalhámos mais esses ambientes. Aproveitámos mais algum tipo de ideias que, em retrospectiva, acabaram por não ser tão aproveitadas quanto poderiam ter sido e trabalhámos nesse sentido, de aprimorar aquele, sem modéstias, diamante em bruto que tínhamos atingido com o ‘Noble Search’».

As pessoas têm uma perspectiva muito new age do que é o budismo e partem do princípio que é algo meio hippie quando todo o processo de catarse que conduz à iluminação, na maioria das doutrinas budistas, é um processo de convulsão, de alguma destruição do ego.

Bruno Fernandes

Aqueles elementos externos e localizados esteticamente, neste disco, tornaram-se algo mais integrado, mais fluído nas estruturas
Tínhamos uma noção mais clara daquilo que conseguiríamos atingir como resultado final e a composição já previa esse tipo de elementos. Aliás, alguns trechos foram já compostos tendo como base esse tipo de elementos. A sitar, por exemplo, está muito melhor integrada na composição geral. Os próprios elementos mais externos também foram pensados de outra forma – menos numa base de sobreposição e mais numa de interligação entre as várias paisagens sónicas. E isso foi um dos processos simultaneamente mais árduos e mais recompensadores deste trabalho. No cômputo geral, se calhar, tens menos momentos surpreendentes, menos contrastes (e isso, por vezes, também tem o seu benefício), mas creio que foi uma abordagem mais madura, mais pensada e mais harmoniosa de todos os elementos.

Em termos conceptuais, ao fundir a agressividade do metal com uma estética que pouco tem que ver com revolta e mais com gratificação interior, a intenção é algo provocatória?
A intenção é, em grande parte, exactamente essa. O que acontece muitas vezes é que as pessoas têm uma perspectiva muito new age do que é o budismo e partem do princípio que é algo assim meio hippie, meio peace and love e, de facto, todo o processo de catarse que conduz à iluminação, na maioria das doutrinas budistas, é um processo de convulsão, de alguma destruição do ego – o abandonar de tudo o que é material. Isso é um processo que, a meu ver, é tudo menos de pacífico, pelo menos numa primeira fase. Embora, neste disco, creio que conseguimos transmitir mais o tipo de ambientes que pretendíamos. Mesmo com a distorção das guitarras, mesmo com o peso das composições, creio que há toda uma aura mais contemplativa, mais abstracta, mais virada sobre si mesma que acaba por conduzir também a uma espécie de transe. Apostámos mais na repetição, naquela toada mais arrastada deste álbum, exactamente para propiciar esse tipo de emoções ao ouvinte. Foi um processo muito pouco “naive”. Foi tudo muito pensado, muito deliberado, daí ter demorado tanto tempo. Tudo isso o torna um disco ainda menos imediato do que aqueles que tínhamos feito no passado. É um disco que as pessoas precisam mesmo de estar naquele estado de espírito para, pelo menos, chegarem onde queremos que cheguem e isso, por vezes, é um pouco ingrato. Nos tempos que correm, quanto mais imediata for a música mais probabilidades de agarres os ouvintes tens. Contudo, torná-la um pouco inacessível é plenamente compensado pelas pessoas que ouvem o disco e atingem aquilo que pretendemos e se reveem em toda a estética, em todo o conceito e toda a emoção, sobretudo, que nós pretendemos incutir e, como tal, uma coisa acaba por balançar a outra.

Há algum tipo de estudo com os restantes membros da banda, por exemplo, para conseguir extrair um determinado sentimento sonoro em correlação com o conceito?
Tenho sempre uma premissa para cada canção, que envolve não só a estética como, sobretudo, as emoções que pretendo transmitir. Daí procurar sempre ter as letras escritas, nem que seja só uma linha de guia, antes de pegar na guitarra e começar a fazer riffs e a tentar encontrar uma canção para aquela letra. E quando me sentava com o Nuno Gervásio, que compôs a maioria do trabalho comigo, falávamos muitas vezes e dizia «neste tema, pretendo algo assim, a emoção que tentamos transmitir é esta, a mensagem da letra apela a estética x ou y», usando isso sempre como base de trabalho para toda a abordagem estética do tema. Isso atinge detalhes como o próprio tipo de samples que usámos, muito pensado nesse sentido. Temos um sample que mal se distingue, usado ao longo de quase todo o disco, uma tampura, que é uma espécie de um drone indiano, mas não consegues distingui-lo, quase, no meio daquela cacofonia dos instrumentos. E o objectivo de termos essa pista sempre a soar foi exactamente induzir esse transe, ter sempre aquele drone constante, que permitiu, mesmo em termos de frequências, casar ali muitos dos instrumentos duma forma tão simples e eficaz quanto, a meu ver, até genial. Isto foi uma ideia do Nuno, portanto não estou a assumir créditos. A questão base aqui é, de facto, essa. Quando tens um disco que vive tanto da atmosfera que se pretende transmitir, isso tem forçosamente que ser pensado, tem forçosamente que ser analisado previamente, para que não acabes com algo que é o oposto daquilo que pretendias transmitir. Uma vez mais, torna todo o processo de composição muito mais moroso e mais lento e foi a razão pela qual fomos adiando progressivamente as gravações porque não sentíamos ainda que os temas estivessem nesse ponto, nesse patamar de credibilidade para com o conceito.

E para atingir esse tipo de conceito e atmosferas houve algum tipo de equipamento específico?
Sim, em termos de micros, por exemplo, em termos da própria bateria, dos amplificadores que utilizámos. Usámos uma coluna de guitarra muito antiga, da Carlsbro (que é do pai do nosso baterista), dos anos 70, que tinha um som meio crunchy e queríamos explorar essa opção. Os amplificadores também foi aquela cena mais vintage, usámos um Vox AC30, um 5150. Fizemos pleno uso dos microfones disponíveis em estúdio, como Neumann, Geffel… Gravámos nos estúdios MDL, em Paço de Arcos, com o André Tavares. Gravámos em Pro Tools mas, dentro do que tínhamos à disposição, tentámos usar tudo o mais analógico possível.

Para ter uma ideia, em termos de camadas, qual é o tema com mais pistas?
Creio que será, talvez o quinto tema, “Eight Flashing Lances”, que a dada altura deve ter a soar em simultâneo umas setenta e tal pistas. Reais, não são dobragens. Só temos uma pista por cada guitarra, que é algo raro, perfazendo três, mas só de bateria temos vinte e muitas pistas, mais as de ambiência, todos os samples… É uma imensidão!

Foi por isso que optaste por começar a tocar a guitarra ao vivo? Para fazer reforços harmónicos?
Precisamente. Apesar de que, neste disco, as três guitarras raramente estão a fazer coisas em simultâneo, raramente estão a tocar em uníssono. Temos sempre três linhas de guitarras distintas e este disco vive muito disso. Permite que não tenhamos tido que estar a dobrar guitarras, porque só a presença das três guitarras, uma de cada lado e outra ao centro, constituiu logo uma parede sónica que reforçava aquilo que queríamos transmitir. Isso foi tudo pensado logo aquando da gravação. Portanto, ao vivo estávamos a tocar aquilo que está no disco, não houve alterações. Isso foi tudo um trabalho do Nuno que, não sendo o guitarrista mais técnico, é um grande compositor e tem noção de musicalidade. Teve esse trabalho incrível de atribuir a cada guitarra uma função. E a meu ver também é isso que permite que, com “apenas” três linhas de guitarra, consigas um som tão cheio. Todas estão a cumprir um objectivo muito delineado, a atacar uma determinada frequência. Foi um trabalho também moroso, muito solitário da parte do Nuno, importantíssimo para que as três se complementem e não se sobreponham.

O Nuno Gervásio, ao vivo, usava Line6. No álbum há também emulações?
Pouca coisa. Houve mais reamping. O Nuno gravou quase tudo em casa, gravou as guitarras praticamente todas, sempre com um sinal de referência e, em simultâneo, o sinal limpo. Fizemos depois todo o reamping em estúdio, de forma a desperdiçarmos menos tempo de estúdio e a gastarmos menos dinheiro. Foi a melhor opção, em retrospectiva, e permitiu que todo o trabalho fosse feito mais rapidamente. Por vezes perdíamos mais tempo a encontrar determinado som, mas em termos de execução já estava tudo feito.

Tiveram que fazer algum tipo de ajustamento de afinação das guitarras, para se adequarem ao som da sitar, que é um instrumento não temperado?
Por acaso não. Mas foi por mero acaso. Quando começámos a trabalhar com o Luís Simões abordámos essa questão, mas ele conseguiu adaptar a própria afinação da sitar à nossa afinação, sem grande esforço. A afinação e as escalas que normalmente usamos já ia, mais ou menos, de encontro àquilo que ele consegue fazer com a sitar. Porque, ao fim ao cabo, é um instrumento em que só usas a escala em uma das cordas, embora aquilo tenha dezoito. O que limita um pouco em termos de range, de notas que consegues atingir. Mas como a própria composição já tinha umas sonoridades mais orientais, tornou-se muito simples encaixar seja o que for. Às vezes, alguns samples que usámos eram constituídos já por trechos pré-gravados e a maioria deles encaixava sempre na nossa escala. E isto não foi nada pensado. Quando pego na guitarra para escrever um riff para The Firstborn já instintivamente me saem aquelas escalas. É talvez alguma predisposição para aquele tipo de ambientes. Com o risco de que as coisas soem repetitivas, mas também é aquilo que acaba por ser um pouco o nosso cunho, mesmo em termos de composição.

Nos samples, construíram tudo ou têm coisas tiradas daqui ou dali?
Construímos tudo. No passado roubámos literalmente algumas coisas de CDs que ia comprando de world music. Desta vez, tudo o que usámos foi gravado por nós, especificamente, muita coisa gravada pelo Luís Simões, que ele tinha vindo a captar ao longo dos anos. Usámos também freewares, nada de muito complicado. Pela primeira vez tínhamos um disco com samples sem estar preocupados com copyrights nem nada do género [risos]. O mais complicado muitas vezes, e isso foi um trabalho mais meu que do Nuno, foi decidir o que é que era adequado. Foi uma coisa pensada também, pormenores que ao ouvinte poderão passar despercebidos. Todos os samples que ali ouves são específicos de uma zona geográfica que fazem sentido com o disco – são do sudoeste asiático, a maioria da Índia, do Nepal, algumas coisas tibetanas. Muitas vezes, encontrámos instrumentos óptimos, que soavam muito bem, mas que não faziam muito sentido porque eram árabes, por exemplo. Essa integridade pode parecer um pouco preciosista, mas se estás a querer homenagear uma cultura, uma filosofia, seja o que for, acho que tens que ter exactamente atenção a esses pequenos detalhes, para evitar que, ao quereres homenagear, acabes por ridicularizar.

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