Gil Oliveira marcou um par de gerações de músicos, profissionais ou wannabe, tecnicamente evoluídos ou com a mesma graciosidade num braço de guitarra que um mamute numa loja de porcelana. Foi um pioneiro e um construtor arrojado, tendo criado alguns instrumentos verdadeiramente icónicos. Morreu aos 76 de idade.
Luis Simões detalhou-nos que o Gil, que faria 77 anos ainda este anos, «estava [aqui] em Setúbal com uns amigos e quis voltar a casa, São Luís, perto do Cercal, no Alentejo. Quando lá chegou, levado por um amigo, sentiu-se mal e este chamou uma ambulância. Teve um AVC e ficou hospitalizado com vontade de sair, no entanto, ao que sei, teve outro AVC e não sobreviveu».
Não é a forma, nem forma sequer, de começar um artigo destes. Não sabemos muitos dados biográficos do Gil Oliveira. Não sabemos muito da vida do Gil. O que sabemos é que, como diz Luis Simões (que com ele privou imenso nos seus anos nos Blasted Mechanism e mesmo antes disso), através de quem soubemos a triste notícia, o Gil Oliveira foi, para muitos músicos tesos e apaixonados pelo metal, com instrumentos de qualidade discutível, o primeiro e muito tempo o único luthier a quem podíamos recorrer para tratar instrumentos de pechisbeque e dotá-los, literalmente, de valor acrescentado, de maior qualidade, fruto do seu zeloso trabalho.
Para mim, como muitos outros putos que, nos anos 90, eram apaixonados por death metal, uma Jackson coreana tornou-se na primeira guitarra. Uma miserável Performer PS-4 HSH, com uns pickups genéricos pífios. A afinação standard vinda de fábrica não chegava para, ainda por cima nas minhas inaptas mãos, soar pesado, massivo. Foi então que me falaram num “bacano” que tinha uma oficina no Bairro Alto, a ir para o Adamastor, que tornava qualquer embraçoso pedaço de, chamemos-lhe, madeira numa arma de destruição maciça. Comprei um set de EMGs, fui a essa loja e conheci o Gil Oliveira. Pedi-lhe para me calibrar o braço e a ponte para uma afinação em C#, com a acção o mais baixa possível – para ter mais rapidez, imaginava eu, este maçarico de 15 ou 16 anos. O setup que o Gil fez mantém-se até hoje, nunca tive coragem de o alterar. Sabem aqueles instrumentos que, por qualquer motivo transcendente, vos fazem realmente tocar melhor? Durante anos senti-me assim com essa guitarra, até entrar na espiral de comprar novas guitarras, amps mais poderosos, multidões de pedais e, tocar cada vez pior…
Caramba, morreu o Gil Oliveira. Antes dele, um gajo sabia lá o que era um luthier. Nasceu em 1945. O seu pai fazia instrumentos e foi aos sete anos que o Gil começou a tomar contacto com as madeiras. A esta aprendizagem juntou-se a de electricista e estavam reunidas as ferramentas para trabalhar o som dos instrumentos. O seu trabalho, que terá estado nas mãos de meio país, num ou noutro momento, ganhou maior reconhecimento com os pioneiros e arrojados designs que criou com os Blasted Mechanism e, principalmente, com Valdjiu. Mas o Gil construiu instrumentos também para o Vítor Rua (aquele gargantuesco híbrido electro-acústico de 18 cordas), por exemplo, para muitos músicos…
A procura por um modelo custom era muitas vezes uma aventura, como me referia numa conversa para outro meio, mas sempre pautada pela busca pelo som: «Tem mais a ver com o som. Se a guitarra é para jazz, rock, hard rock… Por vezes pedem-me uma guitarra tipo Les Paul, mas não gostam do formato e então trabalhamos nisso juntos. Se não têm ideia nenhuma vou desenhando até chegar ao design. Depois é a questão sonora, que vamos experimentando; que é a tal coisa de ter uma guitarra feita de encomenda: vamos andando até chegar ao que queremos mesmo! Às vezes é difícil de “sacar” logo com duas ou três conversas. Quando chegamos à altura de fazer o desenho, vê-se o equilíbrio da coisa e só depois na parte final é que vamos ver por onde vamos para soar conforme [o músico] quer – mais agudo ou mais grave, mais cheia ou com mais sustain».
Muitas coisas surgiam de forma intuitiva, à partida, fruto de cinco décadas a construir guitarras, mas ouvir o músico desde início era imperativo: «Para conseguir “aquele” som que o músico quer tenho que pensar nisso logo de início. Já é um conhecimento. São 40 ou 50 anos a fazer coisas e a experimentar e não se chega lá assim de um momento para o outro. Vejo um músico a tocar e sei logo como é que hei-de pôr a guitarra para ele se sentir melhor com ela – basta que toque dois ou três minutos e percebo que precisa daquela curvatura no braço, daquela altura de cordas, se deve ou não mudar de cordas».
R.I.P. Gil Oliveira