Gente danada faz som danado. Nesta rubrica revemos alguns dos mais extraordinários trabalhos criados por músicos portugueses, devotos de volume e distorção extremos, de paisagens sónicas escuras ou violentas e do Grande Bode. Neste volume, focamo-nos no bom e velho rock ‘n’ roll.
É comum dizê-lo, como será em todos os países, que o underground metaleiro nacional tem evoluído muito. Mas quem está familiarizado com a cena heavy portuguesa sabe que depois dos picos de intensidade no início dos anos 90 e alguns apontamentos esporádicos na década seguinte, os grandes discos de música extrema portuguesa não surgiam num fluxo constante. Felizmente, na última década, as coisas mudaram e há cada vez mais bandas e lançamentos com padrões bem elevados na composição, na atitude e nos aspectos sónicos, seja nas proezas instrumentais ou no enorme salto nos valores de produção que advieram da democratização das ferramentas de gravação.
Ainda assim, o metal continua a ser um género bastante guetizado em Portugal e há discos que passam despercebidos aos mais desatentos, quando deveriam ser alvos dos maiores louvores. É isso que pretendemos nesta rubrica. Podem consultar a primeira colheita (aqui), a segunda (aqui), a terceira (aqui) e a quarta (aqui). Entretanto, troquem o termo “metal” por “rock” ou “hard rock” e habitual texto de introdução permanece perfeitamente válido. Depois de um volume mais focado no universo do guitar shredding, vamos a alguns petardos de “rockalhada”. Como instituído, eis mais cinco tremendos discos que merecem a nossa e a vossa atenção…
Lena D’Água e underground? O que não está a bater certo aqui? Sem dúvida, o público e as rádios portuguesas. A querida Lena partilha um trono feminino e bicéfalo do rock luso com a Adelaide Ferreira. Com a particularidade de a Lena ter optado por sonoridades mais experimentais e mais pioneiras. Sonoridades que tinham um selo temporal cujo peso só se equiparava ao do poder das canções. Colocando isto de forma simples, canções como “Carrossel (Da Vida Na Cidade)”, “Demagogia”, “No Fundo Dos Teus Olhos De Água”, “Como Se Eu Fosse Tua” ou “Robot” precisavam de ser sonicamente modernizadas. Isto para os fãs, porque a Lena podia muito bem não ter feito este disco. Fê-lo porque é autêntica, porque no seu âmago é uma rocker! O trabalho do guitarrista João Guincho, do baixista Paulo Franco e do baterista Pedro Cação é absolutamente devocional. Com mestria nos arranjos trazem de volta o art rock dos Atlântida ou Salada de Frutas com uma roupagem mais abrasiva. Guincho é o que mais se expande, fazendo referência aos originais com as suas versáteis linhas de guitarra. Franco e Cação solidificam tudo com o músculo tradicional dos Dapunksportif. Disparem este discaço e vão passar uma hora de queixo caído.
Quer se queira quer não, Portugal é uma nação plana no que respeita ao rock ‘n’ roll. Contam-se pelos dedos das mãos, bandas nacionais feitas de visceralidade e intensidade eléctrica, de atitude nas guitarras e demência de volume na amplificação. E se pensarmos na dinâmica explosiva de um power trio clássico, a contagem torna-se ainda mais difícil. Mas, claro, há picos. Solitários e imponentes. Depois de um primeiro EP, em 2014 os Killimanjaro surgiam com “Hook”, uma prepotente e explosiva mistura de retro rock musculado e apontamentos de exploração psicadélica. Uma montanha de fuzz, phasers, groove e amps no prego. Tudo isto só pode ser bom, quando, para se juntar à festa, os músicos tocam bem. José Gomes com técnica irrepreensível na guitarra e voz no ponto, e Luís Masquete e Joni Dores, baixo e bateria respectivamente, bem coordenados na secção rítmica, eram a imagem do vigor da juventude. Uma banda que se desenvolveu, essencialmente, em palco, concerto atrás de concerto, alimentada a esteróides de um certo chauvinismo “motorheadiano”. Os Killimanjaro soavam rápidos, eléctricos e pesados, como uma suma rock ‘n’ roll.
Na base de tudo está o blues. Depois a agressividade de Zeppelin e o peso de Sabbath. Por cima de uma vontade de “jammar” a rodos, possivelmente nascida a ouvir os Cream, surge o charme feminino ao melhor estilo de Heart, em “Little Queen”, de 1977. As poções de Black Wizards são feitas com receitas retro e xamanismo fuzz. Joana Brito, Paulo Ferreira, Helena Peixoto e João Mendes descrevem-se de modo perfeito, como «quatro músicos analógicos, nascidos na era digital». Em 2015, foram uma das grandes revelações da Raging Planet. Electrizante e, por vezes, um pouco convencional, “Lake of Fire” transporta uma fórmula vencedora. É tudo aquilo que queremos ouvir num álbum de heavy rock. Com influências blues e psicadélica, é um disco constituído por faixas que, por longas que sejam, nos prendem do início ao fim.
“Good Boys” saiu para a rua no dia 13 de Março de 2017, através da Lovers & Lollypops. Tornou-se um clássico instantâneo no cancioneiro rocker português. O disco levou a banda directamente de Alcobaça para o palco LG by SBSR.FM, para o Paredes de Coura, Rodellus, Sonic Blast, Barroselas Metalfest, enfim… Nesse ano, onde havia um festival, chegavam aí os Stone Dead com a simples tarefa de provar que o rock and roll ainda está vivo. “Good Boys”, o seu primeiro LP, contém um pouco de tudo o que se faz de bom no campo do rock. Do stoner ao garage, da subcultura mod ao sleaze, os Stone Dead desbaratavam energia e afirmaram-se, desde logo, como uma das grandes promessas do rock nacional. O feroz trabalho foi gravado e misturado por Filipe Adubeiro, nos LowWave Studios. Daí para cá, silêncio editorial. Todavia, a banda estava a trabalhar num sucessor e a dar alguns concertos quando “bateu” a pandemia e o confinamento…
Desde que “As In Life” abre num riff uníssono entre teclados e guitarras (o que será amiúde usado ao longo do disco com tremendo sucesso), avançando depois para uma estrutura que, exceptuando a voz, podia fazer parte de “Fireball” ou “Machine Head”, os álbuns quintessenciais do Mark II dos Deep Purple, que somos dominados pelo sentido épico do segundo álbum dos Quartet Of Woah!. E não se trata de uma observação provocada, simplesmente, pelo distorção cruzada com o Hammond. Há aqueles momentos abertos, “meio jam“, que aliviam o peso estrutural da canção… E, por maiores que sejam as marcas cronológicas dos temas (apenas quatro), este trabalho homónimo acaba por ser mais simples que o álbum de estreia, o magnífico “Ultrabomb”, de 2012. Até porque a maior duração dos temas deriva de maiores introduções ou momentos atmosféricos, o que poderia ser interpretado como preguiça, não fosse um pormenor: a elegância colossal das composições. Este álbum também é sempre mais épico, quer no tamanho da tremenda parede sonora, quer nos momentos de coros vocais que, como sucede na King Crimsonesca/Pink Floydeana “Forth By Light”, chegam a ser apoteóticos. Se o último tema, “Days Of Wrath”, é o mais catchy (e não é que o riff final tem ali um cheirinho de “Dazed And Confused”?), o final “A Flock Of Leaves” terá o carácter mais próximo ao prog dos anos 70 e ao do próprio “Ultrabomb”. É neste tema que se destaca mais o charmoso som de baixo (tão vintage) que o disco tem, ao lado da bateria demolidora. O peso sonoro é uma diferença evidente para “Ultrabomb”. A banda submeteu a sua amplificação a uma dieta de esteróides. No entanto, entre o primeiro e este segundo disco, por maior maturidade que os músicos manifestem em ambos, fica também a sensação de que a banda está a descobrir ainda todo o potencial do seu som. Felizmente, há já dois excelentes discos para esperar essa plenificação.
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