A Guerra na Ucrânia, A Carta Aberta de Peter Gabriel

Peter Gabriel aponta o dedo à utopia paranóica de Putin e às hesitações do Ocidente, enquanto evoca a filosofia japonesa e a pungente parábola lucana do filho pródigo para abraçar o povo russo no pós-guerra, propondo uma reformulação da realpolitik europeia.

«Fora da Ucrânia», clama Peter Gabriel numa carta aberta publicada no dia 15 de Março de 2022, na qual começa por citar Wiston Churcill, por ocasião da fundação da ONU: «Nunca se desperdice uma boa crise». O icónico músico frisa que as nações ocidentais perderam algumas oportunidades para ter impedido este cenário e que as ilações devem levar a uma transformação do equilíbrio de forças geo-políticas, contribuindo para unir mais os povos. Nesse sentido, antes de iniciar a sua epístola, cita Leonard Cohen: «Em tudo há uma fissura – é por onde entra a luz».

Podem ler a carta original no website oficial de Peter Gabriel ou ler a tradução que propomos…

A [Organização das] Nações Unidas foi criada em resposta à devastação da Segunda Guerra Mundial. As reacções a esta guerra brutal na Ucrânia estão a surgir com o efeito bola de neve em todo o mundo. Esta invasão horrenda, totalmente desnecessária e barbárica deveria encorajar-nos a imaginar algo diferente para o futuro. Algo que possa impedir uma repetição do que estamos agora a assistir com tanta impotência; possuir armas nucleares parece não ser suficiente.

A natureza da guerra está a evoluir, um painel [de comentadores] para o futuro da guerra em Davos foi questionado quanto tempo um humano poderia sobreviver num campo de batalha equipado com robôs e IA? «Aproximadamente 17 segundos», foi a resposta. Mas esta já é uma guerra como nenhuma outra, com bancos contra tanques, com campanhas inteligentes de desinformação nos meios de comunicação social, com a apreensão de super-iates e dos bens dos comparsas de Putin, com o grupo global de hackers Anonymous a assumir o poder de ciber-esquadrões militares. Relatórios ao minuto e movimentos de tropas estão a ser registados num mapa aberto por jovens com os seus telemóveis. Esta invasão está também a unir famílias comuns de todo o mundo através de empresas tecnológicas, eventos desportivos, casas de moda, cadeias de fast food e empresas de cartões de crédito, todas querendo mostrar o quanto abominam esta guerra – este derramamento de sangue, esta violência impiedosa. Entretanto, a fantasia raivosa e paranóica de um homem em recriar um império há muito desaparecido, rola incessantemente sobre milhares de corpos, não só dos ucranianos que queriam a paz, mas também dos seus jovens recrutas que nunca quiseram matar os seus vizinhos. Agora jazem lado a lado nas ruas, juntamente com os sonhos e esperanças de uma nação notável e corajosa.

Esta é a mesma nação que a Rússia, os EUA e o Reino Unido haviam prometido respeitar e proteger no Memorando de Budapeste de 1994 – quando a Ucrânia concordou em render o seu arsenal soviético de armas nucleares e assinar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Como nação independente no seio da ONU, a Rússia também se comprometeu a nunca atacar outra nação independente da ONU, e isso – além do seu flagrante desrespeito pela Convenção de Genebra, ataques a civis e hospitais e utilização de munições de fósforo e termobáricas – deveria obrigar a que, no mínimo, abandonasse o seu lugar no Conselho de Segurança da ONU.

Quando a paz era propícia, quando a União Soviética entrou em colapso, não ter aproximado a Rússia da Europa e da OTAN e aproveitar o momento para cimentar uma verdadeira aliança, talvez seja um dos maiores erros de cálculo recentes do Ocidente. Quando Putin chegou ao poder pela primeira vez, pediu uma via rápida para aderir à OTAN, um pedido que fomos burros em não ter levado a sério.

Se ignorarmos o pequeno percalço do Brexit, esta invasão da Ucrânia uniu a Europa (e o Reino Unido) como nenhuma outra coisa em tempos recentes e isto, por sua vez, juntamente com todas as características únicas desta guerra, está a criar todo o tipo de oportunidades. Embora não tenhamos conseguido responder adequadamente aos ataques na Síria e no Iémen, podemos agora ver a bandeira ucraniana a aparecer em todo o mundo em todo o tipo de situações, tornando até difícil a governos que controlam a informação, como o chinês, mantê-la escondida. Está também a aparecer em protestos por toda a Rússia. A Rússia não é o inimigo da paz, nem sequer o governo russo ou a maioria dos militares: é Vladimir Putin. O Reino Unido, tendo abandonado a UE, está agora ao lado da sua centenária inimiga França, da sua némesis do século XX, a Alemanha, e da grande maioria dos governos mundias na condenação da guerra brutal de Putin. Há ligações a serem feitas, ou refeitas, que precisam de ser exploradas e colhidas enquanto o tempo permanece propício.

O exemplo brilhante de como a Alemanha se transformou ao integrar o seu antigo Leste de controlo soviético com o seu Ocidente capitalista deveria ser a verdadeira inspiração neste momento. A nossa luta não é com o povo russo, mas com o seu líder. Este poderia ser o momento perfeito para convidar o povo russo, quando este tiver escolhido um líder diferente, a fazer parte de um novo bloco de poder estabilizador que poderia reunir todos os antigos países soviéticos com a União Europeia, para formar uma nova entidade, suficientemente poderosa para equilibrar até mesmo o domínio emergente da China. Temos tanta história e cultura comuns, tantas fronteiras terrestres, tantas razões para colaborar, que temos de garantir que este tipo de barbárie nunca mais possa voltar a acontecer dentro das nossas fronteiras alargadas.

No Japão, kintsugi é a arte do restauro. Traduz-se por «juntar com ouro». O pote quebrado, restaurado com ouro, que tem maior valor do que o pote integral original. Resgatar algo ou alguém da destruição, da beira do abismo e da inutilidade, dá-lhe um valor maior. Na parábola do filho pródigo, é o irmão “quebrado” que regressa rewstaurado, que tem o grande banquete, irritando o irmão que sempre permaneceu bem e intacto.

Quando esta brutalidade terminar, vamos dar à paz um lar permanentemente alargado nesta parte do mundo, enviando os nossos convites a todos os povos da Europa, ao lado de todos os povos da antiga União Soviética, para se moverem no sentido de criar uma nova força estabilizadora: uma Euro-Russopia ou EUSSR.

Peter Gabriel

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