Se “Motor” (o sexto título, em 2012) já transportava alguns conflitos de transição sónica, a metamorfose fez-se completa no esplandoroso trabalho de 2014. “Wonder Wheel” tornou as composições de André Fernandes mais acessíveis, fruto de uma linguagem mais abrangente. Aqui revemos, junto do guitarrista português, esse deslumbrante disco.
Quando perceberem que as, tão bem, enredadas estruturas e apontamentos melódicos não são pop, estarão a ouvir um deslumbrante álbum de jazz. Quando perceberem que estão presos no encanto das linhas vocais de Inês Sousa, estarão dentro de estruturas de fusão que chegam a ser “rockeiras”, devido à electricidade da execução de guitarra de André Fernandes e ao “peso” das baterias de Alexandrão Frazão e à condução a piano de Mário Laginha. Como âncora estética, sempre sóbrio, está o contrabaixo de Demian Cabaud. Quando perceberem que estão diante de um line-up estelar, saberão que estão a ouvir um dos melhores álbuns do jazz nacional.
Da doçura romântica de “Wonder Wheel” que percorre o disco até ao final agridoce com “Lilac Wine”, passando pelas tempestades de energia que são “300 Pessoas” ou o final “Canção nº3”, André Fernandes foi capaz de harmonizar elementos acústicos e eléctricos, passíveis de esquizofrenia, numa dinâmica saudável que discorre como a própria vida: em rotação ilusoriamente perpétua, até ao momento que cessa.
Disco editado originalmente a 02 de Abril de 2014, “Wonder Wheel” transporta, justificando o seu título, a capacidade de deslumbramento. Os méritos de composição de André Fernandes, um dos melhores guitarristas nacionais, e a capacidade execução de cada um dos músicos que gravaram este trabalho, estão para lá de deslumbrantes. A candura da voz de Inês Sousa surge como uma surpresa, também ela, uma vez mais, deslumbrante. O guitarrista explicou-nos como foi conceber um disco como a própria vida, «esta imagem de uma coisa sempre a andar à volta».
Este disco foi o fim de um período muito conturbado na minha vida, em que muita coisa mudou. Dái esta imagem de uma coisa sempre a andar à volta, ora estás em cima ora estás em baixo.
André Fernandes
“Wonder Wheel” parece um título de umm disco de heavy metal sinfónico…
Pedi a uma amiga minha japonesa, a Akiko Pavolka, para escrever a letra para essa música, porque precisava de letra, não tenho jeito nenhum para escrever e gosto muito daquilo que ela faz. Basicamente, ela é nova-iorquina. Está lá há uns 20 ou 25 anos, e há uma grande nostalgia de muita malta em relação à Coney Island, que tinha aquele parque de diversões antigo, que entretanto foi abandonado e agora tem um aspecto meio fantasmagórico. E continua com esta roda, a Wonder Wheel, uma roda gigante que era uma coisa emblemática daquele parque. Ela escreveu uma letra que, segundo ela, reflecte uma história entre duas pessoas, que tem como fundo esse cenário de Coney Island e da Wonder Wheel. Achei que aquilo podia ter vários sentidos e várias leituras. Por um lado está relacionado com esse tema, por outro também dá um bocado aquela ideia que tem um bocado a ver com este disco. Este disco foi o fim de um período muito conturbado na minha vida, em que muita coisa mudou, e esta imagem de uma coisa sempre a andar à volta, ora estás em cima ora estás em baixo, também fez sentido. E também é um dos temas que reflecte melhor aquilo que diferencia este disco do que fiz para trás, que tem a ver com o formato canção.
O disco é um bocado mais directo do que aquilo que fizeste até aí, mas também deixa espaço de interpretação e um convite para o ouvinte entrar nele?
Até aí, todos os meus discos, com excepção de alguns apontamentos vocais meus (coisas muito dissimuladas nos temas), eram discos instrumentais, totalmente instrumentais. Ainda considerei integrar algumas destas músicas no “Motor”, o disco anterior, e cheguei a falar com a Maria João para gravar vozes nalguns dos temas. Entretanto, o disco foi todo gravado antes e fiquei contente com a forma como estava, não valia a pena pôr voz. Mas fiquei com esta ideia de integrar a voz de uma forma mais assumida naquilo que estava a fazer. Tinha também uma série de temas que andava a escrever, que não tinham muito a ver com os outros discos que fiz, achei que era a altura e decidi falar com o pessoal deste grupo, que também gravou o “Cubo”, e assumir este repertório. Tem essa componente mais directa, porque acaba por ter mais o formato de canção, embora tenha muitas zonas abertas, com improvisação e tudo isso. Mas sim, claramente é um disco menos “estranho”, para quem não costuma ouvir jazz.
Na composição e na pré-produção dos temas, essa novidade na estrutura das canções obrigou a um trabalho muito diferente?
Como nunca tinha gravado um disco assim, apercebi-me, na fase da mistura e da finalização do disco, que alguns destes temas precisavam de ser tratados de uma forma que, normalmente, os discos de jazz não são. Mas no processo de composição não. Quando escrevo, escrevo várias coisas que têm estilos diferentes, também para o meu outro grupo, os sPiLL. Vou escrevendo e o que surge encaixa no que fizer sentido. O processo de composição foi o que foi, os temas saíram, ficaram feitos e escritos e pronto. Depois é que me deu um bocado mais trabalho tentar perceber como é que tudo ia funcionar como um disco, sem ser uma coisa meio bipolar, meio «ora são canções ora um disco de jazz». Acho que, no fim, acabou por ficar bem.
Mas referes-te mesmo à edição dos temas e ao processamento de efeitos, por exemplo?
Sim. Em termos do som, nos discos de jazz gosto muito do som mais cru. O que não quer dizer pouco trabalhado, mas com uma sonoridade mais crua. Não sou grande fã de discos muito limpinhos ou de sonoridades muito polidas. No jazz isso é fácil de obter, logo à partida, com o som dos próprios instrumentos. Depois, na mistura, no fundo, é não estragar aquilo que foi feito. Mas neste disco havia vários componentes – guitarra acústica, sobreposições de guitarra eléctrica, o elemento da voz que tinha de integrar de uma forma que me agradasse, que também sou um bocado esquisito nisso, por não querer que fosse um disco de voz com a banda de fundo. O disco não tem muita coisa extra, de trabalho de pós-produção, mas só o facto de ter de estar a pensar como é que os instrumentos interagem uns com os outros e como é que o todo interagia com a voz, foi para mim uma novidade e ainda me deu alguma dor de cabeça.
Perguntei se a composição tinha tido algum tipo de trabalho específico, porque as idiossincrasias próprias dos músicos (e do Mário Laginha, especificamente) parecem mais esbatidas neste disco…
Por um lado não quis, nem é o que faço, fazer um disco de pop ou de outra coisa qualquer… Não é por nada, mas não é a minha música. E esta música não é isso. Ou seja, ia chamar claramente músicos que me dessem a possibilidade de, principalmente ao vivo, poder trazer repertório novo e tocar o que me apetecesse tocar no momento. Daí ter chamado músicos claramente de jazz. Depois, a escolha de quem iria gravar o disco foi mais ou menos natural. Ao contrário do “Motor”, que é um trabalho muito livre, em que havia muita coisa escrita, mas que vivia totalmente da forma como os músicos mudavam a música, neste precisava que os músicos respeitassem aquilo que estava escrito, para que fosse uma coisa contida, mas sem perder essa capacidade de dar um cunho pessoal e de ser consistente. E o Mário é exímio nisso, com a experiência toda que tem a tocar música que tem esse formato de canção, mas sem nunca perder a personalidade dele. Claro que o facto de a personalidade do Mário, como solista ou como pianista que está à frente, estar mais esbatida ou não estar tão visível só atesta a sua enorme qualidade como músico. Ele consegue gerir muito bem e adaptar-se, fazer com que aquilo que ele toca seja para o bem do todo. Isso aconteceu um bocado da parte de todos os músicos. Todos os músicos do disco podiam ser os solistas do disco, podia ser o Frazão [Alexandre Frazão, bateria], podia ser o Demian [Demian Cabaud, contrabaixo], mas todos eles arranjaram o seu espaço e fizeram com que a música soe um todo, em que ninguém está destacado. Há momentos solísticos claro, mas não há essa sobreposição.
A novidade… A Inês Sousa dá um ar muito transatlântico ao disco, um som assim muito brasileiro…
Sim, sim. Isso é curioso dizeres porque, embora a música não esteja ligada minimamente a música brasileira, a Inês é completamente fanática do universo da música brasileira e tem aquele tipo de voz quente, limpa, mas quente, que existe em muitas vozes, principalmente da música instrumental brasileira. Acho que isso faz parte dela, é a personalidade dela, e por isso acaba por transparecer mesmo quando o repertório não é, evidentemente, relacionado com o Brasil. Ela vai gostar de teres dito isso.
Tens gravado sempre, quase exclusivamente, no teu estúdio. Tens truques para evitar cristalizar um bocado ou algo que procuraste, especificamente, para este disco?
O estúdio, que tenho em conjunto com o Nuno Costa, é relativamente pequeno e está muito habituado a fazer música acústica, porque estamos dentro do meio do jazz. Em termos de material é uma coisa relativamente limitada também, mas que faz com que nós conheçamos muito bem aquilo que temos. Faço muitas gravações para outras pessoas e também as minhas, portanto acabo por saber exactamente o que é que aquele microfone, naquele tipo de som, vai produzir, etc. Uso os prés da mesa, uso os micros que tenho, e a maior parte do tempo que perco com a parte de preparação da gravação é com experimentação de colocação de microfones em sítios diferentes, para ter o som que quero. No disco anterior, na verdade, houve bastante mais pré-produção. Pensei bastante mais no tipo de sonoridade, porque sabia muito bem o que queria. Em relação ao som da bateria é um som muito mais “antigo”, é uma coisa mais “rockeira” dos anos 70, mas isso começou mesmo na própria origem. Fartei-me de chatear o Marcos Cavaleiro para baixar a afinação do bombo, até ele já não conseguir quase tocar aquilo. Neste disco não fiz isso porque, nomeadamente na bateria, o Alex é… Como chamar um cantor que tem uma voz muito característica e tentar que ele cante de outra maneira, não faz sentido nenhum. Sabia que o Alex tem este som, tem quase um pé em cada lado, tem um som que se adapta muito bem a coisas acústicas, “jazzísticas”, e tem uma série de elementos na bateria que remetem para outras coisas… Tem aquele timbalão de chão super grave, mais grave quase que o bombo! Portanto, no fundo sabia que ele ia levar aquele som e limitei-me a tentar captar o máximo e o melhor possível. Depois, na mistura, tentei tirar um bocado partido disso também. É propositado parte dos timbalões do Alex estarem muito presentes, a bateria não tem muita panorâmica, excepto os timbalões, porque pedi-lhe para ele os usar muito, mais do que pratos e tudo isso. Mas de resto não, de resto foi tentar obter o som deles na gravação.
O LADRÃO FAZ A OPORTUNIDADE
Não é descabida a sensação de que este disco tem ali partes mesmo pesadonas… Aquele solo na “Canção nº3”…
Sempre tive esse lado. É óbvio que não vou usar esse tipo de som quando me contratam para tocar standards ou uma coisa assim. Mesmo nos meus outros discos, sempre usei distorção e octavers, de vez em quando. Agora uso cada vez menos as outras coisas. O som é, praticamente, guitarra, delay, a distorção e mais nada. Esta guitarra que estou a usar é um bocado de extremos, ou é muito escura e doce, ou se tento abrir um bocado aquilo está ali no pickup de baixo, com os agudos abertos, e fica assim muito mais agressivo. Gosto disso, não dá para tudo, mas gosto. Neste contexto, nos solos, na parte de improviso da maior parte dos temas, as canções são tão bonitas (bonitas de terem uma melodia muito clara e guitarra acústica) que tanto eu como o Mário, noutro dos temas, sentimos um bocado a tendência de «agora é a parte de sujar isto um bocado». Levar isto para uma coisa mais visceral. Sim, tem ali um som um bocadinho mais agressivo.
Nota-se o teu fraseado com ataques diferentes. Está com uma intensidade diferente em momentos diferentes. Em vez de pedais, o que vais acumulando é experiência que culmina num “processamento” mental?
A parte de “tralha” de guitarra tem mudado muito pouco ao longo dos anos. O meu som se calhar tem mudado. Tocava uma guitarra, uma Ibanez antiga, que tive durante 18 anos e com a qual gravei quase todos os meus discos, e discos de outras pessoas. Foi-me roubada há 2 anos atrás. Fiquei sem essa guitarra e fiquei um bocado tipo peixe fora de água, porque era quase uma extensão de mim. Durante um ano estive com uma guitarra do Mário Delgado emprestada, uma Gibson antiga. Levei algum tempo a habituar-me, depois acabei por adorar e gravei um ou dois discos com essa guitarra. Entretanto, a Yamaha propôs que começasse a usar a guitarra deles e também levei muito tempo a adaptar-me. Sei que o som que tenho com esta guitarra, embora me sinta agora muito confortável, é diferente do som que tinha com a outra guitarra. São coisas diferentes e acaba por fazer com que toque coisas diferentes ou leva-me a usar um determinado tipo de som que a outra, se calhar, não tinha. Nesse sentido, percebo que seja um bocado diferente. Por outro lado, este repertório também é muito diferente, o que faz com que muitos recursos ou muita coisa que imaginasse enquanto estivesse a improvisar noutros contextos de outros discos que tinha, neste disco é diferente. O formato sobre o qual improviso muitas vezes é muito mais curto, tem progressões de acordes muito menores, ou ciclos, e isso faz com que tenha que ir buscar outras coisas. No todo, provavelmente é a razão pela qual soa um bocadinho diferente.
Como também costumas fazer, foi tudo live take ou houve algum cuidado especial de overdubs?
Neste disco fiz alguns overdubs, coisa que nunca fiz nos outros discos, excepto numa coisita ou outra. O disco tem para aí 3 ou 4 canções que são baseadas em coisas de guitarra acústica e, na maior parte desses temas, acabei por juntar guitarras eléctricas ou tocar também acordes depois, na parte dos solos ou qualquer coisa parecida. E alguma coisa foi feita em overdub. Dos outros músicos não, foi tudo live take, sendo que depois acrescentei algumas coisas, mais por razões de textura, para tentar expandir um bocado o som ou engordar um bocado o som na relação da guitarra acústica com o piano.
Entre os teus próprios discos, os discos das colaborações que fazes, as vezes que vais tocar ao vivo com malta, as gravações do estúdio… Estás a ficar riquíssimo ou és apenas workaholic?
[Risos] Não, não, não… Pelo contrário, tenho o pior sentido de gestão de negócio do planeta. Acho que estou sempre a trabalhar, mas não recebo dinheiro [risos]. Não… é mentira, claro. Mas a maior parte das coisas que comecei a fazer extra música, relacionadas com música, mas sem ser a tocar (o estúdio ou, pelo menos, a parte de gravações e a editora também), são coisas com que comecei a lidar muito cedo, aos 20 e poucos. E nessa altura o meu objectivo era permitir que as coisas acontecessem, para mim e para as outras pessoas que estavam ao meu lado. Agora, passado este tempo todo, acho que tenho que mudar aqui um bocado o “chip” e deixar de pensar em fazer isso só para estar a fazer e para que aquilo exista, e tentar pensar que as coisas têm também que ter algum meio de subsistência. O estúdio vive para o estúdio, no fundo, e faço parte ali daquilo. E nos últimos anos houve também uma grande quebra, em geral, na música ao vivo. Agora sinto que as coisas estão a melhorar um bocado, que o pessoal está com um bocadinho menos de medo de arriscar e de fazer coisas, mas os últimos anos foram um bocado negros para toda a gente. A maior parte dos músicos estão a dar aulas, só a dar aulas (e dar aulas não tem mal nenhum), mas quase que substituíram o meio de subsistência como músicos pela subsistência como professores. São fases e não vejo isso de uma forma negativa. Respondendo à tua pergunta, estou longe de estar a ficar rico com o que faço [risos].
AKIKO PAVOLKA
Na banda que lidera, House of Ilusion, a japonesa que New York adoptou é vocalista e pianista. Aí inunda o universo jazz de influências como a pop ou o misticismo nipónico. Contudo, antes de chegar à «cidade que nunca dorme», Akiko tornou-se multi-instrumentista (bateria e baixo) na agitada cena rock n’ roll em Tokyo. Em 1994 terminou o curso na Berklee, com o mérito de somar o prémio Cleo Laine Outstanding Vocalista ao currículo académico. A “poetisa” de “Wonder Wheel” já visitou algumas vezes o nosso país – Guimarães Jazz Festival, Hot Club, CCB ou Auditório Gulbenkian, em Braga.