Budda Guedes, Bluesólogo

Como tantos na sua geração, pegou numa guitarra à boleia de Kurt Cobain e dos Nirvana. Daí, partiu numa busca pelas raízes do rock, até ao blues e até se tornar num guitarrista como poucos. Budda Guedes reflecte sobre a sua evolução como guitarrista e sobre a essência do género musical que se tornou a sua grande paixão.

Budda Guedes sempre foi um músico de banda. Nunca foi um músico isolado, a tocar fechado no quarto e a explorar o instrumento. Fez uma banda antes de saber tocar. «Tinha uma função musical antes de saber tocar um instrumento. Marquei um ensaio na Terça-feira e até Sábado tinha que saber tocar bem aquela música, fazê-la soar. Portanto, a minha função é, imediatamente, fazer música e criar e estar ao serviço da música». A viagem até Muddy Waters, teve início com Hendrix. Muito antes do blues, foi arrebatado pela ferocidade dos Nirvana. Tinha os seus 14 anos de idade e apaixonou-se pela guitarra, graças aos abrasivos riffs de Kurt Cobain em “Nevermind”. Depois mandou-se aos Red Hot Chili Peppers, que têm toda a cena do Hendrix no Frusciante. «O “Blood Sugar Sex Magic”, dos Red Hot, é ainda hoje o meu disco preferido. E cheguei ao Hendrix através do Flea, que o tem tatuado no braço, e fiz a viagem para trás. Rage Against the Machine, que acaba por ser blues, soul e funk com rock. São riffs de soul, pesados e com guitarra distorcida, mas não anda longe de uma música dançável. Os Metallica que também têm muitas cenas de blues, o “Enter Sandman” é quase um blues. Vem muito do riff clássico pentatónico, mesmo o Kirk Hammett a solar é super pentatónico, não é tão shredder e tão exótico. Mas corri as cenas todas». O desencadeamento faz-se pelo encadeamento retrospectivo e pela busca de discos que aprofundassem o protagonismo da da guitarra eléctrica, aos guitar heroes. E o primeiro, claro é o Satch!

«Há um disco do Satriani que é inacreditável. É uma bíblia para mim. O homónimo (de 1995) é um disco onde ele toca muito mais clássico, tem o gajo a tocar harmónica, até diria que é o disco de blues do Satriani. Ouvi-o no outro dia, não ouvia esse disco há imenso tempo, e reparei em tanta frase, este e aquele lick, este e aquele truque, que retirei dali! O Nuno Bettencourt tem um disco incrível nos Extreme, o “Waiting for the Punchline”. Só mais tarde, já no segundo milénio, é que comecei a ir para trás, para os Zeppelin… Hendrix foi logo de imediato. Hendrix e Deep Purple. Sei o “Made In Japan” de cor e salteado». Daqui se depreende facilmente que Guedes sempre teve mais aptidão para o rock, para as cenas de rock britânico muito inspirado no blues e muito jam, de solos gigantescos e de desbundas.

E depois o blues apareceu-lhe com o disco de Jimi Hendrix que, curiosamente, que se chama “Blues”. Uma compilação de blues que Hendrix foi gravando, um disco muito bem feito, com um livro que analisa qual é a inspiração e o autor de cada tema e o que é que aquilo reflecte. Os Big Fat Mamma (antes dos Budda Power Blues ou do Trio Pagú) nasceram desse disco, extraindo inclusivamente o nome de um tema da Big Momma Thornton. A capa do disco apresenta-se em quadradinhos, fotos ilustradas à Andy Warhol, do Albert King, Freddy King, BB King, Muddy Waters, Howlin’ Wolf. «Todos os bluesmen estão nessa capa. E daí é que fiz a viagem para trás: ‘Ok quem é que este gajo ouvia. Quem é que inspirava este gajo que adoro e que toca guitarra desta forma tão irreverente. Onde é que ele foi buscar isto?’».

A música, em dois segundos, é: há 12 notas e dão todas! Basicamente não há grandes regras, na música podes fazer tudo o que quiseres, por isso é que há Joy Division.

Budda Guedes

Permaneceste sempre autodidacta ou tiveste aulas?
Tive algumas aulas numa escola local básica. Aquelas escolas genéricas onde não aprendes grande coisa, mas onde apanhei um professor à maneira, um americano que estava cá, que era muito mais do metal. Tive um período muito mais metaleiro. Ali nos anos 90, tenho a minha primeira Strat, com Floyd Rose. A minha primeira guitarra, a segunda foi uma Satriani. Portanto, apanhei aquela fase hardcore da técnica dos anos 90. Nunca fui muito shredder, talvez por ser preguiçoso. Sempre me fascinou mais o timbre, o groove, o pocket, cenas assim. Por isso é que os Red Hot são uma das minhas bandas de referência, aquilo é evoluído, mas não assenta exclusivamente na técnica e vive muito do timbre, do som. Depois fui ter aulas para uma escola de jazz em Braga, a cidade onde cresci, e aí apanhei um professor muito mais evoluído e tive harmonia e teoria musical. Tive aulas com ele, primeiro na escola e depois aulas particulares, além de aulas de harmonia e composição com o gajo que dava formação musical na escola. Isso é que me deu a harmonia, composição e análise da música. A análise teórica da música é que me abriu os horizontes, porque quando tu entendes «ok, isto tem regras», há cenas que te ajudam quando não tens ideias. Porque há caminhos lógicos… Quando dou aulas, há montes de malta que me pergunta se precisa de saber intervalos e harmonia para tocar, porque os bluesmen que gostam não sabiam ler nem escrever. É válido, mas esses bluesmen tiveram 40 anos de evolução a tocar, não foram à escola e não tinham um emprego nem tocavam guitarra apenas uma vez por semana. Portanto, para evoluir mais rápido, é muito mais simples se entendermos o processo.

Portanto, é determinante ter formação?
É como tudo. Queres ser escritor? Não podes ser escritor sem estudares a tua língua, sem estudares o que são metáforas, figuras de estilo. Haverá um ou outro que é analfabeto e é um grande criador… pode dizer o texto e criar o texto, mas não o vai escrever. Na música acho que é a mesma coisa, se queres ser músico e compositor é interessante que saibas alguma coisa. Agora, vais estudar música clássica? Se calhar não. Se a tua cena não é música clássica, não é por aí. Vais estudar jazz? Se vais tocar punk, porque é que vai estudar jazz? Se quiseres estudar jazz e tocar punk não te faz mal nenhum, o conhecimento não ocupa lugar, mas se queres tocar jazz, punk ou blues, estuda os gajos que gostas de ouvir. Se queres tocar um estilo ou vários, tens que, pelo menos, estudar os estilos. E estudar passa também por ouvir a música. Ouvir muito, porque tu tens que ter essa linguagem. Tens que ter o calão, podes saber o acorde B Maior, mas os gajos no funk se tocarem o B Maior, não o tocam com o mesmo voicing.

Não é só uma questão de escalas, de escolher a melódica menor…
Acho que não. Depois podes é pensar: «Esta escala dá-me esta sonoridade, há muitos gajos dos que  gosto que utilizam muito esta escala. Outros gajos que gosto usam outra». A música, em dois segundos, é: há 12 notas e dão todas! Basicamente não há grandes regras, na música podes fazer tudo o que quiseres, por isso é que há Joy Division.

E truques?
A pentatónica foi uma arma altamente recorrente da minha parte, desde o início. É uma escala que funciona sempre bem em quase qualquer coisa. Depois havia aquelas músicas em que a escala não funcionava. E então estudava um solo e compunha-o por tentativa e erro. Lá está, quando aprendi o que são intervalos, o que é harmonia, o que é que compõe um acorde, o que é um dominante, o que é um diminuto, o maior, o menor… Percebi que se tocar as notas do acorde em cima do acorde, são notas garantidas mesmo que não esteja na escala em lado nenhum. Portanto, se andar aqui a cair nesta nota, vai soar bem de certeza absoluta e já tenho aqui uns auxiliares caso não tenha uma ideia. É uma salvação. Depois, a vantagem disso tudo é que desenvolve a intuição, que vais ganhando à medida que vais fazendo, vais adivinhando e cantando aquela nota que até é estranha na harmonia, mas como já fizeste muitas vezes vai entrar ali. O que me fascina mais no blues é a simplicidade aparente do estilo e a carga que tens que dar a cada nota. Cada nota é uma brutalidade, cada nota é a tua última nota. A cena do BB King, do Albert King… O Hendrix tinha isso que o distingue de todos os outros guitarristas virtuosos, cada nota era uma cena demolidora. O Page tinha isso. O Gilmour é um exemplo do caraças. Gajos que cada nota que tocam vem com uma carga brutal. E mesmo o Slash vem um bocadinho nessa escola.

NÃO EXISTEM ATALHOS

Mas a ensinar e a treinar, para te desenvolveres enquanto guitarrista, em que é que colocas ênfase?
O que tenho notado ao longo do tempo é que todas aquelas escalas e exercícios, que estudei quando era mais miúdo, que eram uma seca do caraças, as diatónicas e os arpeggio e coisas que não soavam a nada,  estão presentes quando vou fazer uma coisa que nunca fiz. «Oh, a técnica está aqui». Ainda bem que estudei aquilo na altura e na altura certa, que é quando tens alguma paciência e o teu cérebro absorve isso. Tenho milhões de coisas para fazer hoje em dia, estudar não é uma coisa que faça muito. Saco discos, ouço discos, estudo conceitos. Tenho uma rúbrica no meu canal YouTube que se chama “Tips For Better Playing”. Aquelas dicas «em vez de tocares a primeira, experimenta caíres na terceira ou na quinta que são notas do acorde também direitinhas, mas não são tão óbvias como a primeira». E isso desperta-te um riffing novo. E depois faço uma coisa que me orgulho imenso: uma jam session que organizo todas as semanas, todas as quartas-feiras, no Station Blues. E isso faz-me tocar e improvisar. É o meu laboratório. É onde levo as guitarras novas, amps, pedais e coisas que testo.

Não há atalhos nos aspectos técnicos?
Não há, porque é muita memória muscular. Se não tiveres a memória muscular, não consegues, porque os teus músculos não reagem. Não tens a técnica no fundo. Para adquires técnica, tens que estar sempre a repetir aquele movimento e a tocar. Com Big Fat Momma, a minha primeira banda séria, todos os sábados e domingos ensaiávamos o dia todo. Porque precisávamos de melhorar as músicas. No fundo, estávamos a criar um rotina de tocar e saber tocar em banda e isso sempre foi o que me fascinou mais, o colectivo, o pocket, o tocares com o baterista e aquilo parecer um instrumento só. Praticávamos imenso o cantar harmonias e cantar com quatro vozes e três vozes e ensaiávamos só vozes e uma guitarra, só para ver a harmonia, e treinávamos até à exaustão. E isso compensou imenso porque agora estamos habituadíssimos a fazer concerto com um ensaio ou nenhum ensaio, cada um ensaia em casa, chegamos e tocamos aquele tema. Temos essa destreza, mas veio de muita prática, muitas horas de prática que, se calhar, hoje não tinha a mínima paciência para fazer. O talento ajuda bastante, mas o trabalho é muito mais relevante do que o talento. Se calhar, o atalho que podes ter é o teu talento. Há gajos que memorizam facilmente, portanto, ao fim de duas vezes está feito. Nunca tive muito bom ouvido, tive que treinar o meu ouvido. O meu irmão por exemplo, que é baterista, tem muito melhor ouvido do que eu. Às vezes, estamos a tocar e ele diz: «Pá, a tua corda sol está meio desafinada» e realmente está.

Mandar para o ar essa corda é fácil!
90% de probabilidade [risos]. Mas ele tem muito bom ouvido. Não é o instrumento dele, não toca melodia, não é? Nunca tive esse ouvido tão definido. Treinei-o a ouvir e como produzo também outras bandas estou sempre à procura do que está mal, do que pode funcionar, do que é que podes tirar para melhorar. Quer do ponto de vista da mistura, quer do ponto de vista do arranjo, da técnica, do timming, do groove… Isso para mim é muito mais fascinante do que tocar muitas notas. Sou muito mais fã daquela melodia inacreditável. Como é que David Gilmour vai buscar a entrada do “Shine On You Crazy Diamond”? Não tem truques nenhuns, é fácil tocar aquilo, mas a genialidade daquelas notas em cima daqueles dois acordes, aquele acorde que cai em Sol Menor e Dó dominante. «Como é que este cabrão se lembrou disto?». A cena do Hendrix, do “Voodoo Child”, do “Little Wing” ou o “The Wind Cries Mary”, é genial! É o mesmo acorde duas vezes com a tónica invertida, «como é que te lembras disto?!» Isto tira-me do sério. Esta é a minha busca sempre, a composição, a criação de algo que te mexa. Isso é que é o meu fascínio com a música.

ARREBATAMENTO

Tecnicamente, o vibrato é o mais importante na guitarra blues?
O vibrato, o ataque da nota, a intensidade da cena… O som é o mais importante. Tudo o resto é acessório. O som, aquela intensidade é que te dá… É que mexe contigo. Não sei se foi o Eric Clapton em entrevista, que dizia que viu o Muddy Waters a tocar num clube em Londres e que eles tocavam baixíssimo. Tocavam com contrabaixo acústico, por isso estás a ver o nível o volume. E que aquilo era um poder, uma cena… É porque não tem a ver com o volume, tem a ver com o que pões na nota, o drive que dás à nota. A cultura africana e negra é muito de repetição, muito de persistência, de transe, quase religiosa… Tudo o que é negro, o que vem da cultura negra, seja americana, seja africana vem muito de viver aquilo com corpo e alma, seja a comida, seja a música, seja declamação, sejam as danças. São super inclusivas, tem toda a gente à volta a viver aquilo.

Para os bluesmen, aquela nota deles vale tudo. Se só tiverem uma nota para dar, mostram-te o que sabem fazer. É o oposto do shredder, que toca um milhão de notas e não fixas nenhuma.

Budda Guedes

Até têm estruturas relativamente simples, para permitir que cada um acrescente algo harmonicamente…
As de raízes ocidentais, porque as africanas são compassos de onze por não sei quantos e é tudo muito complexo. Mas o público vive o concerto juntamente com os músicos, as pessoas cantam e falam por si, nas missas o padre diz qualquer coisa e alguém responde de um lado, é tudo muito interactivo e muito de insistência e há ali um sentido de servidão, talvez pela escravatura, não sei, que os bluesmen tinham muito. Aquele trabalho de escolher aquela nota e encontrar o teu eu. Como é que o Muddy Waters faz a coisa? A obra do Muddy Water até se pode tornar um pouco repetitiva, porque ele encontrou aquele caminho e seguiu, única e exclusivamente, o seu caminho. O Muddy Water tem o “Electric Mud”, que é super “funkalhado”, psicadélico e é uma excepção. O normal dele foi ele seguir aquele caminho que criou em 40 e tal e fazer aquele blues, que agora é considerado clássico, na altura era o blues de vanguarda porque o clássico era o que vinha do Delta. E esses gajos trabalharam muito a intensidade da nota, a dinâmica, o timbre, a voz, o vibrato, o falsete… Trabalharam aquilo que te transmitem, aquela nota deles vale tudo. Se só tiverem uma, eles naquela nota, mostram-te o que sabem fazer. É o oposto do shredder, que toca um milhão de notas e tu não fixas nenhuma, porque não tiveste tempo. A música só tem interesse se comunicares, a música é uma linguagem. Se não comunicas nada e não tens nada para dizer ou se dizes muito e ninguém entende nada do que dizes, dificilmente comove alguém.

E há uma guitarra ideal ou convencional para esse som?
Oiço montes de gente dizer «tocas blues, devias tocar com Fender». Porquê? Os bluesmen que gosto tocavam com tudo, menos o que se tocava na altura naquele estilo. O Muddy Waters vem dos campos, o blues era acústico e ele faz uma banda e toca eléctrico [risos]. E tocou harmónica!

Na origem era com Resonators.
Resonator e acústica, que era o que eles tinham. Quando o gajo chega aí à cidade e pode tocar mais alto e eléctrico, porque não? E hoje em dia achas que aquilo é que é um clássico do blues, quando os gajos na altura foram uns revolucionários. E a seguir vem o Hendrix, com pedais fuzz e amps Marshall e Strats, com bendings e divebombs… Todos eles vêm acrescentar algo. E esse é o mojo! Vi entrevistas do Muddy Waters a dizer que a guitarra que usava era a mais nova que houvesse, a mais brilhante, «queria lá uma guitarra velha». Eles trocavam de guitarra o máximo que podiam, porque queriam era o shinning da guitarra, uma guitarra com status, não um caco velho. Só há relativamente pouco tempo é que as guitarras velhas, ou envelhecidas, começaram a ganhar hype.

Esta entrevista é um excerto do artigo integrado na Arte Sonora #61. Para criar algo especial para uma edição que, em 2018, celebrou 10 anos de publicações pediram-me algo que fosse inédito ou, no mínimo, incomum, na nossa imprensa musical. Então surgiu a ideia de reunir numa edição histórica dez grandes guitarristas portugueses. Para a entrevista completa, podem adquirir um exemplar da revista na loja. A foto é do Tiago Xavier

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