Chick Corea & Os Técnicos de Piano

Em Fevereiro de 2021 o mundo da música perdeu um dos seus maiores vultos, quando morreu o criativo, virtuoso e pioneiro pianista Chick Corea. O músico tinha 79 anos e sucumbiu a uma rara forma de cancro. Dos milhares de testemunhos e mensagens de pesar, sobressaem duas bem singelas, de técnicos de piano que trabalharam com a lenda e ficaram amigos do homem…

Estávamos no dia 11 de Fevereiro. A comunidade composta por melómanos e músicos no mundo inteiro ainda não estava (está?) refeita da morte de Eddie Van Halen e uma chocante notícia acabava de ser confirmada nas páginas das redes sociais do pianista e no seu site oficial. Chick Corea, um dos maiores músicos de sempre, no jazz em particular, um pioneiro da fusão jazz/rock, tinha 79 anos de idade e falecera no dia 09 de Fevereiro, vítima de uma forma rara de cancro que lhe fora diagnosticada recentemente.

Em comunicado partilhado pela família nas redes sociais, podia ler-se uma mensagem que incluiu palavras que o músico preparou para se despedir: «É com enorme tristeza que comunicamos que, no dia 09 de Fevereiro, Chick Corea morreu, aos 79 anos de idade, vítima de uma rara forma cancro que havia sido diagnosticado muito recentemente. Ao longo da sua vida e da sua carreira, Chick deleitou-se na liberdade e na diversão oriundas de criar algo novo e participar nas brincadeiras dos músicos. Era um marido, pai e avô querido, além de um grande mentor e amigo de muitos. Através do seu trabalho e das décadas que passou em digressão pelo mundo, emocionou e inspirou a vida de milhões. Ainda que ele fosse o primeiro a dizer que a sua música era mais eloquente do que as palavras, repetia esta mensagem a todos que conhecia e amava e para os que o amavam a ele:

‘Quero agradecer a todos que, ao longo da minha viagem, ajudaram a manter vivas as chamas da música. É a minha esperança que aqueles com inclinação para tocar, compor, dar concertos ou qualquer outra coisa, o façam. Se não for por vocês próprios, então que seja por todos os outros. Não apenas porque o músico necessita de mais artistas, mas porque é também uma enorme diversão. E para os meus espantosos amigos músicos, que sempre foram como família para mim: Foi uma benção e uma honra aprender e tocar com todos vós. A minha missão foi sempre transportar a alegria de criar onde pudesse e tê-lo feito com tantos artistas que tanto estimo foi a maior riqueza da minha vida’.»

O pianista/teclista foi um dos maiores vultos da fusão, um espantoso músico na área da improvisação, com uma carreira imensamente prolífica. Os seus trabalhos a solo e com os Return Forever cimentaram uma reputação de calibre lendário, que começou a ser construída e aclamadamente notada ao serviço de Miles Davis, com destaque para “Black Beauty: Live at the Fillmore West” e “Miles Davis at Fillmore: Live at the Fillmore East” e, claro, “Bitches Brew”. Mais recentemente, Corea trabalhara em versões de Domenico Scarlatti, Bill Evans, Frédéric Chopin e Thelonious Monk, no álbum “Plays” (2020). Na mesma medida, desvendou veredas com ensemble avant-jazz Circle, além de expandir os seus horizontes com os Return To Forever. Por aqui, destacamos o seu fenomenal disco “Romantic Warrior”. Corea é autor de temas que se tornaram standards do jazz moderno, como “Spain”, “500 Miles High”, “La Fiesta”, “Armando’s Rhumba” ou “Windows”. Tendo sido recipiente do prestigiante National Endowment For The Arts Jazz Master, em 2006, a sua carreira continuou até à sua morte aos 79 anos de idade, em Fevereiro de 2021. Então, as suas contribuições culturais tinham sido reconhecidas por uns espantosos 23 Grammy Awards, mais umas incríveis 60 nomeações a estes prémios.

O pianista trabalhou com a Yamaha desde 1967. Em 2015, referindo-se ao seu Yamaha CFIIIS Grand Piano, dizia Chick Corea: «Se tenho uma ideia do que quero que seja um som e o ponho no piano, o que acontece com este piano é que ele é capaz de me devolver aquilo que a minha imaginação, no seu melhor, me diz ser. A resposta do piano é tão bela que me inspira a continuar a tocar».

As manifestações de pesar e os testemunhos sobre o lendário pianista sucederam-se, numa avalanche de emoções que deixou claro o quão criativo e apaixonado pela música era e aquilo que representou enquanto ser humano. Calam particularmente fundo duas de menos glamour, mas de enorme visceralidade, narradas à Yamaha, num trabalho de tradução que fizemos, por dois técnicos de piano da marca que trabalharam com o mestre, o espanhol Oscar Olivera e o italiano Gianpero Terravazzi e nos apraz muito partilhar…

OSCAR OLIVERA

Embora se tenha tornado cada vez mais difícil abordar os meus sentimentos, na medida em que continuo a trabalhar e a viajar durante esta pandemia, tenho lutado por conter as minhas lágrimas pela perda do Chick Corea. Contactei com Chick Corea pela primeira vez como estudante de piano, em adolescente. Via os seus cartazes e discos nas lojas e ouvia as pessoas falarem do seu génio musical. Adorava que ele não só se expressasse com um piano, mas que também conseguisse fazer sobressair o melhor de qualquer teclado electrónico. Ele fez a música parecer simples e divertida – mesmo quando era séria – e assim se tornou um dos meus ídolos da juventude.

Como técnico de piano, sou grato pela formação que recebi na Yamaha, que me colocou em boa posição para sair em digressão com Chick Corea. Tive a honra de tratar o seu piano durante os últimos 16 anos. O seu tour manager, Brian Alexander, também foi técnico de piano e ,depois da primeira digressão, disse-me que Chick gostou do meu trabalho. Foi tão gratificante ouvir isso que, apesar dos meus nervos, continuei a fazer o meu melhor pelo homem que era tão importante para mim e para tantos outros. Mas Chick não queria ser visto como alguém importante. Apenas gostava muito de fazer música com outros, no estilo que quisesse. Nunca se queixou do piano. Pelo contrário, elogiava continuamente o trabalho e sabia como tirar o melhor partido do seu instrumento sem nunca o maltratar. O piano era o seu melhor amigo. Cuidava dele e dava-lhe muita importância, mas não a si próprio.

Recordo-me do final de um concerto, em que dois miúdos se aproximaram do palco com discos de vinil debaixo dos braços, carregando marcadores. Estavam a pedir um autógrafo antes mesmo de os outros músicos terem chegado ao camarim. Nesta altura, Chick já tinha realizado vários concertos em noites consecutivas e este tinha sido um espectáculo de três horas, mas inclinou-se na boca palco para chegar até eles, acenou-lhes, assinou os seus álbuns e tirou uma fotografia. Subitamente, a multidão, em vez de sair, aglomerou-se para o conhecer e Chick Corea saudou os seus fãs, assinou os seus álbuns e tirou uma foto com quem quisesse uma. O palco já tinha sido limpo, mas o Chick ficou ali para os seus fãs. Os fãs eram tão importantes para ele como os músicos com quem ele trabalhava.

Esse era o verdadeiro Chick Corea. Era um homem humilde, trabalhador, disciplinado e respeitador. Aquele era o verdadeiro Chick Corea, embora lhe chamássemos Chick Corea The Genius. Possuía uma classe magistral reconhecida tanto por músicos como não-músicos. Obrigado, Maestro, o meu ídolo eterno.

GIANPERO TERRAVAZZI

São muitos os artistas que confiam a manutenção do seu instrumento aos seus técnicos. O resultado desta colaboração manifesta-se na performance do próprio instrumento, na medida em que os resultados são feitos por medida para o artista. Por esta razão, a preparação de um piano começa com bastante antecedência, para permitir uma configuração optimizada mesmo antes de tocar. Mas a preparação não pára aí. Depois do piano ser instalado no palco e verificado novamente, é essencial assistir ao ensaio de som do artista, para ouvir algumas das nuances sonoras que possam ser melhoradas com algum retoque, mesmo antes do início da performance. Antes de conhecer o Chick, acreditava que apenas os músicos clássicos eram extremamente exigentes quanto à qualidade e preparação dos seus instrumentos. Mas os pedidos do Chick iam muito além daquelas… Na Primavera de 2003, o primeiro clube europeu Blue Note abriu em Milão. Chick Corea foi o primeiro artista a tocar lá e tocou dois espectáculos por noite durante uma semana inteira.

Algumas semanas antes dos espectáculos, recebemos vários pedidos de Chick Corea relacionados com o piano Concert Grand que iria utilizar. Estes incluíam o seu historial de manutenção, em que circunstâncias o piano era normalmente utilizado, se os pedais tinham sido ajustados correctamente e quem era o técnico do piano. Também foram incluídos uma série de procedimentos recomendados para a afinação do piano, bem como protocolos para a aclimatização do instrumento, a fim de assegurar a sua máxima eficiência durante a actuação. Esta era a seriedade e o elevado nível de atenção aos detalhes com que este grande do jazz abordava o seu ofício.

Conheci pessoalmente o Chick Corea naquele palco, diante de um grande piano de cauda YAMAHA CF. Passei uma semana a assistir este grande artista e os meus deveres incluíam afinar o seu piano antes dos ensaios da tarde, tal como antes de cada uma das actuações da noite. No dia do último concerto, encontrei dentro do seu piano um cartaz assinado com os seus agradecimentos, bem como um CD assinado. Guardo essa atenção dele com gratidão e recordo com verdadeira estima a sua extraordinária capacidade de agradecer, como ele desejou fazer através da mensagem na sua saudação final, antes de deixar este mundo.

Trabalhei com este cavalheiro do jazz em várias outras ocasiões, incluindo actuações no Conservatório de Milão. Aí, mostrou que tanto estava em casa com a música de Scarlatti e Bach como com o jazz. Estes foram momentos de completa alegria musical.

Um pensamento sobre “Chick Corea & Os Técnicos de Piano

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