Dead Can Dance, Os Sons do Império de Alexandre

A música e a convergência helenística dos Dead Can Dance, à luz do pináculo em “Spiritchaser” e dos ciclos de morte e renascimento presentes em “Anastasis” e “Dionysus”.

A conceptualidade da sonoridade dos Dead Can Dance [DCD] não envolve fantasia, antes discorre através dos mitos ancestrais da Europa, da África e da Ásia. Partindo talvez de um anseio sentido por orfandade dessa riqueza cultural que poderá surgir em australianos que, colonos, procuram a sua centralidade no mundo. Resumindo a importância que os DCD tiveram na teatralidade, na conceptualidade musical, bastaria relembrar o impacto da sua estética na banda sonora da mega-produção cinematográfica “Gladiator” – onde Lisa Gerrard emprestou todas as suas idiossincrasias às composições de Hans Zimmer.

Em 1996, os DCD editaram “Spiritchaser”. O sétimo álbum era aquele em que Brendan Perry e Lisa Gerrard conseguiram a sua maior obra, a mais rica e menos oscilante. Depois de abandonarem o gótico e o pós punk, depois de anos e álbuns de pesquisa de várias fontes sonoras geográficas, afastando-se progressivamente do medieval europeu em direcção ao mediterrâneo, ali congregaram um tremenda fusão da música do sul da Europa, dos Balcãs, do Médio Oriente e do Norte de África. Isto com um alcance capaz de se estender até à Índia.

“Spritichaser” era como uma versão musical do Império conquistado pelo fervor aristotélico de Alexandre. E tal como sucedeu com Alexandre, no pico da sua glória, Brendan Perry e Lisa Gerrard deixaram morrer o projecto e a sua gloriosa ideia. Várias compilações e bootlegs foram mantendo o culto até ao retorno.

ANASTASIS

“Anastasis” é o termo grego para ressurreição. O centro do mundo clássico é o motor sonoro dos DCD que ressuscitaram num novo álbum, que não surpreende, mas é deslumbrante como sempre. Amados em todos os quadrantes da música, foram impelidos a completar o que deixaram por concluir na reunião de 2005. “Anastasis”, além de marcar o regresso às edições discográficas 16 anos após o seu álbum mais sólido, foi também catalisador para a maior digressão mundial na carreira da banda.

Os trabalhos que Brendan Perry e Lisa Gerrard desenvolveram a solo nunca se libertaram da atmosfera sonora que haviam desenvolvido conjuntamente e ao mesmo tempo aquilo que, juntos, faziam separadamente. De facto, “Eye of the Hunter” e “Ark” foram sempre como metades incompletas de um álbum de DCD, a metade de Perry, e o mesmo pode ser dito dos álbuns “The Mirror Pool”, “The Silver Tree” ou “The Black Opal”, de Gerrard. Afinal, mesmo em DCD sempre usaram, preferencialmente, as suas vozes separadas e em “Anastasis” isso torna a suceder, com cada um dos músicos a cantar 4 das 8 canções que compõe o álbum.

Nos temas de Lisa temos aquelas notas sonantes, etéreas, as ideias sem palavras. Enquanto Brendan empresta palavras às ideias. “Children of the Sun” reflecte sobre a evolução humana e como o código genético acolhe infusões de memória ancestral até ao presente. Tema também abordado em “Amnesia”, a palavra grega para esquecimento – a trágica fatalidade para os pensadores clássicos, que viam a memória como uma das musas mais importantes – e em como a sociedade esquece a História, aprendendo-a através dos vencedores e assim caindo em erros cíclicos.

O desespero da visão nihilista torna-se o “Opium” que entorpece o instinto de acção do ser humano, assume Perry, antes de nos cantar, em contraposição, “All In Good Time” e de como a idade e a paciência trazem as coisas a bom termo. Todavia, “Anastasis” não conseguiu escapar a um sentido algo vazio, a esse esvaziamento lazariano, recuperado inesperadamente o fôlego da vida. O álbum soava ainda demasiado sintetizado e pouco unificado, sem a alegria da vida. É aqui que surge o nono álbum de originais, no folgado “Dionysus”.

DIONYSUS

As tapeçarias instrumentais do primeiro acto e as evocações do segundo apenas poderiam ter sido feitas pelos Dead Can Dance. E esse é o melhor elogio que se pode fazer ao disco. O álbum mais conceptual dos DCD. Os seus dois enormes actos retornam à solidez e colorido criativo de “Spiritchaser”, ainda que esteja mais focado musicalmente no sul europeu clássico, no mundo de Eurípides e das vibrantes celebrações do Cristo do mundo helénico: Dioniso, a divindade dos ciclos vitais, das festas, do vinho, da intoxicação xamânica. Esse libertador da mente, que devolveu a inspiração a Perry e Gerrard. Os compositores que acolhem o êxtase criativo e revelam a verdade do seu nome, a morte viva, a morte que pode dançar, as bacantes ou ménades.

Na terceira parte do Primeiro Acto de “Dionysus”, o ritmo sincopado de “Dance Of The Bacchantes” remete-nos para esses misteriosos rituais de morte e renascimento e loucura. Um equilíbrio difícil de atingir, mais ainda filtrado pelos excessos dionisíacos, mas plenamente gratificantes e geradores de uma ânsia anabática, rumo ao Segundo Acto do álbum, ao cimo do Monte Tmolo, às suas recompensas e ao abandono do encontro psicopomposo. O mistério não é dissipado, mas estreitado e passível de repetição. De Vida e de Morte, de Dança, de Excessos, de Ressaca e de Renascimento.

Estas reflexões são sempre pontuadas pela ancestralidade mitológica evocada pelos cantares de Lisa Gerrard e sempre com essa estética que foi assumida, principalmente, a partir de “The Serpent’s Egg”. Elementos de riqueza que não se submetem a uma estratégia new age bacoca, mas a uma profundidade estrutural derivada de uma conceptualidade enraizada na, precisamente, profundidade musical.

De resto, ouvir DCD com um conhecimento de trazer por casa da hierofania dos mitos gregos ou das redundantes lições do ensino secundário sobre o pensamento clássico (reduzindo-o a péssimas interpretações da alegoria da caverna de Platão) é uma experiência imensamente menos rica.

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