Uma reinterpretação da música do filme de Oliver Stone, um pungente poema sónico de Vangelis a Alexandre da Macedónia, sob o lirismo febril do magnífico romance “A Última Viagem” de Laurent Gaudé.
«Poder-se-ia dizer que compus de memória, aquilo que é mais importante em todos nós… Quando fechamos os olhos e nos predispomos, podemos, de facto, recordar e imaginar determinadas coisas. E todos esses sabores étnicos e musicais virão até ti. Trata-se da linguagem universal da música», confessou Evangelos Odysseas Papathanassiou a respeito das composições que criou para “Alexander”, filme de 2004. O mesmo sucede com a reimaginação que Gaudé faz das últimas horas da personagem xamânica de Alexandre e da aberrante degradação fraterna dos seus generais.
De um tal ângulo de abordagem, este romance assemelha-se menos a um fresco histórico do que a uma lenda revisitada sob a forma de um poema épico, transportado pelas vozes dos vivos e dos mortos que se alternam e respondem uns aos outros ao longo da narrativa, como testemunhas desta vasta epopeia. Harmoniosamente simples e pungente, a caneta de Laurent Gaudé reescreve o mito, convidando-nos a seguir o espírito de Alexandre quase até ao fim do mundo, até à eternidade que «o homem que não sabia morrer» escolheu para si próprio. É um deslumbrante texto cheio de originalidade e sensibilidade e um fenomenal exercício estético.
De regresso a Vangelis, o grego escreveu, arranjou e produziu a banda sonora para o filme de Oliver Stone desde Setembro de 2003 e depois levou quase um ano a ajustar a sua música às imagens. Todavia, a magnitude das composições necessitava de trabalho orquestral, que passou então para as mãos de Nic Raine, que conduziu ainda os violinistas Vanessa-Mae e Dominique Lemonnier, a harpista Maria Bildea, a Epris Polyphonic Ensemble, o tenor Konstantinos Paliatsaras e a cantora Irina Valentinovna Karpouchina, além de uma orquestra de cerca de 200 músicos. A obra é, essencialmente, um híbrido de sintetização e orquestra, onde se fundem os sons electrónicos com os acústicos e ainda os coros.
“Titans” é o grandioso tema nuclear e talvez aquele que soará mais familiar, por evocar a banda sonora de “1492: Conquest of Paradise”, ainda que soe mais abrasiva. “Eternal Alexander” e “Tender Memories” são composições mais introspectivas, pontuadas por motivos orientais. A primeira é marcante, um adágio em crescendo de intensidade, com o simples e poderoso recurso dos coros. Os momentos mais exóticos serão aqueles que retratam a obsessão e o encantamento de Alexandre com a Babilónia e com a Ásia, casos de “Gardens Of Delight” e “Roxane’s Dance”. Esta é uma xamânica e propulsiva fantasia de dança que nos remete para o abandono a que Alexandre se vota nas primeiras páginas da obra de Gaudé, sentido o iminente colapso físico, mas transcendendo-o através de uma pulsação dionisíaca. Já “Gardens Of Delight” é a composição mais longa nesta banda sonora, onde Vangelis funde as suas idiossincrasias com vozes celestiais e instrumentação mesmerizante, dentro dum ritmo que finciona como um encantamento.
Mas o momento mais inspirado é “The Drums Of Gaugamela”. Absolutamente sumptuosa, uma das mais heróicas romantizações da guerra, com as percussões sincopadas, os coros etéreos e as explosões melódicas e onde nos aproximamos mais do romance de Laurent Gaudé, dono de um extraordinário e febril lirismo e a envolvência progressiva do mito a transcender a factualidade, até um final absolutamente épico. A dimensão poética e literária de “A Última Viagem” contrasta com a sua reduzida dimensão. Reduzida, apenas no número de páginas, pois a obra é possuidora de uma beleza e lirismo extraordinários, conseguidos através de uma escrita que, como a música aqui criada por Vangelis, é tão majestosa quanto despretensiosa.
Um pensamento sobre “Vangelis & Laurent Gaudé, Alexandre O Grande”