Idos de Março

Ulver & Os Idos de Março

Um sumário do contexto histórico e político em torno do assassinato de Júlio César nos Idos de Março e a sua reinterpretação contemporânea no magistral álbum “The Assassination of Julius Caesar” dos Ulver.

O assassinato de Júlio César, nos Idos de Março em 44 a.C., é um acontecimento crucial na história da Roma Antiga que marca a transição da República para o Império. Aqui pretendemos abordar (de modo sumário, naturalmente) a intrincada dinâmica sócio-política da República Tardia de Roma, a ascensão de Júlio César ao poder, as conspirações que levaram ao seu assassinato e o impacto duradouro da sua morte no curso da civilização ocidental. Ao mesmo tempo, olhamos o álbum dos Ulver, “The Assassination of Julius Caesar”, e como este nos oferece uma meritória interpretação contemporânea destes acontecimentos históricos, entrelaçando temas de poder, ambição e traição.

I. A Ascensão de Júlio César

A ascensão de Júlio César ao poder não foi meramente o resultado de uma ambição pessoal, mas estava profundamente enraizada na turbulenta paisagem política da República Tardia romana (Goldsworthy, 2006). Nascido no seio de uma família nobre, César navegou no complexo mundo da política romana com uma combinação de riqueza herdada, proezas militares e alianças estratégicas. As suas campanhas militares na Gália não só expandiram as fronteiras territoriais de Roma, como também o enriqueceram (muito) pessoal e politicamente, uma vez que ganhou imensa popularidade entre os seus legionários e a populaça romana.

Ao regressar a Roma dessas campanhas, César viu-se envolvido numa amarga luta pelo poder com o seu antigo aliado, Pompeu, o Grande, e a facção senatorial conservadora conhecida como Optimates. O Senado, receando a crescente influência e poder militar de César, exigiu que este dissolvesse as suas legiões e abdicasse do comando. No entanto, Júlio César desafiou as ordens do Senado e atravessou o rio Rubicão com o seu exército, dando início a uma guerra civil que determinaria o destino da República.

II. Tensões Políticas na República Tardia

A República Tardia de Roma (146−27 a.C.) foi um período repleto de tensões políticas e de diferentes facções de poder, que disputavam o controlo do Estado (Beard, 2016). Os Optimates, que representavam os interesses da elite senatorial e da aristocracia tradicional, procuravam manter o status quo e preservar o poder do Senado. Em contraste, os Populares, liderados por figuras como Júlio César, defendiam a causa das pessoas comuns e advogavam reformas que abordassem as desigualdades socioeconómicas e expandissem os direitos das classes mais baixas.

As políticas populistas de César, como a redistribuição de terras e a extensão dos direitos de cidadania aos italianos não romanos, tornaram-no adorado junto das massas, mas afastaram-no do poder senatorial. Senado esse que, receando o poder e a popularidade crescentes de César, classificou-o de tirano e procurou limitar a sua influência através de manobras políticas e de obstrucionismo legal/jurídico.

III. A Travessia do Rubicão

A travessia do Rubicão*, em 49 a.C., marcou um ponto de viragem decisivo na busca de Júlio César pelo poder e na eventual queda da República Romana (Syme, 1939). Ao conduzir o seu exército através do rio, César violou o princípio sacrossanto do controlo civil sobre os militares e declarou efetivamente guerra ao Senado. Esta acção audaciosa obrigou o Senado a confrontar-se com a realidade das ambições de Júlio César e desencadeou uma guerra civil.

As rápidas vitórias de César sobre as forças de Pompeu em Itália e na Grécia solidificaram o seu controlo sobre o Estado romano e prepararam o caminho para a sua eventual ascensão à ditadura. Apesar das tentativas iniciais de reconciliação com os seus adversários políticos, posto de forma bastante simples e resumida, a busca intransigente de César pelo poder e pela autoridade alienou muitos dos seus antigos aliados e preparou o terreno para a conspiração que acabaria por conduzir ao seu assassinato.

*O rio Rubicão (em latim Rubico; em italiano Rubicone) é um pequeno curso de água do nordeste da península Itálica. Na época romana, corria para o mar Adriático entre Arímino (atual Rimini) e Cesena.
IV. A Conspiração

A conspiração para assassinar Júlio César não foi o resultado de uma única circunstância ou qualquer tipo de vingança pessoal, mas sim o culminar de ressentimentos e rivalidades políticas de longa data no seio da elite romana. Liderados por senadores proeminentes, como Brutus e Cassius, os conspiradores consideravam-se defensores da República contra a alegada tirania e ditadura de César.

As motivações dos conspiradores eram diversas, indo desde preocupações com a erosão dos valores republicanos tradicionais a queixas e ambições pessoais (Suetónio, 1957). Brutus, em particular, sempre foi retratado como dividido entre a sua lealdade a César como benfeitor e a sua fidelidade aos ideais da República. Em última análise, os conspiradores viam o assassinato de César como um sacrifício necessário para preservar a integridade do Estado romano e impedir o surgimento de uma nova monarquia.

V. O Assassinato

Nos Idos de Março (15 de Março) de 44 a.C., Júlio César foi assassinado por um grupo de senadores liderados por Brutus e Cassius na grande sala do Senado. O assassinato chocou o mundo romano e provocou ondas de choque em todo o Império. Embora a morte de César possa ter tido como objectivo restaurar a República, acabou por mergulhar Roma num novo período de guerra civil e turbulenta instabilidade.

Na sequência do assassinato de César, assistiu-se a um vazio de poder que desencadeou uma luta pela supremacia entre os seus apoiantes e opositores. Octávio, o herdeiro adoptivo de César, emergiu como um actor-chave na agitação política que se seguiu, forjando alianças com figuras como Marco António e Lépido para vingar a morte de César e consolidar o seu próprio poder. Acabou por ser ele a tornar-se no Divino Augusto, conretizando todas as ambições políticas de Júlio César e, ironicamente, contrariando todos os esforços senatoriais no início desta crise…

VI. “The Assassination of Julius Caesar”, do Ulver

O álbum dos Ulver, “The Assassination of Julius Caesar”, oferece-nos uma interpretação moderna destes acontecimentos históricos que tiveram lugar nos Idos de Março, combinando magistralmente elementos de música electrónica com rock alternativo e ambientes de dimensão cinematográfica, para criar uma paisagem sonora assombrosa e atmosférica. Através das suas letras evocativas e composições musicais, o álbum explora temas de poder, traição e o colapso de impérios, traçando paralelos entre a Roma antiga e a sociedade contemporânea.

Desde a assombrosa faixa de abertura “Nemoralia” até à conclusão épica de “Coming Home”, o álbum dos Ulver capta a essência da queda de Júlio César e o profundo impacto que isso teve no curso da civilização ocidental. Faixas como “Rolling Stone” e “Southern Gothic” mergulham nas complexidades do poder e da ambição, enquanto “Transverberation” e “1969” reflectem sobre o caos e a incerteza que envolveram Roma no rescaldo da morte de César.

As palavras de Ando Woltmann sobre o disco, extraídas às liner notes no Bandcamp oficial dos noruegues, são imensamente oportunas:

31 DE AGOSTO DE 1997 foi uma das noites mais quentes de Paris nesse ano. Pouco depois da meia-noite, um Mercedes Benz preto precipita-se pelas ruas escuras com uma horda de paparazzi vorazes a reboque. No túnel da Pont de l’Alma, o carro desvia-se contra um pilar de sustentação do tecto e, no eco do rugido metálico, morre Diana, a Princesa de Gales. O mundo perdeu um dos seus maiores ícones e a morbidez da cultura popular atinge um novo máximo.

A história é estranhamente ressonante com o mito da deusa grega Artemisa (Diana, para os romanos) e do caçador Actaeon, que, depois de ter visto a deusa a banhar-se nua, é transformado num veado e despedaçado pelos seus próprios cães de caça. Esta imagem abre o 13.º álbum dos Ulver, “The Assassination of Julius Caesar”.

Tais saltos quânticos históricos ocorrem com frequência no universo musical do Ulver, que nunca foi limitado por nenhuma lei física. E o jogo indisciplinado da banda com o mito, a história e a cultura popular nunca foi tão manifesto como aqui.

Desde a tentativa de assassinato do Papa João Paulo II, em Maio de 1981, até à casa negra e esquisita com a morada 6114 California Street, em São Francisco, mais conhecida como a sede da Igreja de Satanás de Anton LaVey – os Ulver movem-se perfeitamente através do tempo e do espaço, e conseguem, à sua maneira estranha, criar um quadro coerente com um pano de fundo profundamente pessoal. «I want to tell you something / about the grace of faded things», como é dito na canção “Southern Gothic”.

Aqueles familiarizados com esta resoluta alcateia de lobos de Oslo não ficarão surpreendidos com o facto de, uma vez mais neste disco, também eles estarem a mudar de forma. Sem nunca ter medo de desafiar ou redefinir as convenções musicais actuais, os Ulver lançaram aquilo a que chamaram, na altura, “o seu álbum pop”. Mas não é preciso preocupar-se com a chatice da rádio ou com os doces pastelões – os Talk Talk e os Music Machine são música pop tão boa como qualquer outra no universo dos Ulver.

Um universo onde “pop” é mais uma marca de distinção, denotando imediatismo e possível movimento corporal. A Factory Records e “Welcome to the Pleasuredome”. “The Assassination of Julius Caesar” é um álbum que a banda desejava fazer há largos anos, para mergulhar na música da sua infância, juntamente com as memórias agora desvanecidas e as nuvens de romance à deriva.

Após o (para eles) surpreendente sucesso do híbrido “ATGCLVLSSCAP”, o caminho acabou por ser aberto para um álbum de estúdio completo dos Ulver. Desde “Shadows of the Sun” que a banda não trabalhava sob critérios tão claramente definidos, mantendo-se fiel a uma estética. Tal música nunca é facilmente concebida, mas o ethos inabalável dos Ulver de seguir os seus instintos mostrou-lhes claramente o caminho. O medo da repetição e da paralisação é tão instintivo na mente dos Ulver como a fome é para os seus homólogos na natureza.

A equipa central por detrás deste álbum é constituída por Kristoffer Rygg, Jørn H. Sværen e Tore Ylwizaker, em companhia de Ole Alexander Halstensgård, que também contribuiu de forma significativa para álbuns anteriores. Como de costume, há convidados de destaque, o guitarrista experimental Stian Westerhus coloca a sua assinatura em várias malhas, o mesmo acontece com os membros associados Anders Møller e Daniel O’Sullivan. O lendário xamã dos Hawkwind, Nik Turner, acrescenta o seu saxofone a “Rolling Stone”.

“The Assassination of Julius Caesar” foi misturado por Martin “Youth” Glover, conhecido de bandas como Killing Joke e The Fireman (com Paul McCartney), além de ter sido produtor de “Bitter Sweet Symphony” dos The Verve e de muitos outros grandes nomes. O resultado é épico e alargado como um drama histórico, sem nunca enfastiar o ouvinte.

VII. Ad Finem

O assassinato de Júlio César nos Idos de Março foi um momento crucial na história de Roma que marcou o fim da República e o início do Império. Através de um exame minucioso do contexto histórico e político que envolveu o assassinato de Júlio César e o álbum dos Ulver “The Assassination of Julius Caesar”, obtemos uma visão mais profunda das complexidades do poder, da ambição e da traição que moldaram o curso da civilização ocidental. Tal como os acontecimentos históricos e as interpretações musicais nos recordam, as lições do passado continuam a ressoar no presente, oferecendo uma visão valiosa sobre a condição humana e a natureza cíclica da história.

Referências: Pierre Grimal. “The Dictionary of Classical Mythology.” Blackwell Publishers, 1986; Adrian Goldsworthy. “Caesar: Life of a Colossus.” Yale University Press, 2006; Mary Beard. “SPQR – Uma História da Roma Antiga”. Bertrand Editora, 2016; Ronald Syme. “The Roman Revolution.” Oxford University Press, 1939; Suetónio. “Os Dozes Césares”, Editorial Presença, 1963.

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