Grails, Filophonia

O que faz dos Grails a grande banda que são é que, em duas décadas de existência, já experimentaram mais ideias e assumiram mais riscos do que a maioria das bandas fará em toda a carreira. Desde o sentido folk e kraut dos primeiros trabalhos, passando pelo ascetismo de trabalhos “Take Refuge In Clean Living” ou “Doomsdayer’s Holiday”, até ao urbanismo e contemporaneidade inaugurada em “Deep Politics” e depois renovada em “Chalice Hymnal”.

Pela ligação que, no seu início, tiveram com a label dos Neurosis, pelo facto do baterista Emil Amos tocar junto de Al Cisneros, baixista dos Sleep, em OM, a banda de Portland é admirado no universo do doom, do post rock e do post metal, mas o seu sentido exploratório também causa admiração nos circuitos de música alternativa, digamos assim. De qualquer forma, se é excitante para o ouvinte sentir que a banda não se prende a fórmulas consagradas, por outro pode ser um desafio perceber onde encaixar os Grails. O guitarrista Alex Hall confessa que isso tem sido marcado um pouco a história desta banda: «Estamos no meio de algo e ninguém sabe muito bem onde nos colocar. Se és uma banda de metal, com o nome, sei lá, Bomb Slammer ou algo assim, as t-shirts têm um certo visual e o teu backline é composto por amps Orange, as pessoas sabem do que se trata e podes ir a qualquer lado no mundo e tocar para uma audiência decente. Com os Grails, a malta mais artsy vê estas associações com a cena do doom metal e afasta-se e depois a cena do metal também não sabe muito bem o que fazer connosco. Sempre estivemos nas margens, algures nas fissuras. Mas isso também significa que as pessoas que realmente nos descobrem apreciam bastante aquilo que fazemos».

Foi apenas em 2019 que os Grails se estrearam em território nacional, na da 6ª edição do Tremor, o festival açoriano que promove uma experiência musical no coração do Atlântico e torna São Miguel, a maior ilha do arquipélago dos Açores,  num palco privilegiado para a música, com uma programação interdisciplinar que inclui concertos, interacções na paisagem, laboratórios, momentos dedicados ao pensamento, arte nas ruas e residências artísticas que se fundem com a comunidade local. Um evento feito à medida dos Grails. «Não sabia muito sobre o Tremor. Quando nos fizeram a oferta fui pesquisar e parece-me incrível. O cartaz é extremamente atractivo. Muitas vezes fazem-nos convite para festivais com bandas mais pesadas e, neste caso, o cartaz é feito com o tipo de música que ouvimos. Não ouvimos música pesada. Cansámo-nos um pouco da cultura heavy metal. Portanto, quando vi que o Colin Stetson e os Cave estavam no cartaz achei muito interessante. Vamos lá ficar durante os três dias, foi assim que consegui convencer a malta a fazer esta viagem», admite Alex Hall sobre o festival que, na altura, deu o mote para esta entrevista.

No final de 2019, finda a sua última digressão nos Estados Unidos, os Grails haviam rumado a estúdio para iniciar o trabalho no sucessor de “Chalice Hymnal”. A esperança, antes do surgimento da pandemia e todas as incertezas geradas a respeito de lançamentos discográficos e digressões, era a de terminar o disco no início de 2020 e preparar a sua edição. Antes de iniciar o exercício de perguntas e respostas, o guitarrista da banda pediu apenas para esclarecer algo: «Deixa-me só dizer que não detestamos heavy metal. Todos nós viemos do metal. Dizer que o detestamos é daquelas coisas que pode aborrecer muita gente [risos]. Mas estamos um pouco cansados da cultura doom metal, pode ser bastante unidimensional, aborrecida. E provavelmente existe por aí uma banda chamada Bomb Slammer. Inventei isso, mas se existir espero que não se sintam ofendidos».

Se alguma vez tivéssemos obtido um tremendo sucesso, talvez já não existisse a banda. O dinheiro leva as pessoas a fazerem coisas estranhas. Essa nunca foi a nossa realidade.

Alex Hall

A WikiPedia diz-me que os Grails estão a celebrar vinte anos… É obra!

Já são vinte anos desde que comecei a tocar com o Emil, mas isso só se tornou nos Grails um pouco mais tarde. De qualquer modo, já são vinte anos a fazer música em conjunto com o Emil. Se, nessa altura, alguém nos tivesse dito que ainda estaríamos a tocar juntos ao fim de todo este tempo, não teríamos acreditado. Mas é mais fácil para as bandas do underground, ter uma carreira longa, isto é. Há menos exigências para obter sucesso a sobrecarregarem essas bandas. Se és uma banda underground podes fazer aquilo que bem entenderes e, desde que não tenhas quaisquer expectativas de sucesso ou enriquecer… Bom, podes definir o sucesso de formas diferentes, mas se não tiveres a expectativa de ganhar a vida dessa forma, podes fazê-lo para sempre. Não há motivos para parar. Como todos sabem, o dinheiro corrompe tudo, inclusivé a música. Se és uma banda underground, que nunca fez dinheiro, essa questão nunca entra na equação. Se alguma vez tivéssemos obtido um tremendo sucesso, talvez já não existisse a banda. O dinheiro leva as pessoas a fazerem coisas estranhas. Essa nunca foi a nossa realidade.

Naqueles primeiros tempos os Grails actuavam muito regularmente na Europa. Entretanto, os concertos no Velho Continente tornaram-se raros até que, nos últimos dois anos, tocaram mais que nunca em território europeu. Isto tem alguma razão específica?

Numa banda como a nossa, temos que seguir as oportunidades onde elas surgem. Se há um festival ou algo assim que nos faz uma oferta, aceitamos. No início, creio que fizemos duas digressões europeias antes de sequer tocar no Leste dos Estados Unidos, tipo Nova Iorque… Creio que isto teve que ver com estarmos na editora dos Neurosis. Quem faz parte da nossa geração lembra-se da forma como funcionavam as editoras no underground. Se assinavas com a Neurot, automaticamente, tinhas uma reputação e uma audiência, porque as pessoas seguiam essa editora. Portanto, assinámos com a Neurot porque, basicamente, foi a única editora que mostrou interesse e, de repente, tínhamos uma audiência dentro de uma cena musical muito específica. Não sentíamos ter muito em comum com isso, mas estavam a prestar-nos atenção. Um dos agentes de booking com quem ainda trabalhamos, começou a receber contactos de promotores europeus que lhe diziam estar interessados, porque éramos uma banda da Neurot. E aceitávamos as oportunidades. Afinal, não temos nem management, nem muitos recursos para fazer as coisas acontecerem por nós próprios. Estamos muito dependentes de outros.

Devo confessar que sou um desses tipos que começou a comprar os vossos discos por causa da Neurot…

Não foi assim há tanto tempo que as editoras ainda tinham uma importância significativa. Não que agora não tenham qualquer tipo de superlatividade, mas sinto falta disso, para ser honesto. Essa face do underground, em que algumas editoras, pelo menos, tinham um poder curatório, naquele sentido de: «Se esta editora está a investir recursos nisto, então vale a pena averiguar».

Porque achas que isso se perdeu?

Ainda vejo acontecer algo semelhante, mas apenas com as editoras de reedições. Se algum desses tipos está a investir tempo e esforço para reeditar algo, sabes que há uma grande probabilidade de ser algo bastante bom, que vale a pena. Mas não é algo recorrente na cena musical, é um facto. Talvez tenhamos chegado a um ponto na civilização ocidental em que já foi feita música de sobra e pensamos «estamos fartos disto, vamos ver o que foi feito para trás» [risos].

Vá lá, não acreditas nisso. Se assim fosse, porque continuarias a fazer discos?

Tens razão, tenho forçosamente que não acreditar nisso, mas volta e meia tenho essa suspeita [risos].

Falando de fazer discos, se pensarmos em “Deep Politics” e “Chalice Hymnal”, os teclados tornaram-se bastante proeminentes no som dos Grails. Recorrer a essa ferramenta mudou a forma como escrevem música?

[Hesitação] Sim… Usar teclados, samples e texturas foi uma progressão natural. Especialmente a partir do momento em que o Emil e eu deixámos de viver na mesma cidade. É mais fácil trabalhar a música, a partir de nossa casa, se o fizeres com teclados. É uma ferramenta que se presta perfeitamente para gravar em home studio. É fácil obter um bom som de teclados num registo caseiro. Não temos a possibilidade de gravar em ambiente de banda recorrentemente. E assim podemos trabalhar, a partir de casa, de forma contínua. Quando arrancámos com o projecto Lilacs & Champagne também começámos a trabalhar de forma mais individualizada e isso alastrou para os Grails de forma natural.

Os teclados podem tornar-te preguiçoso no processo de composição, no sentido em que oferecem logo um som com muita textura…

Não diria tanto, mas pode acontecer. Preocupamo-nos mais em evitar dependência do recurso a sons MIDI ou Instrumentos Virtuais. É difícil, porque actualmente a tecnologia chegou tão longe em relação às coisas que podes fazer, mesmo os softwares que existem para criar sons de guitarra, modelação de guitarra, e o soa melhor que nunca. É verdadeiramente tentador ganhar uma dependência disso, em vez de procurar sons reais. E a questão é que, por mais que digas a ti próprio que soa igual, consegues sempre perceber a diferença. De alguma forma, falta sempre qualquer coisa. Consegues sempre sentir a diferença entre algo que foi gravado em Ableton e algo, nem vou dizer gravado para fita analógica, mas de forma mais natural, que a certa altura implicou o movimento de moléculas no ar. Portanto, é algo perigoso ceder a isso e demasiada gente na música parece nem sequer importar-se, para seu próprio prejuízo. Pois acredito que consegues realmente perceber as diferenças. Tendo dito isto, já usámos Instrumentos Virtuais.

É uma questão de equilíbrio?

Claro. Tentamos que isso nunca seja a fonte primária daquilo que estás a ouvir. E há uma coisa nesta banda, que é uma intensa dedicação à mistura. Esse processo quase se torna no epicentro de composição e criatividade. Há muitos detalhes e toneladas de camadas. É essa a forma como trabalhamos, pegamos em algo e não largamos. Como tornar este som mais estranho? Temos o original, submetemo-lo a reamping, experimentamos outra coisa e acrescentamos uma camada de um sinal de fita ou um sample… No final, se tivermos feito bem o nosso trabalho, mesmo que tenhamos começado com uma fonte MIDI isso não se vai notar tanto. Porque estará bastante trabalhado e integrado na mistura.

Penso que é importante estabelecer parâmetros no que respeita à música e ao equipamento. Ter que fazer mais com menos. Ser mais criativo é sempre a melhor forma de fazer algo.

Alex Hall

Como é o teu rig por estes dias?

No que respeita a digressões, outra das coisas sobre ser um músico pobretanas, numa banda algo obscura, é que te vês obrigado a viajar o mais leve possível. Toda a nossa cena com gear sempre obedeceu a parâmetros bastante rígidos. Quando estamos em digressão, viajamos quase sempre por avião e as companhias aéreas são bastante intransigentes e, basicamente, foram estas que tomaram as decisões relativamente ao nosso equipamento [risos]. Um máximo de duas peças e obviamente contando com o limite de peso. Não podemos pagar por cinco peças de bagagem. Quando começámos podias levar duas peças gratuitamente, agora já se paga um balúrdio. Portanto, quando implica termos que voar, o nosso setup é bastante reduzido. Transporto uma guitarra e a minha pedalboard, com uns sete ou oito pedais meticulosamente escolhidos, pois a pedaleira não pode ser grande, nem ultrapassar os limites de peso. Mas, na verdade, até curto isso. Penso que é importante estabelecer parâmetros no que respeita à música e ao equipamento. Ter que fazer mais com menos. Ser mais criativo é sempre a melhor forma de fazer algo. Detesto ver aqueles YouTubes tipo “rig rundown”, vês isso?

Na verdade, sim…

Por vezes, detesto ver isso. Enjoa-me ver algumas bandas horríveis que… Porque pensam que precisam de dez guitarras? Porque raio precisas de uma sala cheia de equipamento outboard? Ninguém se importa. Ninguém. Não precisas de dez pedais de delay, o público jamais irá perceber a diferença entre eles.

Então, tendo que escolher um entre dez ou considerando as limitações que admitiste ter na elaboração da tua pedalboard, quais são os pedais sem os quais não consegues viver?

Uso um EHX Bass Microsynth, que julgo soar melhor que o normal, por ser mais focado nas frequências mais graves e por isso tem um som mais real. Mas foi modificado por um tipo de Filadélfia, para poder usá-lo com um pedal de expressão que, na verdade, é um pedal de volume, mas controla o filter sweep…

Nesse caso é quase como um pedal wah…

Exacto. É bastante similar, estás apenas a controlar aquele filtro específico, mas soa super bem. Torna o pedal, que originalmente já tem um excelente som, dez vezes mais útil. Essa é a minha arma secreta, por assim dizer. O meu pedal favorito, actualmente. Pelo que me disse o técnico, é uma modificação bastante fácil de fazer, surpreende-me que mais gente não o faça.

Sempre me pareceu que em Grails há recurso a tipos diferentes de afinação. Podes dar-me exemplos das preferidas?

Tento não usar afinações alternativas ao vivo, por viajar apenas com uma guitarra. Mas há muitas canções em que o fazemos. Gosto muito de afinações em acorde aberto. Uso muito uma em Dó (C-G-C-G-C-C), é grave, com muitos sobretons.

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