Jimi Hendrix elegeu a música em detrimento da política. Acossado por extremistas, lutou por ser apenas um homem e um músico. Para Hendrix a música não tinha que ver com “raças” – afinal a raça é a humana – e não fazia música “negra” ou música “branca”, fazia música.
Antes de discorrer sobre a sublime postura de Jimi Hendrix, permitam-me que afirme estar totalmente solidário com os protestos pacíficos que, principalmente em virtude do assassínio de George Floyd, passaram a ter lugar um pouco por todo o mundo, exigindo mudança. Mas, sendo apena amante de música, assunto sobre o qual aspiro a saber mais a cada dia do meu trabalho e da minha vida, este artigo pretende apenas promover união. Numa era em que o excesso de informação e os escassos ou pouco escrupulosos filtros das redes sociais aumentam a discórdia, que já de si promove uma constante dinâmica fracturante no intelecto do indivíduo, o “silêncio” eloquente de Hendrix é um bálsamo.
Pensando nos anos 60, prodigiosa era musical, é impossível não ter uma sensação de déjà vu quanto ao estado social global. Não havia o Vietname e a Guerra Fria, um lugar que foi ocupado pela pandemia e por aquilo que imbecis governamentais gostam de colorir com expressões bélicas, como «combate» e «linha da frente» ou «heróis» e «os cidadãos estão a vencer esta luta», ou pior, desvalorizar. E depois veio, de facto, uma guerra, com a vergonhosa invasão à Ucrânia. A questão LGBTQ continua na ordem do dia, com as minorias a reclamarem equidade. Há cinquenta anos atrás, como nos últimos anos, os Estados Unidos (e como consequência disso, o resto do mundo) estavam em polvorosa, com a revolta social perante as leis Jim Crow, dividindo-se entre protestos violentos e pacíficos, daí acabando imolado, para usar uma expressão teológica, o Reverendo Martin Luther King Jr.
O tópico do racismo estava em todas as coisas que aconteciam. Por isso, o tópico do racismo estava em tudo aquilo em que o maior guitarrista da história, surgido neste década, fazia. Durante toda a sua carreira Jimi Hendrix foi questionado sobre o seu posicionamento político e social. Hendrix sempre tentou, não procurar ser neutro, mas transcender essas questões. Para Hendrix a música não tinha que ver com “raças” – afinal a raça é a humana – e não fazia música “negra” ou música “branca”, fazia música.
REVOLUÇÃO OU FRANK SINATRA
Jimi Hendrix, considerado por muitos o mais influente guitarrista de sempre, nasceu a 27 de Novembro de 1942. Viveu a sua infância em pobreza severa, filho de pai e mãe alcoólicos. Em 1969, Hendrix era o artista mais bem pago do rock. Para tocar no Woodstock, aquele que foi o maior concerto de sempre, aceitou baixar o seu cachet mas, ainda assim, foi o artista que recebeu mais dinheiro para estar presente na pequena localidade de Bethel, no estado de Nova Iorque. Era avesso a tocar para grandes públicos, o Woodstock, no máximo da sua lotação atingiu os 400,000 visitantes, numa média de 200,000 pessoas a assistirem aos concertos que começaram no dia 15 de Agosto. Pelas 08h00 da manhã de 18 de Agosto, de 1969, Jimi Hendrix subiu a palco. Já “poucos” festivaleiros resistiam e restavam cerca de 40,000.
Perto do final da sua setlist, Hendrix criou um dos momentos mais lendários na história da guitarra eléctrica, do rock, da música e mesmo da política. O guitarrista interpretou o hino nacional norte-americano, o “Star Spangled Banner”, numa versão carregada de feedback, com abuso da alavanca de vibrato, distorção e sustain, para procurar evocar ataques aéreos e as explosões dos bombardeamentos de napalm, numa alusão ao conflito no Vietname. Ele que nunca se dispôs a alargar-se em comentários sobre política, foi eloquente como tão poucos conseguiram ser, usando apenas uma guitarra.
No livro “Jimi Hendrix FAQ: All That’s Left to Know About the Voodoo Child”, Gary J. Jucha revela um episódio pouco conhecido. Na antecâmara de um concerto em Gotemburgo, na Suécia, um jornalista dinamarquês, Jorn Jensen, à luz do apoio dos Stones aos movimentos revolucionários da década, explícitos na canção “Street Fighting Man”, perguntou a Hendrix qual o seu posicionamento, se estava na luta revolucionária. Hendrix respondeu: «Não estou. Há uma altura em que tens que escolher: Revolução ou Frank Sinatra. A minha escolha foi Frank Sinatra. Quero mostrar muitas coisas às pessoas com isto…», Jensen revela que Hendrix começou a tocar guitarra. Para Jimi, mais que outra coisa, era a música que podia alertar, mudar a sociedade para melhor. Uma ideia que ecoa nas suas declarações à Charleston Gazette, em 1969: «A música é mais forte que a política. Acredito que é na música que se encontram respostas».
RACISMO
Mas a questão racial foi sempre um tema fracturante na carreira de Hendrix. Desde logo, o músico era acusado pela comunidade afro-americana de ser um peão da cultura mainstream da época, de tocar rock ‘n’ roll, a “música branca”. Aliás, duas semanas após o Woodstock, Hendrix decidiu dar um concerto gratuito no Harlem. Todavia o concerto foi estragado logo nos primeiros instantes em que o guitarrista pisou o palco, quando alguém arremessou uma garrafa na sua direcção, que acabou por se estilhaçar nas colunas, ao mesmo tempo que o público ali presente lhe atirou ovos até a sala começar esvaziar enquanto o concerto prosseguiu. Este episódio é recontado pelo jornalista musical de Seattle, Charles R. Cross, na biografia de Hendrix que escreveu, “Room Full of Mirrors”.
Hendrix, já nessa altura, era considerado o maior guitarrista de sempre, mas odiava este tipo de categorizações. E lutava constantemente por ser um músico melhor, por traduzir na guitarra os sons que dizia ouvir na sua cabeça, culpava-se por não saber ler música e por não cantar tão bem como gostaria. Hendrix odiava todo o tipo de categorizações, de catalogação de simplificação comunicativa. Feria-o bastante sentir que muitos na comunidade negra o consideravam uma espécie de Uncle Tom, essa é a reflexão de John Black em artigo para a http://blackyouthproject.com/how-jimi-hendrixs-race-became-his-invisible-legacy/.
Podemos viver em paz, lado a lado. Com violência, um problema destes nunca será resolvido
Hendrix
No meio desta divisão racial, Hendrix era apelidado de guitarrista blues (de origem negra) e enfrentava vários preconceitos. Foi algumas vezes acossado pela polícia no Reino Unido, quando passeava com mulheres caucasianas e vivia frustrado pela forma como a maioria da comunidade branca o idolatrava como um estereótipo racial, um homem negro hipersexual, constantemente pedrado, em vez de um músico sério, afirma Blake. Hendrix era também criticado por tocar com Noel Redding e Mitch Mitchell, homens caucasianos, da mesma forma que Miles Davis também sofria com essa estigmatização, por ter músicos caucasianos nas suas bandas.
BLACK PANTHERS & MARTIN LUTHER KING JR.
Durante tal luta internamente fracturante, os Black Panthers tentaram várias vezes que Hendrix se lhes juntasse, de uma ou outra forma, o que o músico nunca aceitou, excepto numa ocasião. Hendrix afirmou que “Voodoo Child (Slight Return)” seria como o hino dos Black Panthers. Os militantes desta organização abordaram várias vezes o guitarrista, para que juntasse a voz dele à sua, para que financiasse os seus esforços ou para que fosse sensível aos seus ideais. Após o supracitado concerto no Harlem, os Black Panthers fizeram propaganda de que Hendrix iria dar um concerto em seu apoio. Mas Hendrix nunca aceitou ser militante dos Black Panthers e recusou fazer esse concerto, afirmando que as únicas cores que conseguia ver estavam na sua música. Gary J. Jucha recorda uma entrevista publicada pelo New Musical Express, em 11 de Setembro de 1970, na qual, uma semana antes de morrer, Jimi confessava-se desagradado com os Panthers: «Sinto que me enfiaram numa caixa».
Deve dizer-se que Jimi nunca foi conhecido por fazer doações monetárias a qualquer instituição. Todavia, o guitarrista fez uma doação de cinco mil dólares ao fundo de homenagem a Martin Luther King Jr., em Junho de 1968, e aceitou aparecer no concerto de tributo ao Reverendo, no Madison Square Garden, embora não tenha tocado.
I DON’T LIVE TODAY
Antes da morte de King e antes deste pacificar os protestos contra a segregação, em 1967, a América foi percorrida por vários motins e por violência. Em Berlim, nesse ano, Hendrix referia que era tudo uma loucura e irresponsabilidade. Esse sentimento foi musicado em “Up From The Skies”, onde um ser transcendental olha com incompreensão a auto-destruição da raça humana.
O músico testemunharia directamente o caos e anarquia dos motins. No dia após o assassinato de Martin Luther King Jr., a Experience tinha concerto marcado no Symphony Hall, em Newark, New Jersey. Noel Redding avistou tanques militares nas ruas à chegada da banda. Vários edifícios encontravam-se em chamas. Músicos e roadies temiam pela sua vida e pela vida de Hendrix, que alguém lhe desse um tiro. Há relatos de que, a meio deste cenário dantesco, o concerto estava vazio. Outros dizem que estava apinhado de gente, o que é incrivelmente mais provável, pois as duas datas originalmente marcadas foram convertidas em data única. Diz-se que Hendrix teve uma prestação soberba, extremamente emotiva, de forma a homenagear da forma que melhor sabia esse mártir dos direitos humanos que foi King.
Peter Doggett, autor de “There’s a Riot Going On”, diz que Hendrix não dirigiu uma única palavra ao público ali presente, caucasiano na sua esmagadora maioria, e que esse silêncio foi um tremendo testemunho e extremamente elucidativo dos seus sentimentos. A música falou por si. A Jimi Hendrix Experience tocou “I Don’t Live Today” no final do alinhamento, a única vez que o fez em toda a sua carreira…