Kalú, 10 Anos de “Comunicação”

Temas directos, bons refrões, guitarras simples e com força. “Comunicação” foi o álbum que tornou a colocar Kalú a lutar no underground do rock luso. O icónico baterista dos Xutos reflecte sobre a criação do seu primeiro álbum a solo.

“Comunicação” não é um álbum de bateria, é um álbum de canções. Foi surgindo paralelamente ao trabalho de pré-produção do álbum homónimo dos Xutos (“Xutos & Pontapés”, 2009). Como sucede com inúmeras bandas, independentemente do seu grau de profissionalismo, no processo de criação cada um dos músicos batia umas ideias em casa e depois leva isso para a sala, vai-se vendo o que é que se aproveita, há umas que vão fora, ou porque já não há espaço ou por outro motivo qualquer. E houve duas ou três dessas descartadas democraticamente que o baterista gostou e guardou para si.

Além disso, recorda Kalú: «Também tenho um processo criativo muito grande, quando não estou a ensaiar ou em concertos, tenho sempre uma parte do meu dia dedicada a tocar bateria ou a compor. Mas aquelas três primeiras é que ficaram ali. E aparecem-me o Henrique Amaro e o meu filho Frederico, se queria entrar naquela cena do Optimus Discos. Era o clique que me faltava. Depois aquilo não foi avante, mas como já tinha andado a preparar esse material para lhes mostrar, e entretanto fui fazendo mais, decidi não parar o processo. A parte pior era decidir na minha cabeça aceitar aquilo, portanto fui ao Ramón Galarza, mostrei-lhe uma data de coisas, ele mandou uma data delas fora e estivemos a trabalhar naquelas que ele achava bem».

«Baixo as armas, tiro o escudo e o mundo», a letra é do Vasco Ferreira, filho do “meio” de Kalú e usamo-la como perfeita ilustração da vontade que comanda o baterista dos Xutos & Pontapés a descer do pedestal que atingiu meritoriamente com a maior banda portuguesa de rock para lutar pelo seu som como um puto de 20 anos, como se estivesse a começar tudo de novo. É o próprio quem nos diz que em vez de puxar dos galões, a ideia é o underground, a proximidade, a comunicação directa.

A estreia a solo de Kalú possui a característica principal de uma boa comunicação, a honestidade. A primeira prova dessa honestidade é o respeito que Kalú demonstra para si próprio: não procura propositadamente, nem tenta sequer, afastar-se duma sonoridade Xutos & Pontapés. Assim também não defrauda o ouvinte, nem o procura enganar. Temas directos, bons refrões, guitarras simples e com força. É aí que também tem a honestidade de acrescentar mais o seu cunho – as guitarras são mais agressivas em comparação com o som de Xutos.

“Comunicação”, em momentos como “Corda na Garganta”, “Pela Noite Dentro” ou “Calor”, tem rock directo como esperado de Kalú, em temas como “Demagogia” ou “Eu Não te Quero” tem experimentação de sonoridades exteriores ao rock, com sampling e exploração instrumental em jeito crossover. Há ainda sempre um cheirinho a blues, ou na harmónica em que Kalú se “chega à frente” ou temas como “P’ra Quê Viver Assim” ou “Lua”.

Quanto à grande questão: Kalú canta? Ninguém esperava que o baterista surgisse com um vozeirão à Robert Plant, mas segura bem os temas ainda que num ou noutro momento do disco se possa notar algum desconforto ou talvez alguma falta de fluidez. Editado originalmente pela Universal Music Portugal a 29 de Janeiro de 2013, recuamos dez anos à nossa conversa com Kalú sobre a construção deste disco.

Estava divertido a fazer aquilo sozinho em casa e experimentei de tudo, desde clarinetes, acordeão, harmónica…

Kalú

Assumires este desafio teve algo de “crise de meia-idade”? Arriscas muito a posição que estabeleceste com os Xutos…
Podes pôr assim. Até o título do álbum tem a ver com isso, “Comunicação”. Os Xutos realmente cresceram muito, e ainda bem. Damos grandes concertos, Rock in Rio para 80 000. Tudo aos mil, tudo muito grande. Estou na bateria e tenho um a 15 metros para ali, outro para acolá. Não é por mal, as bandas crescem, muitas vezes até nem é a banda que tem culpa nem tem nada dessas manias, é quem rodeia a banda que está sempre cheio de cuidadinhos, «ai, não pode, não pode». E agora está tudo aqui, a banda e as pessoas estão aqui, falam contigo, dão-te cervejas, sais do palco pela frente, não há cá camarins. Este tipo de “Comunicação”, fantástico, dá-me um grande gozo. Gosto muito desta comunicação, da proximidade, para mim acho que é tudo. Era muito fácil para mim ter ido buscar pessoal mais conhecido, mas não era bem a intenção deste assunto. Isto é uma coisa nova e vamos começar da mesma maneira e com as mesmas condições que está a rapaziada toda aí. Vamos todos lutar de igual para igual, não é por ser o Kalú dos Xutos que vou ganhar vantagem.

Mas ainda assim és o Kalú, dos Xutos…
É verdade. O nome Xutos & Pontapés abre muita porta, mas vou tocar a um sítio e se não fizer um bom trabalho nunca mais lá vou, e isso rapidamente é reconhecido. A malta ensaia toda, trabalha imenso, se o trabalho não for bom rapidamente ficas encostado à box. Também tenho que ter algum cuidado em como me apresento, porque as pessoas também vão com uma expectativa, à partida, um bocadinho alta, «é o gajo dos Xutos». Nós, músicos, somos os nossos maiores críticos. Quando faço e quando deixo aquilo sair, andei no estúdio e vinha para casa ouvir, não ficava satisfeito e voltava para estúdio e fazia outra vez. Até ficar no ponto que um achava que a música tinha que ser.

Podias ter a tentação de ter procurado demarcar esteticamente o álbum do som dos Xutos só porque sim?
Não tem que ser diferente. Acho bom o que fazemos e faço parte da composição das músicas dos Xutos. Portanto, era inevitável, nem queria afastar-me. Gosto muito de canções e de fazer canções, nem queria tocar bateria no disco, o Ramón é que me disse: «Tu és baterista e vais pôr aí outro gajo a tocar bateria? Estamos aqui a perder tempo com isto e tu vais estar sempre a implicar com o gajo, vais mas é tu tocar a bateria». Podia ser um disco de bateria, cheio de truques e tal. Tenho ouvido, estes últimos anos, Foo Fighters e acho o trabalho do Dave Grohl excepcional. Não deixa de ser o grande baterista que é e foi para a frente como um grande vocalista. E porque não? Sempre cantei, cá atrás, era um passo. Aquele passo à frente [risos].

Ainda assim as guitarras são um bocado mais sujas e brutas do que, normalmente, nos Xutos. Isso exigiu algum tipo diferente de abordagem na bateria?
Tentei simplificar o mais possível. É engraçado falares das guitarras sujas, o meu sobrinho Marco [Nunes] só me dizia: «Este gajo só quer é guitarras com distorção, tudo estragado…» É o que eu gramo e acho que a predominância é muito as guitarras ritmo, são muito fortes. Toquei-as primeiro em casa e tinha aquela sonoridade na cabeça. Mas não me preocupei muito de ter um ataque especial aqui ou ali, tentei precisamente dar à música o que ela precisava, tornar aquilo uma canção. Muitas vezes preciso mais nos Xutos de fazer coisas mais evoluídas tecnicamente para preencher uma coisa ou outra do que ali, que achei que as guitarras estavam a ocupar um espaço enorme. Já não valeria a pena estar para lá cheio de truques.

Na captação procuraste experimentar alguma coisa diferente?
Experimentei, principalmente os ambientes e a tarola também. A tarola é sempre aquele bicho complicado, e os pratos. E como vi uma vez o Ronnie Champagne a fazer uma música qualquer dos Xutos em que o gajo captou aquilo à Zeppelin – um micro no bombo e um na tarola, e depois o C12 [AKG], ao longe, só de ambiente – e ficou um sonzão. Andei também à procura, com a ajuda do Cajó, do micro que ia na minha direcção, por trás de mim, e tinha vários depois um a 1 metro. Uma vez tocado, não custa nada pôr um micro de uma maneira ou de outra e vais abrindo na mistura e vendo o que é que casa bem. Na tarola usei o 57 [Shure], um Sennheiser, o 441, aquele que é prateado, assim meio quadradão e muito comprido. No bombo usei um no interior, outro fora e um mais recuado. Depois nos timbalões foi quase tudo aqueles 421 da Sennheiser, que tem aquele engate muito estúpido, estão sempre a cair, mas continuam a ser aqueles grandes micros de timbalões.

Em estúdio, em termos de kit?
Usei o meu. O meu estava a soar muito bem, um Tama Swingstar, não tive qualquer dúvida de pôr aquele a tocar. Depois, as tarolas é que foram mudando, uma 5 ½”” de madeira, de metal usei uma também, umas de bubinga. É conforme a música pede. Um Ride ou outro também mudei, os Crash nem por isso. O set de pratos da Paiste, os Twenty, gosto muito daquilo e soa muito bem. Fiz choques 14’’, os Crash foram um 17’’, um 18’’ e um 20’’, e um Ride de 20’’ também.

Nós músicos, somos os nossos maiores críticos

Kalú

E na voz?
O Ramón quis me pôr a cantar com aqueles Neumann bestiais, de válvulas, um micro muito brutal. Cantei uma ou duas vezes e pedi-lhe se podia cantar com um micro mais baratucho [risos]! Acabei por cantar com um AKG 441, acho que tem mais a ver com a minha voz. Precisava que aquilo fosse mais áspero, menos limpinho. Uma vez vi aquele filme dos Red Hot, daquele álbum “Blood Sugar Sex Magik”, e o Rubin, que era o produtor, mete um 57 nas mãos do vocalista para cantar e o gajo “pimba, pimba, pimba”!

Como é que foi voltar a trabalhar com o Ramón Galarza, depois de tantos anos?
Há uns anos valentes, desde 1989. Neste momento sei mais do que sabia na altura, o que acho muito proveitoso para os dois. Ele é excelente como produtor, é muito organizado, o som que ele tira com os prés que tem, ele trabalha muito bem. Mas também a aprendizagem que eu tive durante estes anos e a experiência que ganhei deu ali um casamento porreiro, um gajo já sabe opinar, aqui e ali, um compressor, o que é que é preciso e não sei quê. Gostei imenso de trabalhar com ele, ele ajudou-me muito porque, precisamente por esta inexperiência a solo, vem esta falta de confiança um bocadinho ao de cima, e ele esteve sempre ali a dar-me confiança. Sabia o momento certo para eu conseguir pôr uma voz, sabia puxar por mim numa bateria. Ele também é baterista, sabe muito bem o que é que eu toco e o que é que eu não toco, o que é que a música precisa ou não. Acabava um take e ele dizia: «Estás aí a dar umas pratadas a mais, acho que isso não vale a pena para nada» ou «esse break que fizeste para aí está muito complicado, simplifica» ou «vamos lá mudar a tarola aí, está muito dura para o que é». Porque um gajo está lá dentro e não se apercebe.

A cena de usar harmónica?
Foi bluesman! Estava divertido a fazer aquilo sozinho em casa e experimentei de tudo, desde clarinetes, acordeão, meto de tudo… E a harmónica também foi uma destas experiências e saiu muito bem, e eu dou uns toques porreiros, e dei-lhe ali boa onda naquilo.

Tens agora as duas perspectivas [bateria e vocalista], o que é que se ganha e o que é que se perde em cada uma das posições?
À frente estás muito exposto, tens de ser muito mais cuidadoso com a tua execução e com a tua maneira de estar, enquanto na bateria a coisa é muito mais descuidada na maneira como te comportas, apesar de ser realmente muito importante. Acho muito mais divertido estar a tocar bateria. Mas à frente é mais responsável, mas pode ser divertido, eu é que talvez ainda não tenha essa perspectiva, ainda estou pouco à vontade…

Se o vocalista falhar uma nota, pode não ser grave, mas se o baterista der um prego mais a valente…
Mas estou muito mais à vontade a tocar bateria, já tenho uma experiência muito grande que me diz como estar lá, e à frente ainda não, o que não me deixa divertir tanto. Pode ser que daqui a mais uns 10 concertos já esteja ali a querer dar cambalhotas [risos]. Para já não. Estou sempre naquela, concentradíssimo.

Leave a Reply