No Dia Internacional da Mulher, celebramos com uma colecção de discos, dentro de sonoridades alternativas, que exalam essa extraordinária essência criativa das mulheres e a forma como conseguem criar feéricas justaposições entre crudeza emocional, sensualidade e pungência melódica.
Em 1975, o dia 8 de Março foi instituído como o Dia Internacional das Mulheres, pelas Nações Unidas. Actualmente, a data é comemorada em mais de 100 países como um dia de protesto e/ou celebração sobre os direitos civis femininos. Sendo um homem a escrever, a perspectiva é inspirada nas mulheres que o rodeiam, figuras de inteligência, coragem, amor e imenso labor: como a avó Virgínia, a mãe Clara, a irmã Diana, a esposa Nádia e até a nossa linda filhota Salomé. Portanto, é de um local privilegiado que surge este olhar, moldado por encantadores exemplos femininos, e pelas suas conquistas de vida e luta quotidiana, que tem a possibilidade de celebrar o feminino a cada dia da sua vida.
Infelizmente, nem todos se abrem a essa perspectiva e por isso surgiu no calendário internacional um dia para reconhecer o valor das mulheres e para celebrar a essência feminina, para, no mínimo, a assinalar. Felizmente, a música é outro espaço privilegiado pela essência do feminino. Certamente, existem muitas coisas a conquistar no que diz respeito à equidade e aos direitos das mulheres numa indústria cujos lugares de poder são ainda, na sua esmagadora maioria, ocupados por homens. Esse debate exigiria outro espaço e importantes discussões e iniciativas que necessitam de continuar a ser feitas.
Aqui pretendemos celebrar o vigor criativo feminino, a sensibilidade e o poder que as mulheres podem oferecer à arte. Assim, reunimos alguns discos e canções de pujante e pungente carisma feminino. Uma lista que encerramos com duas vibrantes propostas nacionais.
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Falando na música num estado volumoso e amplificado como locomotiva para um espaço de tensão constante, os Big‡Brave integram uma cúpula de nomes ímpares no cenário da música experimental contemporânea, apesar das percepções recorrentes ao experimentalismo ruidoso ou até as divagações mais extremas e cruas das paisagens negras do doom. Desde “Feral Verdure”, disco de estreia editado em 2014, que criam um amplo espaço atmosférico balançado por uma intensidade eléctrica corpulenta, mas também por tempos de serenidade e quase ausência sonora. “Vital” não é uma mudança de paradigma no percurso da banda, apesar de a produção ter contado com elementos preciosos para aprofundar as camadas ambientais anexadas aos riffs duros em contraste com as entoações suaves de Robin Wattie. Existe no recente álbum um certo regresso aos pilares originais do conceito Big‡Brave: espaço, tensão, minimalismo e voz. Uma leve revisitação do trio (Mathieu Ball, guitarra, Robin Wattie, guitarra e voz, Loel Campbell, bateria) às intenções sónicas do passado, com a colaboração de músicos de sessão fundamentais como Thierry Amar (GY!BE, Thee Silver Mt Zion) no contrabaixo e Seth Manchester nos sintetizadores. Apesar da sonoridade arrojada, talvez ousada, dotada de conotações sludge ou doom metal, os Big‡Brave voltam com um disco encorpado, mas de elegância minimal e, acima de tudo, catártico, no qual a estatuária dos poderosos monólitos de ruído e drone, cinzelados pela força de um incomplacente dueto de guitarras e pela percussão primal, mas calculada e rigorosa, se entrelaça com uma delicada filigrana delineada pela espectral voz de Robin Wattie. Para além de reflexões sobre a condição humana, “Vital” mostra ainda os Big‡Brave a abordarem algumas das questões sociais mais prementes nos dias de hoje, tais como as injustiças raciais e de género.
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O ambiente etéreo e nefelibata de dinâmicas suaves ao longo de todo o álbum e os contrastes que emergem da ferocidade eléctrica com alguns momentos dentro do black metal, revelam a maturidade da multi-instrumentista norueguesa Kathrine Shepard, que se estreou apenas em 2014, com “Silent Chamber, Noisy Heart”, em 2014, e tem editado regularmente, nomeadamente os bastante laudados álbuns “Wistful” e “Atoms Aligned, Coming Undone”, de 2016 e 2018, respectivamente. Neste seu novo álbum, Sylvaine solidifica as suas credenciais de compositora no domínio do metal mais atmosférico, com um foco abrangente que se alarga do shoegaze ao folk, passando pelo doom e o black metal. Katherine assumiu não só as composições, mas também a granded maioria da instrumentação, entregando apenas as baterias a Dorian Mansiaux, que a tem acompanhado ao vivo. Ao longo de seis canções, somos conduzidos numa viagem de enorme carga emocional, que nos faz oscilar entre uma neo-espiritualidade, momentos de meditação e ainda de uma vunerabilidade crua. A ligar tudo surgem os momentos em que Katherine assume vozes angelicais, encantadoras, que surgem como um movimento catártico entre as entoações feéricas e o peso das camadas instrumentais. Gravar o disco, com a pandemia pelo meio, foi um trabalho longo e árduo, confessou Sylvaine à LOUD! “Nova” foi gravado e misturado por Benoît Roux no Drudenhaus Studio, em Issé, França. A masterização esteve a cargo de Karl Daniel Lidén no seu espaço, Karl Daniel Lidén Productions.
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Dizer que as rosas também possuem espinhos é um dos lugares mais comuns que existem e usar isso como analogia à voz de Rachel Davies também não será, propriamente, revolucionário. Mas a intensidade tão doce quanto áspera de Esben And The Witch, também não desabrochou do nada. Com o álbum “A New Nature” (em 2014), o trio mudou muitas coisas. O que não mudou foi o muito de uma estranha atmosfera gótica que não é, exactamente, gótica, herdada de PJ Harvey. Uma melancolia bucólica rasgada pelo urbanismo punk que a colaboração com um guru como Steve Albini fez surgir. Os minutos deste disco passam rápidos, comandados pelas entoações angelicais e cruas de Rachel, mas com o desconforto provocado pela aspereza do fuzz de baixo, que a cantora activa recorrentemente. A ressonância dessa sensação é amplificada pelos padrões de bateria algo “ásperos” de Daniel Copeman. As melodias estranhas e complexas de Thomas Fisher atenuam o peso que se intui, mas que nunca se concretiza. Como num sonho, a efectividade adivinha-se, sente-se, mas não se materializa. Se dreampop, enquanto rótulo, é um lugar comum, a forma espinhosa e bela como a jovem banda de Brighton o executa é absolutamente incomum. Na colossal “The Jungle” assinaram um quadro de pintura perfeita. Rachel Davies, que canta como um anjo e toca como o diabo, reflectiu connosco sobre as mudanças que a banda assumiu no terceiro álbum e o que as motivou – neste artigo.
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A veia mais experimentalista do movimento doom tem em “Glory! Glory! Apathy Took Helm”, o mais recente álbum dos Vile Creature, uma das suas manifestações mais reluzentes dos últimos tempos, onde a insistência sísmica dos riffs e dos ritmos disparados pelo casal KW (guitarra e voz) e Vic (bateria e voz) é magistralmente tingida pela sujidade do sludge e pela cintilação da música coral. O duo originário de Ontário, no Canadá, também se destaca pelas suas posições políticas abertamente progressistas e anti-opressivas. O disco foi produzido pelo duo e por Adam Tucker, que também assumiu a engenharia de gravação e mistura, nos estúdios Boxcar Sound Recordings (Hamilton, Ontário), e masterização, no estúdios Signature Tone Recording (Minneapolis, Minesota) – local de algumas misturas adicionais. O engenheiro teve ainda o auxílio de Sean Pearson em alguns temas, gravados em Fevereiro de 2020 e editados em Junho do mesmo ano.
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Em 2016, os Converge andaram numa digressão pela Europa e tocaram no Roadburn Festival. Com honras de cabeças de cartaz no emblemático festival, acrescentaram alguns membros extra para a ocasião. Para o projecto, que foi cunhado como Blood Moon, aos Converge juntou-se Chelsea Wolfe e o seu colaborador Ben Chisholm, bem como o líder dos Cave-In/Mutoid Man, Stephen Brodsky e ainda Steve Von Till, dos Neurosis. Há muito que se falava num registo físico de Blood Moon. “Bloodmoon: I”, uma colaboração Converge/Chelsea Wolfe, chegou a 19 de Novembro, via Epitaph Records. O disco conta também com Chisholm e Brodsky. Em comunicado de imprensa, o frontman dos Converge, Jacob Bannon, dizia: «Queríamos fazer algo mais grandioso do que a típica música de quatro instrumentos dos Converge». Dito e feito. O disco é epopeia sónica que viaja entre escuridão densa e perturbada e peso e agressividade selváticas. Resumindo, “Blood Moon” retém a fúria épica dos Converge, mas apresenta-se com uma orquestração maior, mais estratificada, e com a voz de Chelsea Wolfe a contrabalançar as vociferações de Jacob Bannon. O disco foi gravado e misturado por Kurt Ballou nos God City (Salem, Massachussets), enquanto a masterização ficou a cargo de Magnus Lindberg.
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Nenhum trabalho lançado nos últimos meses ultrapassou a sumptuosidade da colaboração entre Emma Ruth Rundle e os Thou e a sua colecção de deslumbrantes e desoladoras canções. Esmagador e emotivo exercício post-rock, Emma Ruth Rundle e os Thou deslumbraram no final de 2020 com o álbum em colaboração, “May Our Chambers Be Full”. O disco é embalador (sempre pesado), sobrecarregado de densas atmosferas ao longo da sua duração. Escutam-se guitarras baritonais a cruzarem-se com cordas orquestrais e a voz de Rundle. O guitarrista dos Thou, Andy Gibbs, referia-se à colaboração em press release, descrevendo: «Frágil, mas poderoso; triste, mas destemido. É assim que te sentes ao ouvir muita da música de Emma». A colaboração entre a cantautora experimentalista e os discípulos do sludge faz parte da colecção Alliance da Sacred Bones, depois dos trabalhos de Uniform & The Body e Marissa Nadler & Stephen Brodsky. O negrume é a constante. A versão física do disco chegou no dia 04 de Dezembro, no nosso país através da PopStock Portugal. Logo no início de 2021 chegaria uma espécie de editor’s cut, através de um EP que compilava quatro temas que não chegaram à versão final do LP. “The Helm of Sorrow”, inclui uma poderosa versão de “Hollywood”, dos The Cranberries, na qual a voz de Rundle prossegue a dinâmica de criação de camadas melódicas sobre o peso esmagador da banda de Louisiana.
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As Pillow Queens são quatro miúdas de Dublin que se juntaram em 2016 para formar uma banda pop-punk depois de uma amizade solidificada por entre moshpits em concertos da cena hardcore irlandesa. Entraram de fininho, editando dois EP – “Calm Girls” (2016) e “State Of The State” (2018). Mas eis que, na recta final do ano passado, Pamela Connolly (voz, guitarra e baixo), Cathy McGuinness (guitarra e voz), Sarah Corcoran (voz, guitarra e baixo) e Rachel Lyons (bateria e voz) lançaram o primeiro longa-duração, “In Waiting”, um disco tão bombástico quanto gracioso e que lhes deu protagonismo. Primeiro, no país natal, extravasando entretanto para o resto do planeta. As Pillow Queens rejeitam comparações com os compatriotas pós-punk Girl Band ou Fontaines D.C., dizem-se um produto do momento político da Irlanda, que não é o melhor, e têm vaidade no seu sotaque. Em “In Waiting” não falta nada. Há serenidade, há euforia, há ganchos, há hinos… Há malhas! Embora partilhem o ADN com bandas indie punk como Diet Cig, Camp Cope e Charly Bliss, as Pillow Queens têm cartões de visita distintos: harmonias bem trabalhadas, coros triunfantes e estruturas elegantes. Outra coisa que faz as Pillow Queens soarem diferente é o melodrama literário de Connolly, que colide maravilhosamente com o espírito DIY da banda. «Pensámos que as harmonias seriam um belo contraste com as guitarras duras, e especialmente no início, com o tocar desleixado», diz Pamela Connolly, que atira: «Estamos à espera há quatro anos. As pessoas ainda não sabem quem nós somos. Mas agora estamos prontas para explodir».
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Myrkur, Amalie Bruun se preferirem o verdadeiro nome, sempre percorreu um caminho singular capaz de desafiar noções pré-concebidas dos estilos mais pesados do underground. Agora, após ter sido mãe, Bruun encetou uma viagem ao coração da cultura escandinava que modelou a sua própria infância. Contos, ritos de passagem e a invocação da continuidade que atravessa gerações e tempo, são componentes da tapeçaria da música folclore e “Folkesange” possui todos estes elementos na sua essência. De certo modo, o álbum é uma abordagem purista ao folclore musical escandinavo, livre de dramatismo excessivo nas interpretações e fusão sónica. Ao invés, a delicada e emotiva voz de Bruun surge envolvida por violino, piano, lira e o tradicional cordofone sueco, a nyckelharpa. Também o Kulning, uma tradicional e ancestral forma de canto de pastoreio dos países nórdicos, é explorado o mais próximo possível das suas delimitações originais. Em “Folkesange”, o passado é feito presente, mas o álbum não é meramente uma peça de museu e é capaz de ressoar no agora, através da produção panorâmica de Christopher Juul. Soando amplo e intimista, o disco emana um certo sentido reverencial, harmonicamente preenchido pelos drones de cordas, um corpo rítmico melancólico e essa suavidade vocal capaz de nos transportar para outras eras e fazer florir associações a um nível elementar e, ao mesmo tempo, transcendental. Por isso, “Folkesange” é uma experiência imersiva e, por completa casualidade, a mensagem que transporta de tempos em que a vida era concretizada de forma mais simples e modesta tem uma tremenda acutilância nestes estranhos tempos de pestilência que muitos, paranóicos ou não, afirmam ser cármica.
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“Haunted Visions”, chegado via Raging Planet em Maio de 2021, foi o nosso primeiro contacto com os Pledge e a elegância do seu pós hardcore e pela solidez que cada um dos membros empresta ao som da banda. O carisma vocal de Sofia Magalhães é inegável! Mas a propulsividade promovida pelas baterias de Filipe Romariz e baixos de Vítor Vaz e as enleantes guitarras de Hugo Martins e Vasco Reis não se limitam a um papel subserviente, antes a um trabalho de enorme enriquecimento técnico do disco. E a envolvência de cada um dos temas não deixa de ser surpreendentemente crua. Martins e Reis são económicos no recurso a distorção, doseando a parede de agressividade e deixando o disco discorrer numa tensão de cortar à faca, stressando os nervos do ouvinte e corporizando a angústia vocalmente transmitida. Cerebralmente executado, apaixonada e ferozmente vociferado. Martins e Reis são económicos no recurso a distorção, doseando a parede de agressividade e deixando o disco discorrer numa tensão de cortar à faca, stressando os nervos do ouvinte e corporizando a angústia vocalmente transmitida. No mais, o disco (que elegemos nos melhores de 2021) destaca-se pela coesão das estruturas e pela força dos temas, sem grandes compromissos melódicos, mas com saber de sobra para criar atmosferas grandiosas como no tema que encerra o disco, “Ocean’s Depth”. Já a jóia da coroa será “Wrong Planet Syndrome” e as suas reminiscências, por entre a electrónica ambiental, dos Converge nos seus momentos mais introspectivos.
São muitos os que se afastam de uma banda de black metal quando sabem que esta tem uma vocalista e que o som faz fusão com o sludge. Mas não se deixem enganar, os Vaee Solis foram uma das maiores revelações de 2015, deixando o seu próprio cunho nesse género musical. Algo ambivalente o suficiente para converter os cépticos e satisfazer os puristas. O álbum de estreia dos Vaee Solis revela-se uma adaptação black metal que sabe a novo mas que se mantém colado às suas raízes, , através de elementos que remetem para bandas como Mayhem na era “De Mysteriis Dom Sathanas” ou Deathspell Omega. Projecto de temperados veteranos do underground nacional, lançado pela Signal Rex, passaram por alguns dos festivais de referência do circuito com performances que claramente os colocam a milhas da grande maioria das bandas que por aí vão surgindo. Este trabalho é um dos tesouros ocultos do underground português.
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