Pérolas Imundas do Underground #2

Gente danada faz som danado. Nesta rubrica revemos alguns dos mais extraordinários trabalhos criados por músicos portugueses, devotos de volume e distorção extremos, de paisagens sónicas escuras ou violentas e do Grande Bode…

É comum dizê-lo, como será em todos os países, que o underground metaleiro nacional tem evoluído muito. Mas quem está familiarizado com a cena heavy portuguesa sabe que depois dos picos de intensidade no início dos anos 90 e alguns apontamentos esporádicos na década seguinte, os grandes discos de música extrema portuguesa não surgiam num fluxo constante. Felizmente, na última década, as coisas mudaram e há cada vez mais bandas e lançamentos com padrões bem elevados na composição, na atitude e nos aspectos sónicos, seja nas proezas instrumentais ou no enorme salto nos valores de produção que advieram da democratização das ferramentas de gravação.

Ainda assim, o metal continua a ser um género bastante guetizado em Portugal e há discos que passam despercebidos aos mais desatentos, quando deveriam ser alvos dos maiores louvores. É isso que pretendemos nesta rubrica. Depois das primeiras gemas, eis mais cinco tremendos discos que merecem a nossa e a vossa atenção…

Gravado na cidade Invicta durante o ano de 2008, este trabalho dos Profan é imenso. O quarteto percorre aspectos que, hoje em dia, são de certa forma comuns, mas fá-lo de modo intrigante, denso e subterrâneo. Ao longo de todo o disco mantém-se um registo de produção muito próximo dos trabalhos de Skepticism – aquela sensação que alguém referia de se estar dentro de um templo, a ouvir uma banda a tocar no subsolo. E ainda assim, “The Bestial Awakening” consegue demonstrar magistralmente o seu corpo estético em cada uma das incursões sónicas que percorre. Também o artwork foi muito bem conseguido. Enfim, tudo neste trabalho transmite uma sensação de orfismo, de religiosismo ou misticismo à procura de quebrar correntes espirituais tradicionais em busca da concupiscência primordial, encerrada nas profundezas do ser. E depois há um sentido de desenvolvimento do trabalho audio que, dentro da fusão de black metal, death e doom metal, dark wave e drone em que a banda busca materializar a sua estética, apesar do revestimento Lo-fi não deixa de manifestar uma excelente estruturação, contrariando aquilo que tantas vezes sucede de ser confundido em som cru com má qualidade de som. A criatividade dos músicos é exposta, sobretudo, nas ambiências que são desenvolvidas e que ultrapassam aquela barreira de catalogação. Uma raridade da Bubonic [agora Altare], esta edição limitada a 200 cópias de 2009 que, além do cd, portava um poster e uma t-shirt. Um verdadeiro álbum de culto do underground português.

O oitavo álbum de Corpus Christii continua a revelar devoção aos Mayhem. Mas isso significa somente duas coisas: a relevância da banda norueguesa dentro do cânone, ocupando o triplo trono negro junto de Celtic Frost e Bathory, e o facto de Corpus Christii se manter como uma das grandes forças da ortodoxia estética do black metal, sem qualquer cedência a hypes. Para lá das referências, “Delusion” [2017] apresenta um imenso equilíbrio na produção sonora entre a rudeza e respeito pela tradição do género com execução técnica e riffs de guitarra que obrigam a fixação na memória (com o boogie de “Become The Wolf” à cabeça), com eloquência nas vocalizações, uma aura sinistra e momentos de tremendo poder instrumental. E nos momentos de groove ou naqueles de pura agressividade, a soberba prestação de bateria é outra das pérolas do álbum, traduzindo compassos de blast beats ou de enorme densidade rítmica com a mesma eficácia. Extremamente homogéneo, sendo difícil exaltar temas em detrimento de outros, e em crescendo de intensidade, tornando-se mais negro e mais agressivo com o decorrer da tracklist, “Delusion” é revelador de uma banda no auge das suas capacidades e é o seu melhor disco.

A atmosfera que percorre este split [editado em 2014], eco físico que une ambas as bandas, é violentamente interrompida pelas pinturas negras e doentias dos Rorcal. A capacidade de potenciar a esquizofrenia, através da harmonização das linhas de guitarras, é uma arma de violência que atravessa “IX”, “X” e “XI”. Ainda assim, a progressão melódica da peça central consegue ser um tocante raio de luz, a meio da intrincada rede de demência criada pelos suíços. Curiosamente, é em “XI”, a peça com apontamentos mais lentos, que há uma maior relação com as estruturas clássicas do black-metal. O que os Rorcal mostram em agressividade, os Process Of Guilt mostram em flutuações de intensidade. Há em “Liar” um certo balanço, que se sentia em “Fæmin”, mas que aí estava mais amarrado. Naturalmente, o tríptico não descola completamente do terceiro álbum da banda poertuguesa (algo mais notório no movimento II), mas acrescenta mais dinâmica naquela capacidade que os Process Of Guilt possuem de construir melodias através da opressão do peso dos seus riffs monocórdicos. Até por esse motivo, o movimento II poderia estar mais extenso, o flow que o percorre deixa uma frustração ao ser interrompido (ou a vontade de o ouvir novamente), é esse o único pecado do tema. Após o altar de feedback que é o movimento III, sentimos que a mestria que a banda começou a demonstrar em “Erosion” e que apurou em “Fæmin” está no seu zénite nos três movimentos de “Liar”.

«E todos os dias se vai voltar a casa e fazer uma pirâmide com todas as boas coisas, bem no meio da sala, e olhar para elas com o orgulho de quem já as olhou 1000 vezes. E é o instante em que, gentilmente, se lhes pega fogo de boa vontade… Para se fazerem outra vez. E na noite que corre bem, volta-se sempre a acordar por ser o dia em que se vai sair de casa para se ficar lá dentro… Porque sabes que, bem aí, podes sempre ser o que quiseres». As palavras da apresentação do disco pareciam ser uma exortação à intenção composicional. À pitoresca expressão “baralhar e dar de novo” juntem-se os termos solidez, peso e experimentação e temos um segundo disco que é mais pesado, mais arrojado e mais tudo o que a banda quis que fosse. Há aqui uma sensação de as coisas a irem de encontro ao local certo. Cinco anos depois de “Lady Cobra”, os Riding Pânico passaram demasiado tempo em silêncio e deram demasiado espaço ao crescimento de “alternativas” ou ao surgimento de “tentativas”. Não deixa de ser curioso que, neste segundo disco, mais afirmativo, a banda nos surja mais math rock que post rock. É como se um estado de espírito vago tivesse dado lugar a maior exactidão. Um controlo eficaz dos balanços e contrastes dinâmicos dos temas e do próprio disco. A própria sonoridade de produção responde a esta sensação estética de “Homem Elefante” [2013]. Onde o processamento das guitarras era mais etéreo, com recurso a chorus/reverb, agora vive mais do mundo de pitch shifters, e é mais exótico (“Código Morte” é mesmo sublime neste sentido). Um maior trancar, quer a nível sonoro, quer executivo, da secção rítmica, permite um sentido consecutivamente mais directo (“Blueberry Surprise” ilustra perfeitamente esta ideia), isto sem incorrer em moldes rebatidos. Também a insistência numa identidade quase exclusiva no som de guitarra parece ser um veículo para esse objectivo. Maior identificação e consequente facilidade de recepção dos temas. É verdade que este álbum vive mais da sua agressividade que da capacidade de encantamento que ouvimos em “Lady Cobra”. No final, são formas de fascínio diferentes, mas se somos agarrados pelos movimentos hipnóticos de uma serpente, aqui somos arrasados pelo poder bruto de temas como “Parece que Perdeste Alguém”.

Em 2000, os Fallacy deixaram de queixo caído a cena heavy nacional com o seu EP de edição de autor. “Martírios” propôs não só um novo conceito no cenário musical português, como no mundial. Afinal, no início do milénio, misturar guitarras e baterias a cruzar death metal e jazz era algo que podíamos ouvir nos Cynic ou nos Atheist, por exemplo, mas misturar isso com electrónica e com vocalizos do folclore português era inaudito. E esqueçam os Moonspell e a sua “Ataegina”. Aqui estamos diante de um trabalho de académicos, um estudo de fusão de raízes e contemporaneidade. Além do combo de instrumentos tradicionais no metal, os Fallacy acrescentavam clarinete e saxofone à equação. A exuberância técnica e virtuosismo das execuções instrumentais são qualquer coisa. Ainda que possa faltar algum poder bruto ao som (com excepção, em alguns momentos, em “Anorah”), as dinâmicas instrumentais são exemplares. Depois de duas demo tapes no final dos anos 90, há duas décadas que Nuno Jesus (baixo), Luís Candeias (bateria) e João Paulo (guitarra) gravaram este intrigante trabalho de prog metal e desistiram daquele que tinha potencial para ser um dos mais valiosos projectos do metal português. De João Paulo, que foi guitarrista dos arqueológicos thrashers Lakrau, perde-se totalmente o rasto. Jesus e Candeias seguiram juntos nos Disassembled, mas já não gravaram o álbum de 2018, “Portals to Decimation”, trabalho que também não deve ser desprezado. Mas a inovadora e singular proposta dos Fallacy só poderia ter melhorado…

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