Gente danada faz som danado. Nesta rubrica revemos alguns dos mais extraordinários trabalhos criados por músicos portugueses, devotos de volume e distorção extremos, de paisagens sónicas escuras ou violentas e do Grande Bode. Neste volume, regressamos às catacumbas da distorção.
É comum dizê-lo, como será em todos os países, que o underground metaleiro nacional tem evoluído muito. Mas quem está familiarizado com a cena heavy portuguesa sabe que depois dos picos de intensidade no início dos anos 90 e alguns apontamentos esporádicos na década seguinte, os grandes discos de música extrema portuguesa não surgiam num fluxo constante. Felizmente, na última década, as coisas mudaram e há cada vez mais bandas e lançamentos com padrões bem elevados na composição, na atitude e nos aspectos sónicos, seja nas proezas instrumentais ou no enorme salto nos valores de produção que advieram da democratização das ferramentas de gravação.
Ainda assim, o metal continua a ser um género bastante guetizado em Portugal e há discos que passam despercebidos aos mais desatentos, quando deveriam ser alvos dos maiores louvores. É isso que pretendemos nesta rubrica. Podem consultar a primeira colheita (aqui), a segunda (aqui), a terceira (aqui), a quarta (aqui) e a quinta. Depois de um volume mais focado no universo do guitar shredding e outro a alguns petardos de “rockalhada”, regressamos às profundezas do metal mais pesado. Como instituído, eis mais cinco tremendos discos que merecem a nossa e a vossa atenção…
Os ThanatoSchizO foram uma banda de Santa Marta de Penaguião, Portugal (Trás-os-Montes e Alto Douro). Donos de um som originalmente associado ao death metal, cedo a banda foi progredindo através de um enorme caldeirão de géneros musicais como black e doom metal, world music, prog e alt rock, música atmosférica e electrónica. Mas antes da sua consolidação como um dos colectivos mais vanguardistas no underground português – considerado como a segunda melhor banda de metal portuguesa pela LOUD! em Janeiro de 2005, graças ao seu terceiro lançamento, “Turbulence” (escolhido como o melhor disco de 2004) – os transmontanos eram simplesmente os Thanatos quando gravaram o seu registo de estreia, o EP “Melégnia”. Nesse disco de 1999, a sofisticação que a liderança de Guilhermino Martins iria fazer desenvolver-se na banda é ainda uma miragem ténue em vários aspectos; o som está próximo do lo-fi, embora, instrumentalmente, esteja soberbamente articulado na mistura; as vozes de TóMané são epítome de rudeza, mas a sua cerrada pronúncia na enunciação da língua anglo-saxónica transporta um estranho charme. Todavia, o groove da banda neste disco jamais teve paralelo nos cinco álbuns que lhe sucederam, já depois da mudança de nomenclatura. “F.B.S. 1426” mostra o quarteto a experimentar os seus limites, logo alargados por tremenda execução instrumental e riffs memoráveis em “Love & Death”, tema de estrutura épica que deixa exposta a capacidade de conceptualidade dramática que seria trabalhada na década seguinte. “Raven” é uma malha mais directa, mais quadrada. “Dream Of Eternity” é um tema com uma linhagem bastarda que pode ser traçada até aos Tomahawk, por exemplo, com vibrantes contrastes dinâmicos. Estas quatro canções estão delimitadas pelo tema de introdução e o epílogo de spoken word, sintetização e pianos barrocos. Ao fim de quase 25 anos, “Melégnia” permanece um disco intrigantemente bizarro e cativante. Podia ser regravado ou remasterizado, para redimensionar os seus valores de produção. Ou talvez, fazê-lo, apenas removesse o lustro a esta raríssima pérola imunda do underground nacional.
Avançamos até 2015 e a outra super raridade. URANIA é um obscuríssimo projecto que reúne membros dos GROG e dos Martelo Negro, entre outros, com os músicos a manterem o anonimato. Torna-se mais surpreendente por, considerando as bandas dos envolvidos, a estética focar-se no funeral doom – e na rudeza do funeral doom dos anos 90 – ainda que o esoterismo lírico seja bastante… “positivo”. Fisicamente, “Hieros Gamos” é uma edição limitada a 200 cópias. O sentido old school deste registo vai preencher as medidas de fãs de bandas como Thergothon, suplantar em muitos momentos os Mournful Congregation e, por vezes evocar os Evoken, pela profundidade épica de algumas variações melódicas e pelo corpo de guitarras. Este último aspecto e o impressionante carácter cavernovoso dos vocalizos (cada vocalista assume dois temas) são os destaques de uma produção lo-fi, mas cujos teclados (VST’s manhosos) soam algo débeis. Os quatro longos temas são uniformemente consistentes, mas destaca-se o encanto melódico de “Floating Above The Immense Emotional Mountain Of Self Esteem” e o magnestismo funéreo de “The Clouds Lays The Strenght Of The Soul”.
Surgidos em 2005, os Bosque começaram por estabelecer as suas fundações sónicas através de demos e splits. Até que em 2009, no melhor estilo lucano, através de drone, funeral doom e black metal, o seu primeiro álbum trouxe a espada e o fogo. “Passage” é um daqueles discos que se adora ou se odeia. Não há meio termo. A sua rudeza sónica não é mais que um veículo para suscitar o desconforto mental e emocional em que o projecto vila-condense pretende conduzir-nos, até à catarse. A via para lá chegar é sinuosa, com dolorosos e abruptos contrastes dinâmicos, mas recompensadora. Um dos maiores méritos deste trabalho é a forma como faz força das suas fraquezas. Os valores de produção, mesmo para uma gravação lo-fi, são perto der excruciantes e a destreza de execução musical é, aparentemente, pobre, mas a sua vibração e autenticidade artística é magnética. A questão é que, todos nós e todos os dias, ouvimos grandes músicos gravados em estúdios fantásticos, com som fantástico, cuja música é absolutamente estéril. Aqui acontece exactamente o oposto. Obviamente, não é um disco para esta era de despropositado modo e excesso consumo musical. Se dispararem o streaming e saltarem os andamentos a cada 20 ou 30 segundos, então não vão obter qualquer recompensa da sua escuta.
Numa conversa com o Miguel Fonseca, o guitarrista recordava o final dos Thormenthor, pelo menos dessa entidade, afinal a banda transmutou-se para os Mofo. «Depois do “Abstract Divinity” tivemos o mesmo problema que muitas das outras bandas dessa altura tiveram, todas elas atingiram um nível técnico de excelência, um nível de intensidade, de brutalidade e de rapidez muito elevado. Atingiram uma espécie de um muro de criatividade e de extremos e acho que todas se perguntaram ‘o que é que fazemos a seguir?’. Não sei se foi das drogas, se foi de outra influência qualquer da altura ou os nervos, mas aquilo está gravado com uma rapidez inconcebível, nem nunca mais conseguimos tocar aquilo assim. Ao vivo, com a pica da actuação, se calhar, atingimos esse nível, mas pegando numa guitarra é muito difícil tocar aquilo. A solução foi a fusão com outros estilos musicais e foi o que aconteceu com Thormenthor. Atingimos esse pico de criatividade e a partir daí ou era repetir a receita, o que não nos agradava de todo», confessava o músico. Todavia essa opção terá deixado uma ferida por sara entre aqueles que já nessa altura seguiam o underground ou que, passando a seguir mais tarde, sempre ouviram referências à banda. Quando o death metal começou a seguir a simplificação de processos, que surgiu no género vinda da Escandinávia, foi do nosso país que surgiu a mais estimulante alternativa aos gigantes do death técnico como os Death, Atheist ou Cynic, e foram os Thormenthor. Depois de várias demotapes chegou, no final de 1991, o EP “Dissolved In Absurd”. Ainda distante da excelência do icónico álbum que lhe sucedeu, é talvez mais pesado e brutal, mais tradicionalista e menos vanguardista. É também mais rígido na sua execução e pouco polido na produção, mas esses eram fenómenos a que quaisquer bandas de metal portuguesas estavam sujeitas no início da última década do milénio passado, pela dificuldade de acesso a bom equipamento, a bons estúdios e a bons espaços de ensaio. Assim, este disco é também uma cápsula temporal que, há cerca de 10 anos, a Raging Planet convenientemente recuperou para a nossa era.
Nascidos da reformulação dos SuffocHate (que ainda se intuem em alguns momentos de “Breed Of Corruption”), os Survive The Wasteland abdicaram de algumas estruturas rítmicas e padrões de notas remastigados por meio mundo do brutal death metal genérico e deram vivacidade à sua sonoridade através de elementos estéticos do blackened death metal e do deathcore. Tremendos guturais, brutalidade rítmica e riffs cheios de groove e detalhe, este curtíssimo EP que é “Devour”, com apenas a introdução e dois temas, surgiu como um estrondoso trovão no underground portuense. O som enorme foi gravado, misturado e masterizado por Paulo Lopes (SoundVision Studios). Depois, tão depressa como surgiu, a banda ter-se perdido nos labirintos das trocas de formação. Algo bastante lamistável, por todas as expectativas geradas por este explosivo trabalho e pelo outro tema editado, “Bringing Back The Dead”.
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