Terry Bozzio, Uma Nota de Cada Vez

Um dos mais meticulosos bateristas do mundo, Terry Bozzio reflecte sobre o verdadeiro significado do seu mega kit de bateria, sobre os seus tempos ao lado de Frank Zappa e sobre a sua metodologia de composição musical.

Terry Bozzio não é um gajo conhecido por se sentar descansado e levar as coisas com calma. O super baterista galardoado com o Grammy, que se destacou em álbuns de Frank Zappa como “Zoot Allures” e “Sheik Yerbouti” nos anos 70, é um inveterado workaholic, e nunca está feliz a não ser que esteja envolvido num ou noutro projecto. Para além de Zappa, a bateria turbinada de Bozzio esteve ao serviços dos UK, nos álbuns “Danger Money” e “Night After Night”, depois dos ases Bill Bruford e Allan Holdsworth terem abandonado as fileiras. Com trabalhos ao lado de Jeff Beck, Quincy Jones e Mick Jagger, Bozzio também liderou as suas próprias bandas, incluindo os Missing Persons e o seu sintetizado pop pós-punk ou o ecléctico colectivo jam HoBoLeMa, com Holdsworth, Tony Levin e Pat Mastelotto.

Incentivado por Zappa e pelo famoso musicólogo Nicolas Slonimsky, Bozzio desenvolveu um gosto pela composição de cenários que o levou para além do rock e do jazz, resultando nas suas obras clássicas contemporâneas, interpretadas pela Metropole Orchestra, em 2003. Numa entrevista com a Prog, Bozzio fala deste imenso percurso e reflecte na sua abordagem à composição e admite: «É como fazer palavras cruzadas – isto tem de funcionar desta e daquela forma, horizontal e verticalmente, numa linha de tempo. Segue-se para onde estas coisas nos levam. Trabalho intervaladamente com música, por isso, se surgir uma nota, posso ouvir onde deve estar a próxima nota e vou até lá. Depois de algum tempo a lascá-la, dia após dia, surge este corpo de trabalho. Quando trabalhei com a Metropole Orchestra, lembro-me de falar com o clarinetista baixo, que me perguntou ‘Escreveste mesmo tudo isto?’ E respondi: ‘Uma nota de cada vez!’»

Além da sua exuberante discografia e digressões, Bozzio preenche a sua agenda com inúmeros workshops de bateria e muita da sua vida desenvolve-se em torno do colossal drumkit que desenvolveu, um impressionante conjunto de 111 peças que exigem enorme minúcia nos detalhes. «Passo mais tempo debaixo do capô com essa coisa, a construir e a afinar, do que a tocar e a praticar, porque se estas coisinhas mínimas não estiverem bem, então estou distraído do fluxo criativo. É preciso acertar o mais pequeno detalhe. Agora está preparado para o meu sistema de som, micing e MIDI, portanto, já tem ultrapassado as quatro horas de montagem, na boa. Apressando as coisas, conseguimos meter tudo de pé em duas horas. O recorde, incluindo já o soundcheck e todos os ajustes, está nos 45 minutos, mas contou com a ajuda de um monte de pessoas que conheciam o kit».

Não se trata apenas de som, quando se fala no “Big Kit”, há também uma intenção de estética escultural, uma instalação artística que se tem desenvolvido progressivamente. «A primeira rack que fiz parecia uma jaula e estava a olhar para ela e a pensar: ‘Porque é que estou a colocar estes lindos tambores redondos e pratos numa jaula quadrada?’ Então fiz a prateleira curva e mais escultural e segui a forma dos instrumentos, como eles se graduam de alto para baixo, de grande para pequeno. Agora, por vezes construo racks e nem sequer quero pôr baterias nelas, são tão bonitas como uma escultura [risos]. Há uma citação do Neil Peart quando se sentou na minha bateria, no Drumchannel, na fábrica DW. Olhou-a e disse: ‘Wow, esta é a mente dele. Esta é a mente dele transformada em bateria!’». De facto, há algo quase cerimonial no trabalho do baterista, numa ponderada fusão de som e visual que o próprio admite: «Cada detalhe é importante. Numa actuação ao vivo vês tanto com os olhos como escutas com os ouvidos. Escutas a muitos níveis: intelectual, físico, emocional e intuitivo. Penso que sentado atrás da bateria, estou mais equilibrado nessas quatro dimensões do que em qualquer outro lugar. O quinto elemento é o divino, aquele Big Bang que anima tudo isto».

Pelo seu carácter perfeccionista, a forma meticulosa como gere a sua progressão e o background que já reunira quando foi chamado a uma audição para Frank Zappa, parecia óbvio que Bozzio ficaria com o lugar. Aparentemente, depois da sua audição, mas ninguém se propôs a tocar a seguir. O gig era seu, se assim o desejasse, mas tocar com o cerebral Zappa podia ser um desafio para qualquer que fosse o músico. Confessa, Bozzio: «As minhas palavras foram: ‘Tens a certeza que consigo fazer isto?’. Ele disse: ‘Queres fazê-lo?’ e eu disse: ‘Sim!’. Não tinha a certeza de estar suficientemente calejado para trabalhar com a sua malta e ele disse-me que se estivesse disposto a trabalhar arduamente o conseguiria fazer. Como um bom pai, acolheu-me».

A forma de ser de Zappa sempre motivou muitos mitos, alguns absurdos, e por mais que se escreva sobre o homem, para lá da música, fica a ideia de que se está longe de o conhecer. «Não sei nada sobre cirurgia cerebral, certo? Sei sobre música, e quando os neurocirurgiões começam a falar do seu trabalho, estou perdido. E não me importo muito. Interessa-me que eles estejam a ajudar as pessoas e o resultado do seu trabalho, mas sabe-se que para compreender realmente um músico ou outro ser humano, é preciso vivê-lo, ser ele e ter algo em comum. Penso que os jornalistas de rock não têm muito em comum com um tipo como o Frank. Para mim, ele era um tipo que, provavelmente, tinha pelo menos sete talentos e poderia ter feito uma carreira de sucesso com qualquer um deles, mas tinha todos os sete. Era 10 anos mais velho que eu e um verdadeiro génio a todos esses níveis. Eu conheci-o quando era muito ingénuo. Todas as coisas negativas que ele disse sobre a indústria da música ou sobre política, quase me recusei a acreditar porque não podia ir por aí – não podia perder a esperança, percebes? Mas tudo o que ele disse, aconteceu. Tudo o que ele disse, por mais cínico que fosse, era verdade. Ele era realmente um desses tipos que são como uma flecha. Ele podia cortar qualquer coisa, ir directo ao cerne da questão e resumi-la da forma mais sucinta».

Nesse período, o baterista conviveu com outra figura bem exótica: Don Van Vliet, aka Captain Beefheart. «Era preciso um tesauro de terminologia mitológica e simbólica, e talvez até de jazz bebop, para se compreender o que ele dizia. Ele falava em símbolos. E eram símbolos muito idiossincráticos. Era realmente uma viagem e uma aventura estar perto do tipo. Uma vez, no meu segundo ano com o Frank, o Beefheart tinha terminado a sua tarefa e estava a trabalhar em algo seu. O Frank alugou uma suite no Beverly Hilton, onde decorria uma convenção da editora discográfica. (…) Estava o Patrick O’Hearn, que tem um incrível sentido de humor; eu próprio; o Frank, que estava num outro nível de ser capaz de dizer algo que é realmente engraçado; Gail, a sua esposa, que é realmente inteligente; e Beefheart. Entramos num elevador e está a passar a versão muzak de Herb Alpert de “A Taste Of Honey”. O espaço ali dentro era eléctrico, os olhos de toda a gente a indagarem quem iria dizer algo primeiro, quem iria rasgar esta música. Beefheart entra para dentro e diz: ‘Sabem que só há um tipo de coisa que se pode fazer com esta música’. Ele estala os dedos e grita: ‘Curtir’». [Risos].

Por tudo isto, a coisa que o baterista mais se arrepende do seu período junto de Zappa é não ter feito perguntas. «Não queria mostrar a minha ignorância. Muitas vezes ele usava palavras que eu não compreendia e ria-me, apenas porque não queria parecer estúpido. Quem me dera ter perguntado o significado dessas palavras. Coisas assim. Mas era jovem e feliz apenas por estar ali, passando por todas as tretas do rock ‘n’ roll, das groupies. Ninguém te pode dizer como lidar com o sucesso. Quando chega o momento, estás por sua conta e és simplesmente arrastado com o que quer que esteja a acontecer. Mais tarde, aprende-se através da experiência que esta ou aquela pode não ter sido a melhor maneira de fazer isto ou aquilo».

A juventude de mãos dadas com a inexperiência parecem ser receita certa para o desastre. Não foi algo trágico, mas são aquilo que explica que Bozzio tenha acabado por sair, subitamente, de um lugar onde era tão feliz. «Andava a tocar com o Patrick O’Hearn, o Mark Isham e o Pete Maunu, o Group 87, e tínhamos tido uma audição para um contrato na CBS. Atrasei-me para os ensaios com o Frank por causa disso e ele percebeu. Começámos a tocar algo, o Frank sentiu que eu já não estava com a cabeça no lugar e pediu: ‘Bozzio, vem ao meu escritório’. Fomos ao pequeno gabinete no estúdio de ensaio e ele disse: ‘Acho que está na altura de saíres e fazeres as tuas próprias coisas’. E, mais uma vez, eu disse: ‘Tens a certeza que consigo fazer isto?’. [Risos] Como um bom pai, expulsou-me do ninho».

Assim deu-se a dolorosa transição de Frank Zappa para os UK. Primeiro houve, de facto o trabalho com o Group 87, mas o papel de Bozzio foi periférico. Era o primeiro choque: «Olhar para o contrato de gravação foi realmente chocante e deprimente. Por isso, decidi não assinar o acordo». Depois seguiu-se uma audição para os Thin Lizzy e isso não aconteceu. «Não sou um tipo de pessoa que beba, lute e se foda toda. O Gary Moore queria-me e demo-nos bem, mas a banda era uma coisa aparte e não estava no mesmo espaço mental que os outros tipos». Então, houve uma conversa com Eddie Jobson, a respeito de Bill Bruford e Allan Holdsworth tender mais para o jazz e John Wetton querer ir mais para o rock. O resultado foi a saída de Bruford e Holdsworth em ’78 e a entrada de Bozzio. Voltamos assim ao primeiro parágrafo…

Leave a Reply