No ano em que celebravam os seus 25 anos, “Pesadelo Em Peluche” levava finalmente os Mão Morta a uma major label. Numa conversa com o baterista e multi-instrumentista Miguel Pedro Antunes Guimarães, recordamos que impacto isso poderá ter tido no som da banda e também os mecanismos de construção do disco.
Há poucas bandas no mundo que tenham uma personalidade e carisma estéticos tão vincados que, ao fazer um álbum, lhes permite experimentar novos aspectos sonoros sem beliscar minimamente a sua própria identidade. Os Mão Morta são uma dessas bandas. “Pesadelo Em Peluche” colocou os Mão Morta no mainstream, televisivo, radiofónico, festivaleiro… Colocou-os nos iPods de muitos cujo conhecimento da banda era pouco mais que epidérmico. “Pesadelo Em Peluche” é dos trabalhos de mais fácil digestão que a banda de Braga, em toda a sua carreira, ofereceu aos ouvintes, ainda que mantenha uma densidade natural que está obviamente ligada à voz de Luxúria Canibal. Dentro da simplicidade com que somos atraídos para esta visão, somos subtilmente engolidos pelas sombras que nos são descritas. É imenso o trabalho, na forma como nos esbofeteia com epifanias do ridículo macabro de comportamentos sociais recorrentes. A pelúcia afaga-nos lascivamente, sendo notada apenas no final da apreensão.
Até aí, talvez com excepção a “Primavera De Destroços”, terá sido o álbum com melhor trabalho de guitarras da banda ou, pelo menos, o mais variado nesse aspecto. Isso actualiza constantemente um certo sentido de repetição que poderia advir da estrutura mais directa das composições. Os Mão Morta são uma banda madura desde o seu primeiro álbum, mas neste disco surgia imbuída do vigor da espontaneidade que foi procurada. A força criativa mantinha-se, como sempre, intacta.
Para todos os efeitos, em 2010, “Pesadelo Em Peluche” parecia evocar os diferentes estágios cumpridos pelos bracarenses até aí. Natural, até porque, para Miguel Pedro, os próprios Mão Morta são influenciados pelos Mão Morta. «É quase inevitável que isso aconteça. E quando fazemos um disco onde vamos buscar vários géneros e artistas que nos influenciam, não podemos deixar de ir buscar Mão Morta, é um bocado circular, mas acontece. Há uma música, “Paisagens Mentais”, que me soa muito aos nossos primeiros anos, ao “Mão Morta” ou “Corações Felpudos”».
A participação de Fernando Ribeiro foi outro atractivo num disco feito para criar impacto mediático e surgiu na sequência da própria música “Como Um Vampiro”, construída na tentativa de criar um ambiente gótico evocativo dos anos 80, naquele universo de bandas como Sisters Of Mercy, The Mission ou Fields Of The Nephilim, embora com uma roupagem nova. «O refrão exigia uma voz melódica, mas uma voz algo pesada, gótica, podre (no bom sentido), para casar com a voz do Adolfo, que também tem essa “podridão”. Veio-nos logo à cabeça o Fernando, que além de ser um grande amigo e uma pessoa de que gostamos também como músico, que aceitou prontamente. Acabou até por ajudar na melodia, foi porreiríssimo, tentou vários tipos de vocalizações, é uma pessoa com muita experiência», recorda o baterista…
Em “Pesadelo De Peluche”, mais uma vez, houve uma conceptualidade literária como ponto de partida, qual foi, exactamente, e qual o impacto que acabou por ter no próprio som.
Os Mão Morta, desde há muito tempo, sempre precisaram dum “empurrão” criativo, vá lá, e temos ido buscá-lo sempre à literatura. Duma forma geral, aconteceu assim com o “Maldoror”, com o Heiner Müller, no caso da “Latrina…” fomos à filosofia política… Neste caso fomos a Ballard, nomeadamente à obra “The Atrocity Exhibition”, que nos deu o mote para o disco. Não é um disco conceptual no sentido em que é, por exemplo, o “Latrina…”, mas é um disco que parte, de facto, do livro e das coisas que lhe são subjacentes. Desde logo a sua forma, pois é escrito em micro narrativas que levaram a canções pequenas, de velho rock ‘n’ roll do início dos Mão Morta (não só do início). Queríamos também fugir um pouco da ressaca do “Maldoror”; uma obra que nos tomou bastante tempo e nos fatigou mesmo em termos físicos, com músicas longas, muitas marcações e teatro no palco. Portanto, pegámos no “Atrocity Exhibition” que serviu de mote à própria composição, porque a composição musical também vive de pequenos clichés, neste caso da tipologia presente em todo o pop rock dos anos 70, mesmo no metal, no gótico. Liricamente, o Adolfo procurou seguir aquilo que subjaz na obra de Ballard, que é: quais os efeitos que esta nossa sociedade altamente plastificada, tecnológica, com culto da celebridade, tem na psique humana – na nossa maneira de pensar, nos nossos desejos mais profundos – o que nos pode tornar muitas vezes psicopatas. Mas claro que um disco não vive só disso, mas também muito do momento, daquilo que sai…
Em estúdio como foi?
Este foi um disco com uma passagem zero pela sala de ensaio, literalmente. As coisas saíram directamente da cabeça do compositor, em estúdio. No meu caso, do meu pequeno estúdio caseiro para o estúdio do Mário Pereira, onde fizemos vozes, algumas guitarras, etc. Isto teve a ver com uma série de contingências que nos defrontaram com prazos a cumprir e tivemos que alterar os processos de trabalho. Então, fazíamos pequenas maquetas em estúdio, trocávamos os ficheiros pela internet e quando chegávamos ao estúdio explicávamos uns aos outros como era a música. Havia, claro, uma noção em cada um de como eram as músicas, mas aproveitámos muito o estúdio. Aliás, Mão Morta sempre o fez, como um instrumento, uma ferramenta de composição. Afinal, em estúdio há grandes possibilidades: compressores, delays, etc; que sempre se aproveitam no processo criativo, sobretudo num processo como foi este.
Ter aceite um certo risco proveniente desse sentido de espontaneidade, até pela ausência duma pré-produção, leva-me a perguntar (considerando uma independência que sempre pautou a banda em relação a editoras) como terá sido essa relação e o feedback quando assinaram por uma major?
Em termos de processo de trabalho, estar na Universal, não alterou nada. Aliás, a editora foi extremamente correcta connosco – e quando contratou Mão Morta, sabia o que contratou. Não interferiram minimamente no processo criativo, nem no processo de produção. Por outro lado, há uma coisa muito engraçada que foi esta pressa e método de trabalho terem resultado numa espontaneidade que procurávamos: que era esta crueza mais rock ‘n’ roll nalguns temas que, se calhar, havendo todo aquele processo da pré-produção, do ensaio, da procura de arranjos mais complexos, etc., a perderiam. Consegui-lo era algo a que nos tínhamos auto-proposto, de início. Termos trabalhado assim melhorou o resultado final.
O que motivou a escolha no local de masterização?
O Andy VanDette já tinha trabalhado para Mundo Cão e tínhamos ficado contentes com o resultado final. É uma masterização bastante comercial (digo isto sem qualquer sentido depreciativo), com o som muito in-your-face. Tendo em conta a música no álbum, era precisamente aquilo que procurávamos. Pessoalmente, fiquei muito contente com a masterização. Não foi excessivamente agressiva, que era o meu único receio.
2 pensamentos sobre “Mão Morta, Ballard e a Exibição de Atrocidades”