Ruído Roído, Dor

Dono de uma aura xamânica, ainda que de construção industrial, “Dor” é o excelente trabalho de estreia dos Ruído Roído, projecto criado por Jorge Oliveira e Márcio Décio, ubíquos músicos do underground do eixo Porto/Braga. O disco tem o selo da Raging Planet.

Ruído Roído é um projecto que nasce entre o Porto e Braga, em 2020 e dois anos depois, surge com o disco de estreia. “Dor” foi produzido pelos dois membros fundadores da banda e terá edição no primeiro trimestre de 2023. Ao vivo a banda apresenta-se com Jorge Oliveira no baixo, Márcio Décio na guitarra, Rui Rodrigues na percussão e Sílvio Almeida nos sintetizadores.

Com o fim dos Malcontent, banda que Jorge Oliveira (Big Summer, Karnnos, Ex- Hospital Psiquiátrico, Ex – Martyrium, Ex – Bal Onirique) e Márcio Décio (La Resistance, Quadra) integraram durante vários anos, surge a ideia de começar algo novo, diferente de tudo aquilo que os dois músicos faziam. Algo que os colocasse num local de desconforto e, ao mesmo tempo, os desafiasse a desbravar caminhos cobertos de silvas. Este hiato estranho a que chamámos de pandemia veio dar o empurrão para que cada um começasse a gravar em sua casa e tudo começasse a desenvolver formas.

«Nestes tempos estranhos em que vivemos, cada vez mais caminhamos sozinhos numa sociedade que tanto caminha a passos largos e a uma velocidade atroz, como retrocede à mesma velocidade. As dualidades e os extremos cada vez mais demarcados conduzem-nos a um lugar onde a loucura pode imperar. “Sozinho Num Suicídio Coletivo” faz um compêndio de algumas das mais importantes, imponentes e, talvez, degradantes formas de vida desta sociedade de hoje tanto a nível visual como auditivo, capaz de nos despertar alguma ansiedade e desconforto», dizia mais um press da Ride The Snake, sobre o single que nos introduziu a mais um disco da Raging Planet.

“Dor” é essencialmente um disco de exploração industrial. Diante desse pórtico sónico, sem o atravessar, os pontos ‘geofónicos’ que idealizamos serão coisas como Einstürzende Neubauten ou Nine Inch Nails, mas ainda que essas referências possam ser identificadas nos Ruído Roído, este disco é mais feito de singularidades do que colagens estéticas. Em detrimento de uma estrutura cerebral ou de sofisticação, “Dor” apresenta-se tribalista e ritualista, um veículo xamânico de catarse. Portanto, mais impulsivo que propulsivo, mais instintivo que intuitivo.

A ver, o épico de abertura “Na Súbita Ereção do Enforcado” espraia-se ao longo de 15 minutos de construção de camadas, com uma batida sincopada a evocar raízes folk misturadas com a força rítmica mais vetusta de uns Young Gods e com a envolvência de feedbacks e sobretons de guitarra a fazer as vezes dos arpeggios de sintetização tão ao gosto dos Tangerine Dream. Portanto, a experiência é sempre mais onírica que efectivamente materializada, em direcção a um epílogo de densidade consubstancial – a ereção post mortem?

Essa intriga erógena tem continuação em “Sexo Mental no Jardim”. Mas agora, os elementos sónicos anteriores são envolvidos por atmosferas com o charme daquelas que Vangelis desenvolveu para “Blade Runner”. Não sabemos se foi usado hardware ou algum soft synth, mas os sub-osciladores LFO soam irresistíveis como os do clássico Yamaha CS-80. A meio disto, a densidade e o peso das guitarras vão ganhando preponderância e fazem ponte para o mais exótico “Encontro Absurdo Com o Medo”.

“Sozinho Num Suicídio Coletivo” transporta consigo a familiaridade da sujeira mais directa de uns Bizarra Locomotiva. Mas onde os seus compatriotas são mais ritmicamente espartanos, obedecendo às necessidades de métricas vocais, os Ruído Roído possuem um espectro atmosférico mais maleável. Prova da eficácia dinâmica destas composições é que, hiperbolizando, só na emergência desta comparação damos verdadeiramente conta de que estamos diante de um trabalho instrumental. “Os Gatos Contemplam o Sol em Istambul”, o longo épico final é a melhor prova disto e, acrescentando ainda inéditas progressões jazzy, a suma deste excelente trabalho de estreia.

De volta ao press: «Roer faz ruído ou o ruído faz roer? Será que temos capacidade de conseguir mastigar sem roer todas as homófonas que nos vão aparecendo pelo caminho ou precisaremos de ruído para as as conseguir digerir? Ruído Roído representa todas estas homófonas e toda uma vida dissonante e sonante que nos passa diante dos olhos num furacão explosivo e demolidor que nos fornece a adrenalina suficiente para nos manter vivos».

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