Vasco Vaz

As Quimeras Sónicas de Vasco Vaz

Fez parte dos BRAINDEAD, uma das mais vibrantes bandas que emergiram do metal português, e tornou-se um dos pilares que sustentam as elegantes idiossincrasias dos Mão Morta. Nesse percurso, Vasco Vaz ajustou e viu evoluir a sua abordagem ao uso de efeitos e amplificadores, que nos mostra, ao lado da sua colecção de guitarras.

O Vasco Vaz começou a ouvir música muito cedo, com a mãe, que gostava muito de Beatles e era fã de Cliff Richard. «Lembro-me que ela tinha um disco dos The Shadows que adorava, um concerto ao vivo que ela tinha comprado quando era miúda, porque gostava do Cliff Richard, que tocava com eles. Mas aquele álbum era todo instrumental, tinha o “Apache”, tinha estes instrumentais todos. É a recordação mais distante que tenho, devia ter uns quatro anos ou cinco». Com o início dos excitantes anos 80 vieram as bandas new wave – Duran Duran, Orchestral Manoeuvres in the Dark ou Power Station. Depois pegou num disco de Iron Maiden e lembra: «Quando ouvi o “The Trooper” fiquei completamente apanhado. Também os Xutos. Mais ao menos na mesma altura, apanhei o lançamento do “Circo de Feras” e quando comprei o “Cerco” então…»

Vasco Vaz pegou na guitarra e seguiu a ferocidade do thrash, criando os Braindead, banda icónica e pioneira em Portugal no cruzamento de estéticas. A sua capacidade camaleónica levou-o aos Mão Morta. E a afinidade com a cena de Bracara Augusta e a imponente banda post-punk nacional tornou-o ainda um dos fundadores de Mundo Cão.

Pela quantidade de equipamento que o Vasco Vaz reuniu ao longo dos anos e usa actualmente, pode deduzir-se que o guitarrista é algo obsessivo com os detalhes do seu som. Em estúdio é minucioso na busca pelo som que considera perfeito e ao vivo gosta de reproduzir tudo aquilo que registou em disco. «Houve uma altura em que usava dois amplificadores: o Jubilee e o Trace ou o Deluxe; e uma catrefada de pedais. Em termos de timbre andava muito satisfeito, mas depois tinha a parte toda da performance do espectáculo e sentia-me muito ausente, porque tinha que me concentrar demasiado no som e perdia energia por causa disso», admite. Por isso, actualmente há um foco maior em ter tudo um pouco mais simples. Na verdade, o que se está a passar até é, tecnicamente, mais complexo devido ao uso de muita coisa à base MIDI, sobretudo pre-amps, power amps, etc.

Isto traz consigo outro tipo de exigências na execução, garante Vasco Vaz: «É preciso apurar a técnica quando quero tocar sintetizadores (uma coisa que também exploro). Aí a conversão da nota, da waveform para MIDI, se não for uma palhetada limpa, é complicado. Saem notas a mais ou não saem que queres».

Mas um guitarrista, como toda a gente, primeiro é um puto. E os putos não costumam ter meios financeiros para começarem a tocar com um grande rig. Muito pelo contrário. Nos seus anos de formação, que foram também os primeiros anos da adolescência, Vasco Vaz começou a tocar com um bando de malta que, apaixonada pelo thrash, iria formar um dos maiores vultos do underground português, os Braindead.

Nessa altura, Vasco Vaz juntou «tudo o que eram dinheiros de anos e de prendas e comprei uma Mason. Tenho pena de já não a ter, mas ela estava um escroto. Era uma guitarra tipo Strato, mas com dois humbuckers. O tremolo era horrível. Ensaiávamos em sítios que tinham amplificador, no Zé da Cadela, ali em Cacilhas, então não precisava de ter um, em casa tocávamos com as guitarras desligadas, eu e o Nobre. Ainda toquei com o Miguel Fonseca, era baixista dos Braindead na altura, depois saiu e ficou só com os Thormenthor. Então entrou o Nuno Espírito Santo. E andávamos sempre a tocar malhas e a aprendíamos uns com os outros, evoluímos tecnicamente assim, também porque não havia quem nos ensinasse».

Para uma certa geração, os Braindead foram qualquer coisa. Já metiam ali uns crossovers, soava meio funky. Criar essa mistura terá tido que ver com essa exploração sem paradigmas e com a fusão de personalidades músicais, de um grupo de malta que, por gostar de thrash, não deixava de gostar de Duran Duran ou Depeche Mode. Quando, ainda miúdos, surgiram no Rock Rendez-Vous, ainda muito dentro do thrash, já começavam a evidenciar-se elementos de death metal, de cenas progressivas com ritmos marados. O Vasco Vaz puxa pela memória…

«Começámos a ouvir cenas como Watchtower que era brutal e, à nossa maneira super naïf, tentávamos fazer aquelas polirritmias. O Marco Franco era o nosso baterista, na altura, e conseguia tocar tudo de Metallica e de Kreator, com uma grande técnica. E gostávamos de explorar essas cenas, mais progressivas como Coroner e Watchtower ou como os Death também vieram fazer mais tarde, mas também cenas de funk, depois os Suicidal também tinham algumas cenas assim de rap. Levámos ao Rock Rendez-Vous de um tema que estava na berra, o “Funky Cold Medina” dos Tone Loc, e pensámos como o público iria reagir e, na verdade, ficou tudo com aquela atitude que ‘o que é esta merda?’ [risos]. Matinés de metal, estás a ver? Ninguém fazia aquilo e isso sempre esteve no ADN da banda, depois foi uma progressão muito natural».

Os Braindead começaram a desintegrar-se e Vasco Vaz passou por uma série de bandas como os Incesto, Esborr e Agora Colora. Em 1994 surgiram os Mão Morta. O estatuto da banda impunha respeito, de resto, uma atitude natural do músico. Existiam já temas marcantes e uma imponente estética estabelecida. Os gigantes da contracultura nacional aceitaram logo o sangue novo no processo de composição. Vasco Vaz recorda: «Comecei logo a compor, foi porreiro aceitarem isso, mas uma parte de mim é dark e identifica-se bastante com Mão Morta. Dou bastante uso a essa parte exploratória em termos de timbres, mais de ambientes, do que propriamente de tocar ritmicamente. Em Mão Morta comecei a explorar muito os phasers, os delays… Aprendi imenso com o Sapo. Aprendi imenso, não propriamente ‘como é que tu fazes’, mas a ouvi-lo a ter ideias, a inspirar-me nele».

Foi mais ou menos também a partir daí que começaste a juntar mais esta colecção?
Exacto. A minha primeira guitarra a sério foi Ibanez JS, que usava nos Braindead. Comprei uns pedais, um Korg Over Drive, que dava tudo para o ter de novo [risos], mas como precisava de distorção mais pesada acabei por vendê-lo e comprei o da Ibanez, o Metal Charger e o equalizador para ter o “V” no som. Mas esta é uma guitarra que ainda continua a ter um grande som e é super versátil, tem um coil split que na altura não era nada vulgar, os pickups são bons, em modo single coil fica muito bluesy e o roll off do volume não perde os agudos. É super confortável, o braço é excelente, adequado à minha mão. Depois, juntei para comprar esta Strat, que me fartei de usar no “Primavera de Destroços”. É a assinatura da Bonnie Raitt. Nessa altura queria explorar muito os sons limpos e semi-distorcidos, por isso é que fui atrás da Fender. Continuo sem uma Tele, que adoro, tenho que admitir. Mas na altura comprei esta e depois acabei por comprar a Gibson para ter uma guitarra mesmo de rock. Foi um bocadinho umas atrás das outras.

Esses modelos Les Paul Classic não são comuns…
Era um modelo entre a Standard e a Custom. Esta é final dos anos 90, início de 2000. É um reissue das Les Paul que eram feitas nos anos 60. Porque é que comprei esta Strat? Porque experimentei-a num reissue dos anos 90 deste Marshall e adorei o som. Acabei por comprar o amp, que é muito transparente e exalta o som característico das guitarras. Estou sempre naquela tenho que comprar outro, faz parte do meu som, é muito versátil e vou buscar tudo o que quero com ele. Experimentei outras Strats, mas gostei desta, talvez tenha a ver com os pickups, que são os Texas Special. Gostei imenso do som e adorei a guitarra, é linda… Fiquei apaixonado. E esta Gibson foi a mesma coisa. Na altura já dizia ao pessoal que não confiava na Gibson, experimentava uma era fixe, experimentava outra era má, experimentava uma soava bem, experimentava outra soava bem, mas desafinava bué. Esta soava muita bem e tem, ao contrário das outras Les Paul, um braço decente para mim. Não é assim tão grosso. Estava a quase a 600 contos, era muita cara em Portugal. Ainda por cima não me deixaram experimentar no Porto, então decidi não comprar cá [risos]. Porque queria comprar a guitarra, mas é lógico, tens que experimentar. Depois em Inglaterra vi a guitarra, esta guitarra, numa loja que a vendia a 300 e qualquer coisa. Escrevi-lhes um email, no início dos anos 2000, telefonei-lhes e tudo e disse «quero essa Gibson, só que não confio na Gibson e se ela vier com problemas de afinação, volta para trás». Os gajos foram impecáveis e disseram-me que, mal chegava a Inglaterra, o importador fazia uma verificação, depois na loja faziam uma verificação e um setup, mas além disso ainda me fariam uma nova verificação e veio excelente. Aliás, o Budda tem uma igual, embora Goldtop, e o também diz que a guitarra é altamente! Depois as Italia. O Paulo Trindade estava na Visound/Vicoustic, na altura, e disse-me que tinham umas guitarras que precisava experimentar.

Apesar do nome, elas têm que origem?
São feitas na Coreia do Sul. Soa bem e são muito bem construídas. Vêm de fábrica e não precisas de fazer um setup. A ressonância… Tem várias coisas que gosto, desde logo o peso, quando tocava com a Gibson nos Mão Morta houve uma vez que ia ficando entravado, porque o Adolfo apoia-se nas minhas costas, aliás, temos essa foto na sala do ensaio, e com a puta do peso da guitarra e dele vim o resto da viagem todo deitadinho no banco de trás do carro. Cada solavanco era uma dor, fui a um neurocirurgião e tudo para ver se tinha aqui uma hérnia. As Italia são super leves e além disso, o timbre. Estes P-90 são uma coisa que achei incrível, a ressonância de grave e o timbre fizeram-me delirar. Acaba por ter mais médio que ajuda bastante em contexto de banda. Os overtones geralmente são bastante musicais, pode acontecer se tiver muita distorção. Mas é raro ter níveis de distorção. Às vezes nos solos posso ter um bocadinho mais de saturação ou como, por exemplo, às vezes uso o wah-wah como filtro, deixo numa posição para ter mais ênfase numa determinada gama de frequências, isso pode às vezes potenciar algum overtone mais marado. O corpo é muito bem dimensionado, não sendo totalmente hollow-body, o veio central é todo uma peça,  só as asas é que acabam por ser hollow, o que é óptimo porque acabo por ter esta ressonância, mas não ter tantos problemas com feedbacks. Foi uma guitarra com que me apaixonei e a única coisa que mudaria é que o corpo para mim ainda é um bocadinho grande. Se fosse um corpo um bocadinho mais reduzido… mas por outro lado também não teria a tal ressonância, o braço também é excelente.

Por isso compraste outra e a modificaste?
Exacto, que uso mais de palco e a original mais para gravar. Como gosto de ter tremolo, meti-lhe um tremulo, este até foi um patrocínio que arranjei na altura, um Stetsbar. Uns gajos que fazem tremolos para instalar em Gibson e em Teles sem modificar. E meti-lhe mais um pickup no meio e agora tenho as configurações todas.

Custa-me muito dar dinheiro por coisas que, em termos tecnológicos, não são evoluções.

Vasco Vaz

Quem é que te fez as alterações?
O João Paulo Aça. Também gosto de trabalhar com o Vítor Paulo. Estou sempre à procura de novos sons e, dependendo também do tipo de efeito, às vezes quando gravo as coisas, depois fico sem saber como é que fiz e depois vejo-me um bocado à rasca se não registo. Portanto, ela acaba por me permitir, ao vivo, não ter que estar sempre a trocar, acabo por ter um bocadinho de todo o tipo de timbres aqui. Por exemplo, o “Anarquista Duval” tinha que ser um som mais pesado, era com a Gibson e estava sempre a trocar guitarras. Esta já é mais versátil, mas acaba por ser muito característica, ouves e não é igual à Gibson nem à Fender, dá para tudo. O preço delas tem vindo a aumentar porque a sua qualidade é reconhecida. Elas aqui não pegaram, o pessoal é tradicionalista. Vejo que no mercado nórdico e em Inglaterra elas continuam a vender-se e o preço a subir, por exemplo, em Inglaterra estas Rimini devem estar à volta das 900 libras. Portanto, tem vindo a subir consistentemente. Custava-me imenso dar muito dinheiro por uma Gibson e depois veio-se a provar com aquele problema. Custa-me muito dar dinheiro por coisas que, em termos tecnológicos, não são evoluções. E muitas vezes podem ser melhores componentes do que aqueles originais, mas a diferença é mínima em termos sónicos. Por um lado, não são originais, portanto nem isso estás a pagar, é o mais o hype de ser uma cena feita à mão. Claro que muitas vezes acontece, como com o pedal clone do Uni-Vibe, mas isso é uma coisa que já não se fabrica. Mas custa-me, por exemplo, dar dois mil euros ou mil e trezentos euros por uma Telecaster quando era originalmente não foi feita assim. Era uma guitarra budget. Se o espírito original dela é esse, para que é que haveríamos de pagar um par de botas e tudo e mais alguma coisa por uma guitarra que é igual com madeiras piores, porque hoje em dias as madeiras são todas piores. Mas os guitarristas são muito conservadores, a guitarra é um instrumento muito visual e tem uma certa aura associada e o pessoal parece que tem medo de fugir ao estabelecido.

Esta entrevista é um excerto do artigo integrado na Arte Sonora #61. Para criar algo especial para uma edição que, em 2018, celebrou 10 anos de publicações pediram-me algo que fosse inédito ou, no mínimo, incomum, na nossa imprensa musical. Então surgiu a ideia de reunir numa edição histórica dez grandes guitarristas portugueses. O Vasco Vaz foi um dos músicos escolhidos. Para a entrevista completa com o Vasco Vaz, podem adquirir um exemplar da revista na loja. As fotos são da Inês Barrau.

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