Em 2016, a meio de brutais tumultos sociais e políticos (que só parecem ter-se agravado), Wayne Shorter e Herbie Hancock escreveram uma carta aberta para as actuais e próximas gerações de artistas que é um pungente manifesto para um mundo melhor. Recordamo-la para homenagear o falecido saxofonista.
Wayne Shorter, o enigmático e intrépido saxofonista que se tornou um dos mais influentes e marcantes músicos no jazz moderno, morreu no dia 02 de Março de 2023. Tinha 89 anos (cumpriria o 90º aniversário em Agosto). Enquanto saxofonista tinha um estilo inigualável, carregado de confiança intuitiva enquanto tenor e ainda mais brilhante no soprano, com enorme articulação na força dos seus fraseados.
Com uma carreira de mais de meio século, quase seria escusado assinalar a sua preponderância no desenvolvimento da música e do jazz, em particular. Nesta plataforma é-nos mais imediato associá-lo a um dos mosqueteiros de Miles Davis ou até como líder dos Weather Report e a sua consequente importância no nascimento da fusão. Dono de uma linguagem tão versátil como universal, teve inúmeras colaborações no mundo pop rock, desde logo ao lado dos Rolling Stones, Joni Mitchell e Carlos Santana, entre muitos outros. O Expresso recorda a sua umbilical relação com Portugal.
Shorter foi casado com a portuguesa Ana Maria Patrício entre 1970 e 1996, data da morte desta, vítima de um acidente de avião. Em 1988 produziu “Pilar”, o álbum de estreia de Pilar Homem de Melo. Actuou várias vezes no nosso país, do Estoril Jazz ao Guimarães Jazz, da Casa da Música ao CCB, liderando formações de músicos portugueses, como sucedeu no Porto 2001, onde se fez acompanhar no Coliseu do Porto por Mário Laginha (piano), Bernardo Moreira (contrabaixo), Mário Barreiros (bateria) e José Salgueiro (percussão).
Não faltam publicações a exaltar a sua importância na música e o seu brilhantismo enquanto executante e compositor. Por isso, decidimos recordar uma parte visível do seu humanismo, traduzindo a carta aberta que escreveu com o seu amigo Herbie Hancock, numa altura em que o mundo já parecia estar à beira da catástrofe. Escrita em 2016, hoje assume um carácter ainda mais vital…
An Open Letter To The Next Generation Of Artists – by Herbie Hancock and Wayne Shorter
Para Uma Nova Geração de Artistas,
Encontramo-nos em tempos turbulentos e imprevisíveis. Desde o horror no Bataclan até à convulsão na Síria e ao derramamento de sangue sem sentido em San Bernardino, vivemos numa época de grande confusão e dor. Como artista, criador e sonhador deste mundo, pedimos-vos que não se desencorajem com o que vedes, mas que usem as vossas próprias vidas e, por extensão, a vossa arte, como veículos para a construção da paz.
Embora seja verdade que as questões que o mundo enfrenta são complexas, a resposta para a paz é simples; começa por vós. Não é preciso viver num país do terceiro mundo ou trabalhar para uma ONG para fazer a diferença. Cada um de nós tem uma missão única. Somos todos peças de um puzzle gigante e fluido, onde a mais pequena das acções por uma peça do puzzle afecta profundamente cada uma das outras. Vocês são importantes, as vossas acções são importantes, a vossa arte é importante.
Gostaríamos de deixar claro que enquanto esta carta é escrita com um público artístico em mente, estes pensamentos transcendem as fronteiras profissionais e aplicam-se a todas as pessoas, independentemente da profissão.
PRIMEIRO, DESPERTEM PARA A VOSSA HUMANIDADE
Não estamos sozinhos. Não existimos sozinhos e não podemos criar sozinhos. O que este mundo precisa é de um despertar humanista do desejo de elevar a nossa condição de vida a um lugar onde as nossas acções estejam enraizadas no altruísmo e na compaixão. Não vos podeis esconder atrás de uma profissão ou de um instrumento; é preciso ser humano. Concentrem a vossa energia em tornarem-se no melhor humano que puderem ser. Concentrem-se no desenvolvimento da empatia e da compaixão. Ao longo do processo, irão explorar uma riqueza de inspiração enraizada na complexidade e curiosidade do que significa simplesmente existir neste planeta. A música é apenas uma gota no oceano da vida.
ABRACEM E CONQUISTEM A ESTRADA MENOS PERCORRIDA
O mundo precisa de novos caminhos. Não se deixem sequestrar pela retórica comum ou por falsas crenças e ilusões sobre como a vida deve ser vivida. Cabe-vos a vós serem os pioneiros. Quer através da exploração de novos sons, ritmos e harmonias ou colaborações, processos e experiências inesperadas, encorajamos-vos a descartar a repetição em todas as suas formas e consequências negativas. Esforcem-se por criar novas acções, tanto musicalmente como com o caminho da sua vida. Nunca se conformem.
ABRACEM O DESCONHECIDO
O desconhecido exige improvisação a cada momento ou um processo criativo sem paralelo em termos de potencial e concretização. Não há um ensaio geral para a vida porque a vida, em si mesma, é o verdadeiro ensaio. Cada relação, obstáculo, interacção, etc., é um ensaio para a próxima aventura na vida. Tudo está ligado. Tudo é construção. Nunca nada é desperdiçado. Este tipo de pensamento requer coragem. Sejam corajosos e não percam o vosso sentido de entusiasmo e reverência por este maravilhoso mundo em vosso redor.
COMPREENDAM A VERDADEIRA NATUREZA DOS OBSTÁCULOS
Temos esta ideia de fracasso, mas isso não é real; é uma ilusão. Não existe tal coisa como o fracasso. O que se percebe como fracasso é realmente uma nova oportunidade, uma nova mão de cartas a jogar ou uma nova tela com a qual criar. Na vida há oportunidades ilimitadas. As palavras “sucesso” e “fracasso”, elas próprias, não passam de etiquetas. Cada momento é uma oportunidade. Vós, como seres humanos, não tendes limites; por conseguinte, existem infinitas possibilidades em qualquer circunstância.
NÃO RECEEIS INTERAGIR COM AQUELES QUE SÃO DIFERENTES DE VÓS
O mundo precisa de mais interacção directa entre pessoas de origens diversas com um maior ênfase na arte, cultura e educação. As nossas diferenças são o que temos em comum. Podemos trabalhar para criar um plano existencial aberto e contínuo, no qual todos os tipos de pessoas possam trocar ideias, recursos, consideração e gentileza. Temos de nos ligar uns aos outros, aprender uns com os outros e experienciar a vida uns com os outros. Nunca poderemos ter paz se não conseguirmos compreender a dor no coração uns dos outros. Quanto mais interagirmos, mais nos aperceberemos de que a nossa humanidade transcende todas as diferenças.
ESFORCEM-SE POR CRIAR ARTE LIVRE DE PRECONCEITOS
A arte, sob qualquer forma, é um meio para o diálogo, que é uma ferramenta poderosa. É tempo de o mundo da música produzir histórias sónicas que acendam o diálogo sobre o mistério que nos habita. Quando dizemos o mistério que nos habita, referimo-nos a reflectir e desafiar os medos que nos impedem de descobrir o nosso acesso ilimitado à coragem inerente a todos nós. Sim, és quanto basta. Sim, és importante. Sim, deves continuar.
ATENTAI AO EGO
A arrogância pode desenvolver-se no íntimo dos artistas, quer de artistas que acreditam que o seu estatuto os torna mais importantes, quer daqueles que julgam que a associação a um campo criativo lhes autorga a algum tipo de superioridade. Cuidado com o ego; a criatividade não pode fluir quando apenas o ego é servido.
TRABALHEM PARA CONSTRUIR UMA INDÚSTRIA SEM FRONTEIRAS
Na área da Medicina há uma organização chamada Médicos Sem Fronteiras. Este elevado esforço pode servir de modelo para transcender as limitações e estratégias das antigas fórmulas comerciais, que estão concebidas para perpetuar os velhos sistemas sob o disfarce de novos sistemas. Estamos a falar directamente de um sistema que está em vigor, um sistema que condiciona os consumidores à compra apenas dos produtos que são ditados para serem considerados comercializáveis, um sistema onde o dinheiro é apenas o meio para um fim. O negócio da música é uma fracção do negócio da vida. Viver com integridade criativa pode trazer benefícios nunca imaginados.
VALORIZEM A GERAÇÃO QUE VOS ANTECEDEU
Os vossos anciãos podem ajudar-vos. Eles são uma fonte de riqueza sob a forma de sabedoria. Têm resistido às intempéries e sofreram as mesmas dores de coração; deixem que as suas lutas sejam a luz que ilumina o caminho na escuridão. Não percam tempo a repetir os seus erros. Em vez disso, peguem no que eles fizeram e catapultem-se para a construção de um mundo progressivamente melhor para aqueles que se seguirão.
POR ÚLTIMO, ESPERAMOS QUE VIVAM NUM ESTADO DE CONSTANTE DESLUMBRAMENTO
À medida que os anos se acumulam, partes da nossa imaginação tendem a enfraquecer. Seja da tristeza, do esforço prolongado ou de condicionamento social, algures pelo caminho, as pessoas esquecem-se de como aproveitar a magia inerente que existe nas nossas mentes. Não deixe que essa parte da vossa imaginação se desvaneça. Olhem para as estrelas e imaginem como seria ser um astronauta ou um piloto. Imaginem explorar as pirâmides ou Machu Picchu. Imaginem voar como um pássaro ou atravessar estrondosamente uma parede como o Super-Homem. Imaginem correr com dinossauros ou nadar como sereias e tritões. Tudo o que existe é um produto da imaginação de alguém; estimem e alimentem a vossa e estarão sempre no precipício da descoberta.
Como é que isto contribui para a criação de uma sociedade pacífica, perguntam-se? Começa com uma causa. As vossas causas criam os efeitos que moldam o vosso futuro e o de todos os que vos rodeiam. Tomem as rédeas do filme da vossa vida. Vós sois o realizador, produtor e actor. Sede ousados e incansavelmente compassivos ao dançar durante a viagem que é esta vida.
Wayne Shorter e Herbie Hancock, 2016.