André Fernandes comanda um portentoso quintento na busca pelo transcendente da arte através da improvisação. Uma dupla de saxofones eleva a imaginação e uma secção rítmica demolidora propulsionam-na. Aqui olhamos os dois discos dos Centauri, “Draco” e “Dianho”.
No espectacular filme de John Boorman, “Excalibur”, Merlin descreve o Dragão a Artur. Uma besta imensa, de tremendo poder, que se fosse vista na sua totalidade, mesmo que num único vislumbre, nos reduziria a cinzas. «Está em todo o lado! É todas as coisas! As suas escamas reluzem nas cascas árvores, o seu rugido escuta-se no vento! E a sua língua bifurcada é como um relâmpago», assim diz o mitológico mago. Em “Draco”, o quintento de músicos debruça-se sobre esse transcendente de onde brota a arte.
André Fernandes, João Mortágua, José Pedro Coelho, Francisco Brito e João Pereira usam formas pilares do jazz e do rock para percorrerem trilhos de improvisação livres de barreiras. E é nos movimentos menos formatados que mais vibrante se torna o disco, em contraponto com as amarras que se sentem nos músicos em “Fingers”, original de Ty Segall, ou “Onáceo”. E se todos os músicos são estelares na sua performance, Fernandes apresenta-se discreto, apesar da sua autoria nas composições. São os saxofonistas, Mortágua (alto) e Coelho (tenor), que promovem as viagens astrais mais vibrantes e os momentos de maior fantasia enquanto percorremos este álbum dragão, numa viagem alimentada pela propulsão de Brito (contrabaixo) e Pereira (bateria), que em momentos como “Elon Musk Go”, nos finais de “3 Para 3” e de “Inhale” (aqui já com a soma de distorção na guitarra), e na retro rocker “Alpha”, chega mesmo a ser demolidora.
Travassos criou o espetacular artwork de um álbum gravado entre os dias 23 e 24 de Julho de 2017, nos estúdios Timbuktu, sob a tutela de Luis Candeias. A mistura esteve a cargo de Pete Rende e a masterização foi um trabalho do próprio André Fernandes. O músico português apresenta o conceito do álbum de 2018 através de uma longa reflexão:
«A busca de respostas sobre os mistérios da vida e da morte, sobre o percurso que fazemos desde o nascer biológico ao nascer da pessoa em que nos tornamos, às várias mortes dessa pessoa e seus consequentes renascimentos, até à morte biológica e a eterna questão do que vem depois, é fascinante. É aquilo que nos move e que nos faz evoluir enquanto indivíduos e enquanto espécie, aliada à curiosidade, e alimentada pelo amor, o desamor, a felicidade e a tristeza. A espiritualidade está aliada à ciência, e a ciência é, talvez, a própria espiritualidade que nos ilude há milénios, mas que também nos dá uma alma e um propósito. A Arte é um veículo para a nossa espiritualidade individual, e é também uma ciência. Por vezes empírica, por vezes (quantas mais melhor) instintiva, mas uma ciência, apurada dentro de nós, e absorvida de fora para dentro, representando para cada um coisas diferentes, tão diferentes quanto os indivíduos, mas tão universal quanto ser humano. Dragão é um ser mítico, que povoa a imaginação de todos, em todos os cantos do nosso pequeno mundo. É também um signo (o meu) em certas partes desse mesmo mundo. E é também uma constelação, Draco, que ilumina o nosso firmamento com milénios de atraso. É imaginação, espiritualidade e ciência. Como a música. A música que escrevi para o grupo Centauri (o apelido das estrelas Alpha e Proxima) é despida de algemas. Mistura o escrito com o instinto, o doce com o aleatório, e não responde a perguntas que a prendam a palavras inventadas com o propósito de nos fazer sentir conhecedores da sua natureza. Perguntas que eu próprio não faço e cuja resposta não quero saber. Como o universo, em todo o seu esplendor que desconhecemos, mas que nos move todos os dias e nos faz acreditar em magia que um dia será conhecimento».
Dois anos depois, Fernandes reuniu os mesmos músicos no mesmo estúdio. Desta feita, o “mafarriquenho” artwork coube a Maria Bouza. O álbum já pode ser ouvido em vários serviços de streaming e está também disponível na sua forma integral no Bandcamp do projecto. É nesse espaço que Fernandes deixa algumas palavras sobre o conceito deste trabalho, cujas canções são inspiradas e intituladas por algumas histórias e criaturas presentes no livro “Bestiário Tradicional Português”, da Escafandro.
«Desde miúdo que nutro um fascínio pelo misterioso. Acho que ainda o procuro na música que ouço, acho que saber demais sobre algo retira parte da sua magia, encanto e interesse. Nessa infância/pré-adolescência encontrei regularmente esse mistério nas histórias que ouvia sobre eventos, personagens reais ou fictícias (mas que para mim podiam ser reais) que relatavam situações ou factos normalmente assustadores, e por isso falados em voz baixa, ou com tendência a serem considerados tabú, ou no mínimo não apropriado para miúdos da minha idade. Isso tornava tudo ainda mais apelativo. Lembro-me que a minha avó, natural da Beira Baixa, referia ocasionalmente esse tipo de contos ou lendas, e também tinha um fraquinho pelo sobrenatural, que aliado ao catolicismo da sua geração (para mim já por si suficientemente rico em histórias assustadoras) era fonte de grande curiosidade da minha parte. Rapidamente percebi que podia encontrar muitas histórias em livros que devorei (Edgar Allan Poe, Stephen King, Clive Barker, etc) e que havia toda uma indústria de cinema dedicada a isto. Fiquei um fã até hoje. Há uns tempos comprei um livro para as minhas filhas que junta as histórias das personagens que povoam os pesadelos dos portugueses que com elas cresceram. Chama-se Bestiário Tradicional Português (Ed. Escafandro) e aconselho vivamente. Aí descobri imensas histórias portuguesas sobre monstros, demónios, bruxas e animais fantásticos que moram em Portugal, de norte a sul.
Este disco relaciona-se com algumas delas: Dianho é o diabo, mafarrico ou galhardo. Por ser comum a todo o país, dá o nome a este disco. Maria Gancha vive nos poços e é um perigo para crianças curiosas. O Homem Das Sete Dentaduras vive no Algarve, e ataca ao meio dia nos dias mais quentes. O Tardo anda nú a meio da noite e toma a forma de animais diversos até se tornar um lobisomem. As Aventesmas são enormes, usam uma túnica branca e crescem com o nosso medo. A Velha Da Égua Branca monta a sua égua nas noites de lua cheia e tem uma faca gigante com que solta animais enquanto faz um barulho assustador. Os Trasgos são os nossos duendes, e divertem-se em casa a fazer travessuras durante a noite. A Bicha-Serpe come crianças mal-comportadas, tem cabeça de abóbora e às vezes anda disfarçada entre nós com um capuz».
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