As composições de Sergei Rachmaninoff, as tensões monocromáticas e opressivas dos seus motivos, aqui revistas através da assombrosa “A Ilha dos Mortos, Op.29”.
Sergei Rachmaninoff é um dos pianistas mais importantes do Século XX. A sua técnica de execução é absolutamente singular, até pela dimensão das suas mãos que lhe permitia a invulgar amplitude de um intervalo de 13ª no teclado. O seu talento enquanto compositor, dizem os peritos na música erudita, não seria tão extraordinário. A prova de que a popularidade da música reside na sua própria força, e de que, muitas vezes, os peritos podem isolar-se em redomas de intelectualidade artificial, é que muitas composições de Rachmaninoff elevaram-se ao estatuto de repertório padrão e de que têm conquistado ouvintes até aos nossos dias. O seu estilo é fiel à escola russa e a sombra de Tchaikovsky permanece em todos os seus trabalhos.
Aquele que pretendemos exaltar é “A Ilha dos Mortos, Op.29”. Uma tenebrosa e arrebatadora peça fantasia romântica, riquíssima no recurso ao troqueu Dies Irae, do uso amiúde de fragmentos da primeira frase nos seus motivos. Nesta interpretação de 1984, da Royal Concertgebouw, conduzida por Vladimir Ashkenazy, o ambiente é monumental. A capacidade da orquestra para criar uma atmosfera íntima e opressiva, através de uma sonoridade carregada de sombras, é fenomenal. A forma como, num temática tão perturbante, através dos sucessivos crescendos e diminuendos (algo tão típico no compositor), nos é deixada a impressão de que há algo para lá da funérea ilha, de que há algo para lá da morte, de que a alma prossegue viva…
Certamente, existirão outras interpretações iguais ou até superiores. Mas tendo sida esta o nosso primeiro contacto com esta composição, é difícil reconhecê-las dessa forma, até porque a interpretação é, afinal, uma forma de criação também. E os picos de intensidade dinâmica, a força e elegância dos graves, o clímax da peça e até a sumptuosa gravação e mistura (com um recorte e calor assinaláveis) são indeléveis. Depois a cadenciação paciente, lânguida e simultaneamente inexorável, aproximam esta interpretação do negrume do doom metal – peso sem uma parede de amplicação e distorção – e da sua profunda densidade.
Rachmaninoff escreveu “A Ilha dos Mortos” em Dresden, em 1908, quando já se encontrava exilado do seu país graças à convulsão política que redundaria na Primeira Grande Guerra e na Revolução Russa, como uma premonição das sombras imensas que se abateram na Europa…
Um pensamento sobre “As Sombras Imensas no Romantismo de Rachmaninoff”