A aclamada e imponente orquestra New York Philharmonic foi um bastião dominado pelo género masculino durante a esmagadora maioria dos seus 180 anos de existência. Sinal dos tempos, hoje conta com 45 músicos do sexo feminino e 44 do sexo masculino.
Este é um artigo de Javier C. Hernández, publicado no dia 22 de Novembro de 2022, no NY Times. O nosso trabalho foi, simplesmente, o de tradução. A foto retrata a Philharmonic numa digressão em Paris e é parte do The U.S. National Archives.
Quando a New York Philharmonic se instalou no Lincoln Center, em 1962, o seu novo espaço não tinha camarins femininos. Afinal, não havia qualquer mulher na orquestra. No último Outono, altura em que a Philharmonic inaugurou a sua recentemente renovada casa, o David Geffen Hall, os seus músicos regressam não só a infraestruturas mais equitativas nos bastidores como a um significativo marco em palco: pela primeira vez na sua história de 180 anos, as mulheres ultrapassam os homens Philharmonic, 45 para 44.
«São os mares da mudança», refere Cynthia Phelps, primeira viola, que entrou na orquestra em 1992. «Foi uma conquista muito dura, após uma longa batalha, e assim continuará a ser». A nova maioria feminina da orquestra poderá revelar-se fugaz – tem actualmente 16 vagas de músicos para preencher, em parte porque as audições foram suspensas durante a pandemia – mas mesmo assim representa uma mudança profunda para um conjunto que tinha apenas cinco mulheres no início dos anos 70. Essa foi a década em que se começaram a realizar audições às cegas, com músicos a tocarem atrás de painéis. Actualmente estão na calha imensas candidatas do sexo feminino: na Philharmonic, 10 das 12 mais recentes contratações foram mulheres. «Isto mostra certamente progressos tremendos», disse Deborah Borda, presidente e chefe executiva da Philharmonic e pioneira no campo da gestão orquestral. «As mulheres estão a ganhar estes cargos de forma justa e equitativa. Tudo o que procuramos é equidade», conclui, «porque a sociedade é 50-50».
Nos Estados Unidos, actualmente, as mulheres representam aproximadamente metade dos músicos de orquestra, mas ainda estão em desvantagem substancial nos ensembles de elite, incluindo Boston, Filadélfia e Los Angeles. A Philharmonic ainda fica aquém em vários aspectos. As mulheres ocupam apenas cerca de um terço dos seus cargos de liderança, incluindo os cargos principais e os de assistente ou de director associado, que são as posições mais bem remuneradas para os músicos. A orquestra nunca teve uma directora de música feminina. Algumas secções permanecem visivelmente divididas por género: 27 dos seus 30 violinistas são agora mulheres, por exemplo, enquanto a secção de percussão é inteiramente composta por homens. Há ainda uma falta gritante de membros negros e latinos.
Ainda assim, muitos artistas saudaram a nova prevalência das mulheres na Philharmonic como um desenvolvimento significativo. As orquestras sinfónicas foram vistas durante muito tempo como um domínio dos homens. E as mudanças são, geralmente, extremamente lentas nas principais ensembles, como a Philharmonic, cujos músicos são tenazes e podem permanecer nos seus postos durante muitos anos. Uma mudança demográfica significativa pode levar décadas. «Parece mais uma família», diz Sherry Sylar, primeiro oboé associado, que se juntou à orquestra em 1984. «Há mães e avôs».
Durante grande parte da sua história, a Philharmonic, a mais antiga orquestra sinfónica dos Estados Unidos, esteve vedada a mulheres. Na altura da sua fundação, em 1842, as mulheres não eram apenas desencorajadas de seguir carreiras musicais – era raro assistirem a concertos nocturnos a menos que estivessem acompanhadas homens. (Em “Philharmonic: A History of New York’s Orchestra”, Howard Shanet escreveu que durante o século XIX, os ensaios públicos do conjunto nas tardes de sexta-feira eram populares junto de «senhoras sem companhia que podiam aventurar-se de dia, com mais propriedade, do que à noite»). Foi apenas em 1922 que a Philharmonic contratou o seu primeiro membro feminino, Stephanie Goldner, uma harpista de 26 anos de idade, de Viena. Ela saiu em 1932 e a orquestra voltou a ser um bastião totalmente masculino durante décadas.
Até que, em 1966, Orin O’Brien, uma contrabaixista, foi contratada como primeiro músico da secção feminina da Philharmonic. Muitas vezes descrita como a primeira mulher a tornar-se membro permanente da orquestra, esteve na vanguarda de um grupo pioneiro de artistas femininas que abriu portas para outras mulheres se juntarem a ela. A mudança da orquestra para audições cegas nos anos 70 foi vista como uma forma de tornar o processo de escolha mais justo. Já em 1992, havia 29 mulheres na orquestra.
No entanto, mesmo com o aumento da representação, os músicos femininos enfrentaram frequentemente discriminação. O sexismo era generalizado na indústria (o maestro Zubin Mehta, que opinava em 1970 que ainda pensava que as mulheres não deviam estar nas orquestras porque “se tornam homens”, foi nomeado director musical da orquestra seis anos mais tarde). Menos mulheres conseguiram as posições principais mais bem remuneradas e outras descobriram que ganhavam muito menos do que os seus homólogos masculinos. Em 2019, a Boston Symphony resolveu um processo judicial no qual a primeira flautista da orquestra alertou que lhe estavam a pagar menos do que um colega masculino, o primeiro oboísta.
Judith LeClair tornou-se a primeira mulher a assumir uma cadeira principal na Philharmonic quando entrou como primeiro fagote em 1981, com a idade de 23 anos. Ela descreveu os seus primeiros dias na orquestra, quando era uma das 17 mulheres, como solitária. Disse que tinha de lutar para ser tão bem paga como os seus colegas homens e acabou por contratar um advogado para a ajudar a negociar contratos. Demorou pelo menos 20 anos, de acordo com ela, até atingir a paridade. «Senti-me explorada desde o início porque era mulher, jovem e ingénua», recorda. «Senti-me humilhada e depreciada».
Alguns colegas homens ganharam o hábito de chamar às mulheres da orquestra “as saias”. «Minimizava o papel que desempenhávamos na orquestra», diz Sylar, a oboísta. «Parecia que era preciso ser melhor para ganhar o respeito dos outros músicos. Era apenas uma luta constante e estar sempre a forçar os limites para ser melhor». Esta alcunha não foi o seu único contacto com o sexismo. Pouco depois de entrar para a orquestra, recorda que Erich Leinsdorf, um maestro convidado frequente, durante uma reunião no seu camarim, lhe perguntou porque não usava vestidos durante o ensaio (ela preferia calças). «A mim, simplesmente, fez-me perder o chão», conta.
Foi apenas em 2018 que a Philharmonic mudou o seu código de vestuário, permitindo que as mulheres usassem calças nos seus concertos nocturnos. Antes disso, eram obrigadas a usar saias ou batas pretas ao comprimento dos pés. Nos últimos anos, à medida que as mulheres foram assumindo mais papéis de liderança na orquestra, o ambiente tornou-se mais inclusivo, referem vários instrumentistas. «Tornou-se muito acolhedor e caloroso e parece uma grande família», diz Alison Fierst, que se juntou como primeira flauta associada em 2019, sentindo-se comovida pela oportunidade de tocar ao lado de algumas das mulheres pioneiras na quebra de barreiras na orquestra.
Há algumas excepções – a St. Louis Symphony, por exemplo, tem tido uma maioria feminina há já uma década – mas o número de homens ainda é superior ao de mulheres na maioria das orquestras principais dos Estados Unidos. De resto, noutras partes do mundo o progresso tem sido mais lento: a Vienna Philharmonic não permitiu a audição de mulheres até 1997. É agora cerca de 17% feminina.
A ausência de mulheres nos papéis de protagonismo nas orquestras – os primeiros músicos em cada secção podem ganhar muito mais do que os seus colegas – também tem suscitado críticas. A grande maioria das posições principais continua a ir para os homens e no que diz respeito aos maestros, aí a predominância é esmagadoramente masculina: Apenas um dos 25 maiores ensembles nos Estados Unidos é conduzido por uma mulher, a Atlanta Symphony Orchestra, cujo novo director musical é Nathalie Stutzmann. Michelle Rofrano, maestrina fundadora da Protestra, uma orquestra e um grupo de defesa centrado na justiça social, diz que é necessário fazer mais para garantir que as mulheres ascendam a papéis de liderança: «A diversidade não deve ser apenas um parâmetro para verificar num boletim estatístico; requer ensinamento e apoio. Estamos a falhar em várias perspectivas e a um conjunto de pessoas que nos dão o seu talento único».
A Philharmonic tem procurado desempenhar ser um agente de mudança, inclusivamente ao contratar mais mulheres como maestrinas convidadas nos últimos anos e encomendando obras de 19 compositoras para homenagear o centenário da 19ª Emenda, que impediu os Estados de negar às mulheres o direito de voto (uma das obras que encomendou, “Stride”, de Tania León, ganhou o Prémio Pulitzer). Alguns dos seus músicos instaram em privado os líderes da Philharmonic a seleccionarem uma mulher para substituir o director musical cessante da orquestra, Jaap van Zweden, que deverá demitir-se em 2024.
Depois de passar décadas numa indústria dominada por homens, alguns membros da Philharmonic dizem que ainda se estão a habituar à visão de tantas mulheres no palco. Neste Outono, enquanto a orquestra celebra a remodulação da sua casa e a Filarmónica fez história com a sua maioria feminina, alguns sentem que começou um novo capítulo. Sylar confessa ter ficado impressionada com o talento artístico das mulheres que entraram recentemente no ensemble. «Também não estou a dizer que quero que esta seja uma orquestra só de mulheres. É simplesmente agradável ver que as mulheres estão a ser reconhecidas pelo seu talento», conclui.