Benedictus XVI & A Música do Diabo na Liturgia

Em vários momentos da sua história, a Igreja Católica pronunciou-se contra diferentes géneros de música. Antes de se tornar no Papa Benedictus XVI (e depois de renunciar no Papa Emérito), o então Cardeal Ratzinger condenou abertamente a música rock com base no facto de esta promover uma noção de liberdade irreconciliável com a da fé católica.

No pico do glamour da Sunset Boulevard, num artigo intitulado “Liturgie und Kirchenmusik” publicado em 1986 na Communio, o Cardeal Ratzinger referiu-se à incompatibilidade entre a música rock e a liturgia da Igreja. Citando livremente o artigo, Ratzinger afirmava que a «música pop é banal» e que «a música rock é o ofício do diabo».

A questão estava, precisamente, mais focada na música que deve ser usada na Liturgia do que na música que qualquer um pode ouvir. Isto numa altura em que, desde a década de 70, a música pop rock vinha ganhando cada vez mais espaço na forma dos jovens celebrarem a Eucaristia. Seguiu-se uma tempestade de protestos progressistas, a maior parte dos quais visava o mensageiro em vez de argumentar o contrário. Como pode um teólogo julgar a música moderna? Que direito tem um oficial da Cúria de dizer como os jovens de hoje devem participar na Liturgia? Implícita na controvérsia estava a caricatura de Ratzinger como o cão de guarda teutónico-académico-volto-doctrinal.

Um revisionismo tornou-se necessário em 1996, com a publicação de mais uma entrevista em livro com o Cardeal (desta vez pelo jornalista alemão Peter Seewald). Sua Eminência, aprendemos, afinal, só é humana. De resto, assim nos recordou a sua morte, no passado dia 31 de Dezembro de 2022, no Mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano. Relembrando a sua infância na Baviera, o Cardeal Ratzinger admite nessa entrevista que a música (especialmente Mozart) teve um papel importante na sua vida familiar: «A música, afinal, tem o poder de reunir as pessoas… Sim, a arte é elementar. Só a razão, tal como é expressa nas ciências, não pode ser a resposta completa do homem à realidade, e não pode expressar tudo o que o homem pode, quer, e tem de expressar. Penso que Deus construiu isto no homem».

Apoiando-nos na tradução de uma suma de Michael J. Miller, debrucemo-nos então sobre um artigo do Cardeal Ratzinger reimpresso em inglês como parte da antologia “A New Song for the Lord: Faith in Christ and Liturgy Today” e onde o autor contrasta uma teoria problemática ou uma tendência perniciosa com a verdadeira teologia da Liturgia e daí tira conclusões quanto ao lugar próprio da música na liturgia e sugere orientações para aplicações práticas.

O Desafio Cultural Vs. A Cultura Bíblica da Fé
(“Sing Artistically for God’: Biblical Directives for Church Music”, pp. 94-110)

«Uma vez que a música de igreja é uma fé que se tornou uma forma de cultura, ela partilha necessariamente da actual natureza problemática da relação entre Igreja e cultura» (94). Esta relação esteve em crise durante o Renascimento e a Reforma, mas a partir do Iluminismo, a própria cultura secular “emancipou-se” da fé: seguiram caminhos separados e afastaram-se ainda mais desde então. Desde o século XVII, a Igreja tem assistido à reforma Caeciliana da música sagrada, à redescoberta do canto gregoriano, e à renovação da música polifónica da igreja. No entanto, como resultado de deslocações culturais, «não sabemos como a fé pode e deve expressar-se culturalmente na era actual».

A imagem do lado da cultura é sombria. Na ausência de religião, a arte torna-se um esteticismo sem fundamento, sem direcção nem propósito. A música em particular dividiu-se em dois mundos: a pop (um produto manufacturado) e a música de alto nível racionalmente construída (uma forma degenerada e de elite de música “clássica”). Resta um meio termo: «uma estadia em casa na música familiar que antecedeu tais divisões, tocou a pessoa como um todo e ainda hoje é capaz de o fazer… A música da igreja instala-se sobretudo neste meio termo». Muitos são os apelos para que a Igreja dialogue com a cultura hoje em dia, mas poucos imaginam as conversações como sendo bilaterais. Não se pode esperar que a Igreja se submeta à cultura moderna, que, tendo perdido a sua base religiosa, se encontra num processo interminável de dúvidas interiores. A cultura também deve questionar-se radicalmente e estar aberta a uma cura, a uma reconciliação com a religião. Existem algumas directivas bíblicas para o caminho que a música da igreja deve seguir? O Cardeal Ratzinger restringe a questão: «Podemos encontrar um texto bíblico que resume a forma como a Sagrada Escritura vê a ligação entre a música e a fé?»

A Bíblia contém o seu próprio hinário: «o Saltério, nascido da prática de cantar e tocar instrumentos musicais durante a adoração». Além disso, esta tradição prática contém «elementos essenciais de uma teoria da música na fé e para a fé». Dentro do Antigo Testamento, o Saltério (ou o Livro dos Salmos) é como uma ponte entre Lei e Profetas; serve também como uma ponte que liga os dois Testamentos. Desde os primeiros dias da Igreja, os salmos são orados e cantados como hinos a Cristo, o Filho de David, o salmista. «O próprio Cristo torna-se assim o director do coro que nos ensina o novo cântico e dá à Igreja o tom e a forma como ela pode louvar a Deus apropriadamente e misturar-se na liturgia celestial». O Cardeal Ratzinger elege o verso de um salmo que aparece ao longo da história da reflexão teológica sobre a música da igreja. O Salmo 47:7 (em algumas numerações Salmo 46 e/ou o oitavo versículo) exorta: «Pois Deus é o rei de toda a terra; cantem louvores com harmonia e arte» (NVI).

A palavra hebraica maskil é usada nas traduções modernas como “uma canção inspirada” (M. Buber, alemão) ou como tocar “com toda a sua habilidade” (Bíblia de Jerusalém, francesa), ou como cantar “artisticamente” (numa versão aprovada pela Conferência Episcopal Italiana). As antigas traduções da Igreja também lançam luz sobre o assunto. «A Septuaginta, que se tornou o Antigo Testamento do Cristianismo, escreveu psalate synetos, que poderíamos traduzir como: ‘…Cantai com compreensão” – em ambos os sentidos da palavra: que vós próprios a compreendeis e que ela é compreensível». Claro que isto envolve mais do que um acto meramente racional; devemos cantar «de uma forma digna e apropriada ao espírito, disciplinada e pura». A interpretação de São Jerónimo segue a mesma linha: psallite sapienter. Sapientia significa mais do que compreensão; «também denota uma integração de toda a pessoa humana… com todas as dimensões da sua existência». Tal como o dom da sabedoria integra o conhecimento e a experiência com as exigências da Lei Divina, também o canto dos salmos inspirados envolve a pessoa humana, corpo e alma, com todas as suas faculdades, no culto divino.

A primeira palavra do versículo, «Cantem louvores» – zamir em hebraico – também está carregada de história. «A ênfase está no canto articulado, um canto com referência a um texto, que é apoiado instrumentalmente, como regra». Em forte contraste com a música de culto orgástico dos pagãos, zamir refere-se à música «do Logos», «que incorpora uma palavra ou evento semelhante a palavras que recebeu e responde a ela em louvor ou petição, em acção de graças ou em lamento». A Septuaginta elegeu psalleín como sua tradução, dando um novo significado, culturalmente condicionado, a uma palavra grega que antes só tinha significado tocar um instrumento de cordas, mas nunca cantar.

A partir deste estudo de palavras, o Cardeal Ratzinger tira várias conclusões sobre possíveis directivas bíblicas para a música na Igreja. A exortação «Cantai ao Senhor» percorre toda a Escritura como parte da chamada para adorar e glorificar a Deus. «Isto significa que a expressão musical é parte da resposta humana adequada à auto-revelação de Deus… Mero discurso, mero silêncio, mera acção não são suficientes». Não existe tal coisa como uma fé completamente indeterminada pela cultura, que poderia então ser inculturada da forma que se quisesse. «A decisão de fé enquanto tal implica uma decisão cultural; … A própria fé cria a cultura e não a leva apenas como uma peça de roupa … Este dado cultural . . . é capaz de encontrar outras culturas contemporâneas … Esta capacidade de troca e de florescimento encontra também a sua expressão no imperativo sempre recorrente, ‘Cantai ao Senhor uma nova canção’». A interpretação cristológica dos salmos é um exemplo particularmente dramático desta capacidade de desenvolvimento naquela que é uma forma cultural irrevogável e fundamental.

Os vários significados que podem ser encontrados na segunda palavra do nosso versículo do salmo variam entre as duas traduções sapienter e cum arte. Cantar de acordo com a sabedoria implica uma arte orientada para as palavras, que não se preocupa apenas com a inteligibilidade, mas «está sob a primazia dos Logos» e faz exigências aos nossos mais altos poderes morais e espirituais. A segunda tradução, com arte, diz-nos que encontrar Deus desafia uma pessoa a responder ao melhor das suas capacidades. Deus deu a Moisés especificações detalhadas para o tabernáculo; o esforço artístico no livro do Êxodo é retratado como uma participação na criatividade de Deus.

O Novo Testamento, tanto por citação frequente como por comando explícito, retoma a tradição do salmo como parte integrante do seu próprio ensinamento e adoração. «Quando se reúnem, cada um tem um hino [Gk: salmo], uma lição, uma revelação, uma língua, ou uma interpretação. Que tudo seja feito para edificação» (1 Cor. 14:26). Para a Igreja primitiva, o salmo apareceu como um dom do Espírito. As epístolas também dão testemunho de hinos cristológicos exaltados, recentemente compostos em grego. No entanto, no segundo século, como precaução após as inovações musicais das seitas gnósticas, a Igreja reduziu a música litúrgica ao Saltério. «A teologia do Saltério foi suficiente e estabeleceu o padrão em termos de conteúdo, mas também (…) a forma de fazer música especificada pelo Saltério tornou-se o modelo musical da cristandade emergente». Ou seja, a revelação foi completa com o fim da era apostólica e os hinos de inspiração divina encontrados na Sagrada Escritura foram suficientes para o culto da Igreja.

Liturgie und Kirchenmusik

Portanto, e aqui se chega à celeuma de “Liturgie und Kirchenmusik”, tanto a música pop como a música dos estetas elitistas são inadequadas para o culto divino. Esta última, proclamando que a arte “em favor da arte” e para nenhum outro fim, eleva o compositor ao nível de um puro criador. «Segundo a fé cristã, porém, pertence à essência do ser humano o facto de provir da ‘arte’ de Deus (…) e, como perceptores podem pensar e ver as ideias criativas de Deus com ele e traduzi-las no visível e no audível».

Por outro lado, será que a música litúrgica da Igreja não se baseou sempre na música popular para se renovar? Não é a música pop precisamente aquilo de que a Igreja necessita para se relacionar com a cultura contemporânea? O Cardeal Ratzinger recomendava, então, «caminhar com cautela» nesta área. No passado, a música popular era a expressão de uma comunidade claramente definida, unida pela língua, história e modo de vida. Resultando da experiência humana fundamental, transmitia uma verdade, por mais ingénua que a forma pudesse ter sido. A música pop, em contraste, é um produto padronizado da sociedade de massas, uma função da oferta e da procura.

Sendo intelectualmente honestos, muitos compositores (de vários quadrantes) apelidam a presença constante de tal ruído de lavagem cerebral e que a sua audição nos torna gradualmente incapazes de ouvir com discernimento, favorecendo uma comatose musical. Caramba, a banalidade, de facto abunda na pop. O Cardeal Ratzinger insiste que a fé não deve ser banalizada em nome da inculturação da mesma. Hoje em dia não temos de limitar a música da igreja tão estritamente ao canto dos salmos, porque temos «um tesouro infinitamente maior» de boa música litúrgica para nos inspirarmos. Mas manter a linha contra a investida de tentativas mal orientadas de importar formas musicais “modernas” para a liturgia requer «a coragem da ascese, a coragem de contradizer. Só de tal coragem pode surgir uma nova criatividade».

O Delírio Dionisíaco

No coração da liturgia, afirma Ratzinger, está «a questão do conceito correcto de liberdade». Na cultura ocidental actual, a noção de liberdade tornou-se, digamos, distorcida. Na encíclica Evangelium Vitae, João Paulo II contrastou o «conceito de liberdade egocêntrico» do mundo, que reduz a liberdade a «autonomia absoluta», com a verdadeira liberdade, que no pensamento cristão está enraizada nas verdades do Evangelho e «que possui uma dimensão inerentemente relacional». De acordo com a Igreja, liberdade não significa separação das instituições ou da consciência, nem equivale a «autonomia e emancipação»; pelo contrário, a verdadeira liberdade vem de se tornar mais plenamente humano, que é essencialmente existir socialmente, receber e participar. Ser plenamente humano implica também alcançar o equilíbrio adequado entre o físico e o espiritual. A liturgia cristã deve reflectir e participar plenamente nesta liberdade, assim como a música litúrgica.

Ratzinger afirma que, longe de promover e reflectir a liberdade encontrada em Cristo, «o rock procura soltar-se através da libertação da personalidade e da sua responsabilidade» e assim é «completamente antitético ao conceito cristão de redenção e liberdade, na verdade o seu oposto exacto». Em vez de fomentar a totalidade da pessoa, que constitui a verdadeira liberdade, o rock cria «a ilusão de salvação na libertação do ego… [e] do peso da consciência». Mais, o Cardeal Ratzinger adverte nesse artigo que a liberdade não é apenas um sentimento de libertação alcançado através de «delírios sagrados induzidos por ritmos instrumentais frenéticos». De facto, a liberdade não é de todo uma emoção, mas uma forma de ser em que «os poderes sensíveis [se integram] no espírito, de modo a que ambos juntos se tornem na pessoa completa».

A promessa de liberdade procurada em êxtase sensual trazida pela música rock é o que Jeremy Begbie chama de “escapismo”, que não é de todo liberdade, mas meramente negação. A música que promove tal liberdade entraria, portanto, em conflito directo com o espírito da liturgia. No entanto, a libertação emocional prometida pelo rock é aliciante. Ratzinger compreende que a verdadeira «libertação redentora é mais trabalhosa do que a procurada num frenesim extático». Numa cultura sempre faminta pelo Infinito, mas muitas vezes pouco disposta a sacrificar-se, o rock apresenta uma forma alternativa de religião que apela, generalizando a questão, à espiritualidade débil das massas.

Como já aqui se estabeleceu, de acordo com Ratzinger, esta primazia da música sobre a palavra é problemática, dado que «a relação com um texto, a racionalidade, a inteligibilidade e a sobriedade da liturgia cristã sempre foram pressupostos como a norma básica da música litúrgica». No cristianismo e mais especificamente na liturgia, a música deve estar «subordinada a uma mensagem, a uma declaração espiritual abrangente», enquanto que no rock a mensagem deriva da música.

Além disso, os elementos não textuais da música são aquilo que sempre preocupou mais a visão teológica do agora falecido Papa. É precisamente o «ritmo e melodia» do rock que Ratzinger considera responsável pela libertação sensual facilitada pela música rock. Dado que o não-textual possui primazia em relação à palavra na música rock e que estes elementos não-textuais permitem uma fuga aos sentidos que não é dirigida a nenhum propósito superior a si mesma, é evidente que o rock não se conforma com o espírito da liturgia ou com as expectativas da música litúrgica. Menos ainda a projecção do ícone rockstar e da relação entre o carismático músico e os fãs, local onde é muitas vezes divinizado.

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