Eis os álbuns nacionais que mais gostámos de ouvir em 2022. Procurámos ser eclécticos, mas o metal português manifestou-se com pujança avassaladora, só equiparável pela sofisticação e vigor do jazz nacional e derivados. Portanto, uma lista carregada de proficiência instrumental.
Felizmente, já é chavão dizer que «este foi um grande ano para a música portuguesa». Mas foi mesmo! Entre as várias expressões musicais, sucedem-se excelentes álbuns na música nacional. Talvez pelo tempo que as bandas tiveram para ponderar e preparar bem as suas composições durante o isolamento pandémico e depois, já em estúdio, tenham manifestado uma enorme sede de tocar. Alguma coisa terá sido. Nesta lista que apresentamos, não há uma ordem específica de classificação.
A título pessoal, ainda que esta coisa de discos preferidos seja sempre, essencialmente, pessoal, o favorito é esse extraordinário quinto álbum dos Process Of Guilt. Um disco que tive o privilégio de, num par de ocasiões acompanhar as sessões de estúdio e que revela uma banda que continua a reforçar as suas competências e a criar novas soluções musicais à sua estética. Não estão na lista (limitada a 10 discos), mas merecem menções muito honrosas trabalhos que analisámos ao detalhe nas nossas páginas, casos do álbum de estreia de Vísceral, também a estreia de ANZV e de Luís Raimundo nos discos a solo.
Ainda o excêntrico segundo disco de HOOFMARK, o regresso dos indignu e de Quelle Dead Gazelle. Para finalizar e ilustrar a quantidade de tremendos discos que enriqueceram a música portuguesa neste ano, à beira dos nossos dez preferidos estiveram ainda o terceiro álbum dos Gaerea, a imponente estreia dos Seventh Storm e “Concavexo”, que é um sublime exercício de imersão no amplo universo sónico dos NoA.
De resto, podem concordar ou discordar com estas escolhas, mas não as ignorem. Só discaços!

“Slaves Beneath The Sun” é o quinto álbum dos PROCESSOFGUILT [POG], editado pela Alma Mater Records, selo independente nacional e descrito em comunicado de imprensa como «uma experiência sónica que eleva a música a uma nova dimensão de desolação e peso. Profundamente conectado ao processo de culpa que todos nós enfrentamos enquanto estamos na Terra, ‘Slaves Beneath the Sun’ actua como uma viagem através da nossa própria culpa ao longo de seis faixas mais abrasadoras do que qualquer outra coisa que os Process Of Guilt já tenham feito antes. Movendo-se de forma constante através de diferentes dinâmicas, a banda explora uma abordagem vocal mais diversificada, grooves como mantras, uma sessão rítmica esmagadora, um amor eterno por feedback e mais riffs enormes do que se pode pedir em menos de 45 minutos».
Adjectivos como poderoso, massivo, monolítico, pesado, arrasador, etc., tornaram-se recorrentes para descrever a sonoridade dos POG. Certamente que vão ser abundantemente utilizados para descrever este “Slaves Beneath The Sun” e continuam a ser bastante ilustrativos da estética da banda, mas já não são o seu núcleo sonoro desde o anterior álbum, “Black Earth” [2017]. Os blocos de riffs massivos permanecem intactos e “Demons”, o tema de abertura, até nos remete para o colossal “FÆMIN” [2012].
O peso idiossincrático nas composições da banda chega a ser esmagador no tema título, com os vocalizos a transportarem reminiscências dos cantos guturais tuvanianos da Ásia Central, com os seus poderosos sobretons difónicos. E aí destaca-se outro dos aspectos mais relevantes na evolução dos POG, que se faz escutar logo desde “Scars”, a proeminência de uma secção rítmica frenética, carregada de síncopes e até momentos surpreendentes como a desconstrução da estrutura no final desse mesmo “Slaves Beneath The Sun” ou no compasso composto que suporta “Breathe” (tremendo o breakdown que vai pontuando cada verso, evocativo dos Machine Head na era “Burn My Eyes”). É este tema a pedra angular de um álbum que coroa e congrega o melhor que há nos dois discos anteriores e onde, simplificando, a unidade é imposta de forma espartana, pelo bloco rítmico intransigentemente rígido (e paradoxalmente carregado de groove) que é solificado pelas batidas punitivas de Gonçalo Correia e pelo brutalmente calibrado trio de cordas. A força que emana da dupla de cabeços Peavey 5150 é esmagadora.
É esta dinâmica em que os quatro músicos se movem em harmoniosa consonância que acaba por criar uma atmosfera sufocante, com as tensões instrumentais pontuadas por imensos choques rítmicos que criam fissuras na pressão e criam pontos de luminosa musicalidade. Se quiserem ir um pouco mais longe, podem recordar as nossas considerações sobre o concerto de apresentação do disco, no Musicbox. Aí debruçamo-nos sobre o carácter pitagórico dos POG.
Para montar este monstro sónico, os músicos partiram do ponto em que deixaram o seu sempre crescente público com o último longa-duração, voltando mais uma vez à brilhante mistura de Andrew Schneider no estúdio Acre Audio (KEN mode, Unsane, Julie Christmas, Rosetta), em Nova Iorque, e à masterização de Collin Jordan, no The Boiler Room LLC – Music Mastering (Minsk, Eyehategod, Wovenhand), em Chicago. O processo de captação teve lugar nos Buzz Room, em Lisboa, por Paulo Basílio, produtor, engenheiro e guitarrista com o qual colaborámos longos anos nos Why Angels Fall e que tem também uma curta aparição como músico convidado nas guitarras de “Breathe”.
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O título é bastante auto-descritivo. Michael Lauren, Vasco Agostinho e ainda o contrabaixista João Custódio gravaram o disco ao vivo, com Budda Guedes atrás da consola a assinar um trabalho que, diga-se já, se destaca pela amplitude do som de bateria e pela profundidade do contrabaixo e da guitarra, tudo envolvido numa sonoridade pujante e orgânica. De resto, os temas gravados são originais de Michael Lauren, de Vasco Agostinho ou de ambos. O tema de abertura é “Biji”, um original do lendário Sonny Rollins, com arranjos de Lauren e do guitarrista Vasco Agostinho. Introduz-nos logo numa dinâmica bastante energética e deixa bem ilustrado o enorme espaço no qual se movem os três instrumentos e o sumptuoso preenchimento de pratos que Lauren promove na ocupação desse espaço. Deixa também claro que esta gravação é um trapézio sem rede, com algumas impurezas nas notas – algo que afirmamos com total reverência – mas com um enorme feeling na interpretação.
“Ritual do Cabrito” é o favorito deste lado. Um tema onde se faz sentir a mão de ferro de Agostinho, como se o guitarrista estivesse a moldar as notas numa bigorna, mas sem martelo, usando apenas a força dos dedos. Talvez não saibam, mas o Michael, na sua imensa devoção à música, tem um cantinho reservado para os titãs do hard rock e neste tema, acompanhando o peso da guitarra e do baixo, revela uma potência de batida digna de Bill Ward e o retorcido swing bombo/tarola de Bonham. O baterista repetirá isso noutro malhão rocker deste disco, “Sempre Em Frente”. A título de curiosidade, há coisa de 20 anos, era um puto apaixonado pelo death metal (paixão que se mantém) e, numas férias escolares, aproveitei para frequentar uma espécie de summer camp do Hot Club. O professor de guitarra era, precisamente Vasco Agostinho. Desde aí, retenho a austeridade como um dos seus principais traços de linguagem que, nestes dois temas em particular, se faz sentir de forma exuberante, com uma solidez espartana.
Poderão ficar a pensar, se a melhor malha (subjectividade) surge logo no segundo tema, o disco deve perder pertinência naquilo que se segue. Pelo contrário, “Live At Mobydick Records” mantém-se um vibrante registo nos restantes cinco temas (objectividade). Logo em “Bonfim Blues”, original de Michael Lauren, ouvimos de forma bastante clara a generosidade desta lenda do jazz que, numa condução tão sólida quanto livre, se recosta numa execução subtil e aberta às manifestações de destreza dos outros músicos, individualmente e no seu cruzamento sónico, através de vigorosos solos e brilhantes frases harmonizadas. Depois, a ferocidade técnica do trio nunca soa como show off gratuito e circense, antes absolutamente suave e sem esforço, carregada de coolness como se ouve na serpenteante “Looking Back At Life”.
Então chega “Fresco”, possivelmente o mais cerebral dos seis temas. Até pelo seu 3/4. Não entendam mal pois, em cada uma das canções, qualquer um dos músicos é portentoso na sua execução, mas aqui João Custódio é verdadeiramente estelar na forma como liga os polirritmos da bateria e da guitarra e torna tudo uniforme, ao mesmo tempo que empresta também a sua voz e fogosa coloração estética. É nesse estado de coisas que, quase sem tempo para respirar entramos no explosivo tema final, “A Bridge To Remember”, que irá culminar num solo magistral do baterista.
Uma palavra para o trabalho de gravação do Budda Guedes. Nunca estive nos estúdios Mobydick, mas tanto quanto é possível perceber, não são muito amplos, nem o seu pé direito é assim tão alto. Isto para dizer que o disco se ouve como se tivesse sido gravado num grande auditório. A reverberação soa quase natural, as justaposições instrumentais fazem-nos sentir que cada um dos instrumentos está a uns bons metros de distância entre si, pela forma como respiram e como a mistura coloca cada um sob os holofotes nos momentos de respectivo destaque. Depois o som orgânico do contrabaixo, a força do bombo e tarola, o já referido preenchimento de espaço dos pratos e o vigor da guitarra traduzem com enorme rigor o vigor e a exuberância das execuções.
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“Hundred Umbrellas”,de José Menezes, é totalmente inspirado na música de Erik Satie. Os temas, com excepção de “The Last Umbrella”, que encerra o álbum, são todos composições do vanguardista pianista clássico francês. Os arranjos são de Menezes. É quase um exercício académico que o saxofonista cumpre com a serenidade e a eloquência musical de quem, de resto, está ligado ao ensino musical há cerca de quatro décadas. Consigo, neste disco, estão alguns dos mais criativos músicos do jazz nacional: Gonçalo Marques (trompete), Mário Delgado (guitarra), Carlos Barretto (baixo) e José Salgueiro (bateria).
“Gnossienne #4” transporta-nos para uma atmosfera requintada, cheia de acordes abertos e com os compassos algo “livres”. Nos overtones na primeira parte de “Fils De Étoiles” e no disparo propulsivo, na segunda metade da canção, entramos num território mais vibrante, com as harmonizações de guitarra, saxofone e trompete, a soarem épicas e a culminarem num fulminante exercício modal nas seis cordas e, na sequência, no caloroso protagonismo do saxofone. “Gymnopédie #2/Erik Shakty”segue uma estrutura semelhante: primeiro uma soturna densidade atmosférica; depois a explosão de ritmo, com as melodias e os solos dos sopros, quer as madeiras de Menezes, quer os metais de Marques, a soarem triunfais e grandiosos ao ponto de determinarem a chegada de guitarra com distorção e um cheirinho de reverse delay. Transportando algumas correntes orientais/indianas (de resto, intuídas no título) e dissonâncias que chocam contra as melodias, este tema é o pináculo da intensidade instrumental do álbum.
A bem-humorada “Redite (from ‘Trois Morceaux en Forme de Poire’)”, com um backdrop de cabaret moulin rougesco é o momento em que os baixos de Barreto, até aqui a construírem dinâmicas redes entre harmonia e ritmo, são colocadas sobre maior escrutínio com direito a solo. Perpassa, nos leads de cada um dos instrumentistas, um sentido de diversão e de algum acaso no controlo do caos, surgindo sinestesias com a Belle Époque e com os maneirismos dos cavalheiros europeus, entregues à boémia, a beberem excessivamente absinto e a sucumbirem aos encantos de bailarinas e cortesãs. Que uma peça musical consiga criar tão vívida imagem mental, é o maior elogio que pode ser feito a este disco. De acordo com as notas de José Menezes, “Gymnopedie #1”, escrita em 1988, «é talvez a mais popular das composições de Satie. É aqui apresentada com várias transfigurações melódicas e harmónicas, num compasso 5/4, em vez do seu tranquilo e plácido andamento original». Acrescentaríamos apenas que se tudo começa com o envolvimento da guitarra e dos bonitos harmónicos artificiais com que Delgado pontua o dedilhado de introdução, este é o tema ritmicamente mais explosivo, com José Salgueiro a manifestar-se exuberantemente portentoso (o solo que encerra a malha é prodigioso) e extraordinariamente cirúrgico nos pratos.
Por fim, a composição original de Menezes, “The Last Umbrella”. Uma extravagante fantasia livre de amarras matemáticas, com o angular solo de Barretto como epílogo. Uma revelação de tudo aquilo que cada um dos músicos que interpretam este trabalho lhe vieram oferecer. Da nossa parte, de Delgado, Barretto e Salgueiro, sabíamos (mais ou menos) o que podíamos esperar. Já de Menezes, nem tanto (apenas contactámos com a sua linguagem através dos álbuns dos All Stars de Michael Lauren), e muito menos de Marques. A verdade é que o saxofonista e o trompetista soam sumptuosamente coesos conjuntamente, com um grande som e uma dinâmica vigorosa oferecida pelo equilíbrio da mistura de Nelson Canoa – que captou, misturou e masterizou este discaço no seu estúdio, de rajada, nos dias 05 e 06 de Maio de 2022.
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2021 permitiu uma excelente colheita na música portuguesa. E, logo a 17 de Janeiro, 2022 prometia não lhe ficar atrás arrancando em grande com um novo álbum de Mário Barreiros, aclamado produtor e compositor nacional. “Dois Quartetos Sobre o Mar”, marcou um regresso de Barreiros ao jazz e à música improvisada, ao lugar da total liberdade criativa, onde a técnica é só expressão. «Um documentário, que é um retrato real sobre a vida dos oceanos, tornou-se no ponto de partida para esta criação em colectivo. Assim foi nascendo este trabalho de duas “moods” distintas, ora com o Quarteto Pacífico, com uma toada mais romântica, ora com o Quarteto Abissal, mais exploratório de águas densas e profundas. Este é um mergulho no misterioso grande azul, e na melhor das companhias», refere Mário Barreiros sobre o disco. Dois Quartetos, um mote: o Mar e suas tonalidades.
Dois quartetos de músicos foram gizados para operacionalizar esta visão dupla, mas coerentemente una que nos é oferecida em “Dois Quartetos Sobre o Mar”. O Quarteto Pacífico (que assume as quatro primeiras peças) conta com os préstimos do saxofonista alto Ricardo Toscano, do pianista Abe Rábade e do contrabaixista Carlos Barretto; o Quarteto Abissal (a seu cargo estão as restantes quatro composições) tem o saxofone tenor de José Pedro Coelho, o piano de Miguel Meirinhos e o contrabaixo de Demian Cabaud. As configurações instrumentais são bastante similares, mas (e apesar da sua coerência) sentem-se de forma estimulante as diferentes abordagens dinâmicas de cada um dos grupos de instrumentistas. A elasticidade estética é uniformizada através da figura axiomática do álbum, a bateria de Mário Barreiros.
Tudo começou com “Só Ten o Corpo Memoria”, condução embaladora a piano de Rábade (a partir de um poema escrito em galego) e muita suavidade e discrição dos restantes músicos. Um sentido introspectivo que se destaca também em “Narciso”, com o lirismo inspirado num texto de Ovídio. Na segunda metade, destaque-se o vigor dinâmico de “El Árbol Negro”, peça soberba de Cabaud – baseada na lenda da comunidade indígena Qom, da província de Formosa, no norte da Argentina – e a explosiva “Rede”, que encerra um trabalho e incita a nova escuta, do início.
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Não consigo evocar exactamente o contexto, mas há uns anos, a propósito dos Gaiteiros de Lisboa e das suas origens, o Carlos Guerreiro dizia em entrevista que um dos primeiros catalisadores foi ter dado de caras com a música dos Hedningarna e ficado a ouvir de boca aberta. Porquê mencionar isto? Porque os Retimbrar também fazem uma fusão das raízes da música popular com a pop e porque, acima de tudo, ouvir este “Levantar do Chão” me deixa de boca aberta…
Os primeiros sons deste disco chegaram com “Coisas da Minha Terra”, tema que celebra o encontro entre Retimbrar, o Grupo Folclórico Tradições Baixo Douro e os centenários Mareantes do Rio Douro, a quem se deve o ritmo que deu chão à canção. Depois fez-se ouvir “Vai Não Vai”. É uma cantiga de pergunta e resposta, directamente inspirada na estrutura de rima e música, da tradicional canção de trabalho. A descrição é tecida pela banda: «’Ó que lindos olhos tem a padeirinha’ que nos foi dada a conhecer no festival BONS SONS 2010 pelas Adufeiras de Monsanto. São elas as eternas guardiãs da tradição do toque e das cantigas de adufe; mulheres e figuras de fé em quem reconhecemos a resiliência como uma atitude perante a vida. “Vai Não Vai” é o desejo de ver retratado aquele que é, muitas vezes, o intervalo que sentimos estar entre os tempos de espera e as tomadas de decisão, quando o ímpeto se apodera de nós. E de um verso seu, se deu nome ao disco: ‘Se aguentar da queda, vai levantar do chão’». Esta é uma abertura explosiva do álbum.
“Pastor À Paisana” e as suas complexas camadas de harmonização coral, cheia de frenéticas síncopes que são tão atraentes quanto disruptivas. Será chuva, será jazz? Gente não é certamente, pois só o TugaBeat bate assim! E neste País das Maravilhas que sempre se abriu ao mundo, há ventos mornos da lusofonia africana em “Maneio”, noutra vibrante colaboração com o Grupo Folclórico Tradições Baixo Douro. Dá-se a acalmia com a pungente “Saudades Do Futuro”, cuja doçura vocal faz-nos pensar na nossa diva Maria João, multiplicada depois num coro, que na verdade é o Rancho Folclórico de Sta. Eufémia de Pé de Moura) de dinâmica tão suave como as cordas da guitarra de Miguel Arruda. E estas dinâmicas, a amplitude de cada um dos instrumentos e preenchimento vocal, merecem que se refira o meticuloso e uber equilibrado trabalho de Quico Serrano, que fez gravação, produção, mistura e masterização deste “Levantar do Chão”. É verdadeiramente sublime numa canção como “Rosa Tirana”, já mais perto do final. Mais convencimento fosse necessário, a esse respeito, e o veludo dos baixos de “Maçãzinha” seriam o bastante.
Os Retimbrar enquadram-na assim: «Conhecida do álbum de 1977 “Dança das Romarias da Beira-Baixa” do Rancho Folclórico de Silvares (Fundão) e, por variadíssimas vezes, ouvida no leitor de cassetes da carrinha onde a banda tanto viajou – a melodia-base desta canção foi cantada e reescrita pelos Retimbrar, pela primeira vez, para o aniversário da amiga Helena Oliveira, durante o primeiro recolher obrigatório da pandemia, em Março de 2020. Desde então que passou a fazer parte do repertório e teve muitas formas, mas sempre falou, e fala ainda, de afectos e do sentimento de cuidar, sob o olhar de duas gerações. Uxía surge como convidada a assumir o lugar de anciã desta “Maçãzinha” que é dedicada a Isabel Silvestre, especial cuidadora e defensora das nossas raízes e figura dianteira das tradições de (en)cantar da região de Manhouce».
A doçura tem desfecho em “Lindo Par”, com Rifo e o Rancho Folclórico As Padeirinhas de UI, uma enamorada e cândida desgarrada antes de regressar o folguedo e os Gaiteiros e os Hedningarna no vibrante instrumental que é “Montes”. Já que estamos a atirar referências levianamente (e lembrem-se de que apontar referências diz sempre mais do ouvinte que da música), “Festa de Gostei” faz-me pensar no saudoso João Aguardela, nas cores mais contrastantes que era capaz de conciliar na sua reinvenção da música popular, aqui retimbradas.
“Vai De Centro Ao Centro” transporta consigo a emocionante honestidade do quão simples, tão congregadora e comunitária pode ser a música, ouvi-la, fazê-la e cantá-la. Logo na primeira escuta desta linda melodia, dos seus calmos ciclos ritmícos e harmoniosos, damos por nós a trauteá-la, a batucá-la, a improvisar sobre o acorde menor aberto de base. Na verdade, é o final perfeito, antes do pitoresco “Baile Mandado”, para um disco também próximo da perfeição.
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Contando com Z. Pedro, no baixo, António C. na guitarra, Diogo P. na bateria e Orca R. nos vocais. “Crueza Ferina” é o 6º álbum de estúdio da banda de Rio Tinto (Porto). É composto por 19 temas que foram gravados por João Ribeiro e que receberam masterização do guru Brad Boatright [Sunn O))), Obituary, Nails, Corrosion of Conformity].
Pela sua brutalidade sónica e pelo humor grotesco, há mais de duas décadas que os Holocausto Canibal reinam nas profundezas pútridas do underground e do grindcore nacional. Ao fim deste tempo, os álbuns da banda nunca são arautos de grandes surpresas, nunca comprometendo a sua ferocidade visceral em detrimento de trends. Todavia, a cada álbum da banda sente-se sempre um patamar acima dos anteriores. A razão para isto é simples. Se o ponto de partida, há vinte e cinco anos atrás, foi a violência e a mesma se mantém, sucede que o polimento das arestas se deu com a intransigência das rotinas – ensaios, composição, gravação, digressão – e a consequente “rodagem”.
Cada vez mais maturada, com os músicos cada vez mais donos de fluidez na sua execução instrumental, a banda passou a ter aquele fluxo rock ‘n’ roll (sim, disparem “Campas do Negro Breu”, se persistem reticentes diante da afirmação). Significa que, há muito que aspectos técnicos mais toscos estão ausentes dos registos dos Holocausto Canibal e das suas apresentações em concerto (que, de resto, sempre ostentaram de forma mais exuberante este factor que referimos). Portanto, “Crueza Ferina” é tudo aquilo que os portuenses sempre foram, mas com um groove incomparável com aquilo que fizeram até aqui – mesmo admitindo que, apesar de contactar com a banda desde a sua concepção, o meu contacto com a sua discografia peque por epidérmico em alguns momentos.
“Exôdo Mortuoso”, o primeiro tema após a introdução que nos deixa os nervos em franja, conta com a participação de nome de sólida reputação no submundo do peso – Bob Vigna. O músico dos Immolation gravou o solo de guitarra nesta malha. E por falar em guitarras, desde este arranque fenomenal do disco, fica-se imediatamente com a sensação de “Crueza Ferina” ser, nesse aspecto particular, aquele que na discografia da banda apresenta melhor som, cheio de poder e articulação. Fenomenal trabalho de João Ribeiro. Enorme poder e equilíbrio na secção rítmica – sem excessos nos pratos – e uma intransigente parede de distorção, aliviada apenas em alguns momentos de fraseados melódicos, como “Psicótico Interlúdio”, que desencadeia de seguida a devastadora sequência de “Anátemas Nefandos”, “Esquartejado em Segundos”, a explosiva “Prenúncios Da Vingança Córnea”, com Diogo absolutamente demolidor nos blasts, e o aceno ao death metal old school de “Suprema Dominância Taurina”.
Vibrantemente dinâmico e consistente, o disco encerra com a jóia da coroa, “Quérolo dos Finados”, e o borderline d-beat de “Sortilégio da Perversão”. Uma palavra ainda para a beleza visceral da foto de Rui Pires que serve de capa ao disco, que é o melhor dos Holocausto e um dos melhores do ano. «Tem que se experimentar, se não se experimentar, não se sabe».
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Nocturnus Horrendus e J. Goat gravaram “The Bitter End of Old” entre Abril e Outubro de 2021, nos Generator Music Studios, em Sintra. Todo o trabalho de produção, mistura e masterização estiveram a cargo de Miguel Marques e da dupla de músicos. A capa, que evoca as gravuras de William Blake, foi criada pela Opposition Artworks, com o design e layout a terem assinatura da WrathDesign. O nono tomo dos Corpus Christii era uma das edições nacionais mais esperadas em 2022. As expectativas ficaram ainda mais elevadas após o triunfal álbum “Vala Comum”, da Morte Incandescente em 2021, banda que, ao vivo, integra os dois membros dos Corpus Christii.
Dizer que as expectativas foram superadas é dizer pouco. Porque “The Bitter End of Old” transporta imensos momentos surpreendentes que, não só mostram a banda no pleno da sua maturidade e capacidades, como ainda revelam inesperados recursos musicais, que provam a contínua expansão de uma carreira que foi inaugurada em 98. O riffing maníaco de “Unearthly Forgotten Memory” ou o estranho e hipnótico groove de “Fragmented Chaos” são dois tremendos exemplos disso. Menos rock ‘n’ roll que o anterior “Delusion”, o excelente álbum de 2017, este trabalho consegue ser, no entanto, mais cativante, mais coeso e ainda mais homogéneo, e bem mais explosivo.
Ao longo de 30 minutos, apenas alguns momentos de esvaziamento da pressão são oferecidos, como no interlúdio de baixo em “Behind The Shadow” ou, obviamente, logo na abertura semi-acústica de “Amargura”, por exemplo, seguida de “The Predominance”, que abre de rompante os portões de Pandæmonium, como a podemos entender na obra de John Milton. Como se fosse permitido ao ouvinte contemplar por alguns segundos a espiral de desespero e caos onde vai mergulhando. Pode naturalmente falar-se da preponderância do cânone da segunda vaga de black metal em “The Bitter End of Old”, mas isso já se trata apenas de um portal de vaga referenciação, pois nos últimos dois discos, principalmente neste, a intransigência estética dos Corpus Christii em se manterem como uma das grandes forças da ortodoxia estética do black metal, acabou por levá-los a desenvolver um carisma absolutamente singular.
A produção sónica deste trabalho é outra conquista. Agressiva, crua e limpa, exponencia todas as nuances dinâmicas dos intervenientes (instrumentais ou vocais) com uma articulação notável. Focada no corpo de médios, permite sentir cada blast beat com força demoníaca, oferece detalhe excruciante nas linhas exuberantes de guitarra e é, quiçá, o disco dos Corpus Christii com melhor som de baixo – verdadeiramente demolidor. A jóia da coroa é o espaço que permite ao riquíssimo trabalho, seja nas dramatizações vocais, nos sufocantes lamentos de “The Predominance”, ou nas épicas aclamações, como em “From Here To Nothing”, por exemplo.
Neste disco, a banda não só suplanta os seus anteriores valores de produção e de execução musical, como é capaz de invocar a angústia da orfandade. Quase numa forma de teologia negativa. Através de uma combinação da melhor tradição do black metal com o alargamento de técnicas e exploração musical, a atmosfera que se pressente é violentamente desesperante e, como referimos na analogia que dedicámos ao disco e ao “Cavalo de Turim”, filme de Béla Tarr, absolutamente mesmerizante. As sombras, a maldade e a demência são implacáveis na forma como retratam o mesmo efeito, a emancipação do nihilismo e a inversão da Obra do Criador. Isso aliás, está implícito no título do álbum e em “To the End, to the Void” – um dos melhores temas do disco. “Heinous” e os seus riffs monumentais encerram “The Bitter End of Old” de forma triunfal, fazendo permanecer a sensação de que este é o melhor trabalho da banda, certamente um dos melhores do ano e possivelmente um dos melhores (senão o melhor) álbuns do black metal luso e do nosso underground.
Majestoso, demente e genial…
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A energia que abunda nos riffs, pejados de pinch harmonics faz desabar uma tempestade eléctrica sobre o ouvinte, assim que se escuta “Locus Of Dawning” – primeiro tema daquele que era um dos álbuns nacionais mais aguardados do ano, marcando o regresso dos Analepsy às edições discográficas naquela que é a primeira gravação do grupo com a sua nova formação, após a turbulência de 2019. Todavia, “Impending Subversion” não dá tempo a considerações sobre o passado, através de uma explosiva entrada e os fulgurantes solos de guitarra e surpreendentes e cativantes progressões melódicas.
É em “Elapsing Permanence” que pela primeira vez sobressai de forma demolidora o poder rítmico das baterias de Tiago Correia – foi ainda o baterista (que entretanto saiu da banda) a criar este disco ao lado de Marco Martins, na guitarra, João Jacinto, no baixo e Calin Paraschiv, na voz e guitarra. É um dos momentos mais exuberantes do álbum, até pelo seu epílogo, marcado pelo shred do solo, iniciado com um fulminante arpeggio. Outro enorme destaque é merecido por “Spasmodic Dissonance”, malhão que impressiona pela velocidade, acutilância e poder do seu blast beat.
Mas neste “Quiescence” os Analepsy não se limitam a depender da sua tremenda capacidade de execução, da velocidade de do sweep picking ou da brutalidade sónica. A banda criou uma colecção de canções num formato clássico no género e a essa familiariedade criou uma parede de riffs in your face e dinâmica vertiginosa, com enorme coesão entre cada um dos instrumentistas – um petardo como “Streched And Devoured” nem funcionaria de outra forma – que acaba por facilitar a apreensão dos sublimes detalhes presentes nos arranjos. Por isso, os quase 40 minutos deste álbum sabem a muito pouco ou, por outro lado, convidam a que esteja a rodar em loop. Portanto, se aquele sentido “orelhudo” já se sente na banda desde o excelente “Dehumanization By Supremacy”, EP de 2015, agora está ainda mais vincado. Como se tivessemos Suffocation com boost no modo groove (o que, de acordo com as nossas preferências, até calha bem).
Gravado entre Agosto e Outubro do ano passado, nos Demigod Recordings. “Quiescence” contou com captação, produção, mistura e masterização de Miguel Tereso. É um disco fenomenal que encerra com dois épicos, o melhor tema do disco “Edge Of Chaos” e os deslumbrantes ambientes do tema-título.
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No dia 47 de Fevereiro de 2018 (a 18 de Março, portanto) lançaram o seu primeiro LP, “Luta pela Manutenção”. Por princípio, nunca é uma coisa má que um novo projecto de rock nacional nos remeta para alguns dos máximos expoentes exemplos da nação, como são os Mão Morta, Ornatos Violeta, Clã ou Já Fumega! E se o consegue fazer acrescentando carácter singular, como fazem os 47 de Fevereiro, tanto melhor. Muito melhor. Com uma estrutura rítmica simples e “riffalhões” como manda a lei, a banda agarra-nos facilmente e desenvolve progressões de guitarra e vocalizos entusiasmantes, com abundância de groove e um humor peculiar – e aqui há um aceno aos side projects de Mike Patton como Tomahawk e Fantômas, o mesmo que dizer que a “Luta Pela Manutenção” tem muitas coisas à Melvins.
No dia 21 de Outubro de 2022, lançaram o seu segundo álbum, “Processo Colectivo”. No fundo, é uma continuação do primeiro lançamento com uma visão melhorada da sua linhagem rock, um longa-duração que mantém os peculiares princípios e fundamentos de jogo dos 47 de Fevereiro, da mesma forma que renovam a sua fórmula de ataque, agora mais ofensiva, com o objectivo de lutar pelas posições de topo da tabela classificativa e pela promoção à Europa. Para o conseguir, a equipa conta com El Killo – Bateria, Voz, Percussão; Capitão Moura – Guitarra Eléctrica, Coros; Roque Xandeiro – Guitarra Portuguesa, Voz; Fiscal Bogdan – Baixo, Coros; Capadócio: Saz; Raul Bidon (aka Andreas “Pancho” Tarabbia) – Percussão. A gravação e mistura é assinada por Rui Ferreira e a masterização por uma das lendas nacionais, Mário Barreiros.
Os primeiros temas que ouvimos, por terem sido introduzidos como singles traziam mais e novas pistas sobre correntes estéticas aplicadas estrategicamente. Andreas Lutz (Ofunkillo), na voz, é convidado em “Lá Onde Mora A Coruja”, gíria clássica do futebol português, carregada de simbolismo. Refere-se a marcar um daqueles golaços no canto superior da baliza, o lugar mais inatingível para o guarda-redes. “The Striker” é um tema que, nem de propósito, reivindica opções de vida, principalmente quando vão contra o mainstream, e ter a coragem de assumi-las e lutar por elas. É também uma homenagem a Joe Strummer (The Clash) e a Ian Astbury (The Cult). Mas há outras…
Disparando o disco de início, “Vermelho Directo” serve como uma introdução antémica, ao jeito de “Body Count’s In The House”, no disco homónimo dos Body Count em 1992. E já que apontamos a esses anos da explosão do rock alternativo, poderíamos referir que em “Besta Negra” El Killo faz soar síncopes com a graça de Stanier nos Helmet. O Capitão Moura vai destilando riffs que fundem “Bleach” com “Zoot Allures”. Faz sentido? Talvez não faça muito, mas nisto de analisar tácticas, poucas vezes se consegue fazer sentido. Importa especular com estilo. Imagine-se Luís Freitas Lobo a referir que o 4x3x3 das equipas de Mourinho possui traços do existencialismo fenomenológico da filosofia de Martin Heidegger. É diante de devaneios tais que percebemos a importância do trinco no futebol moderno, com a tremenda densidade dos baixos de Fiscal Bogdan a solificar-nos os pensamentos na realidade nesse midtempo que é a title-track e antes de, uma vez mais, sermos colocados diante de uma expressão de realismo mágico, em “Sociedade Anónima Destrutiva”.
Em crescendo de intensidade, “Municiador” sente-se com tremendo poder propulsivo e de forma frenética. Com a bola no “Último Terço”, a tensão é palpável, em direcção ao golo. No final repita-se a escuta para, descobrir nuances dinâmicas e aumentar o score. Irão descobrir que estão a assistir a uma goleada.
★★★★★

“Old, New, Fast ‘n’ Slow” foi gravado e misturado por Ricardo Riquier, nos Mary Pie Studios, e masterizado por Guilherme Vales. Este disco conta com Paulo Franco (voz e guitarra rítmica e baixo), João Guincho (voz, guitarra e baixo), Fred Ferreira (bateria, teclas), Vicente Santos (teclas) e Filipe Brito (baixo) e ainda com a participação especial de Cabrita (saxofone), na música “Raw & Vulnerable”.
O press release apresenta o disco de forma conceptual: «O eterno retorno que nos assola os dias faz-nos rodopiar numa espiral de contradições onde o coração se opõe à mente e o ritmo à nossa volta não consegue acompanhar o que nos guia interiormente. Ou porque é rápido demais ou porque é lento em demasia e tudo nos conduz a questões, contradições e incógnitas que, em certo ponto, nos fazem duvidar da própria existência em si e, até, da humanidade. Old, New, Fast ’n’ Slow é o confronto que temos diariamente com o mundo à nossa volta e com todas essas dicotomias. É a banda sonora que nos abana e personifica instrumentalmente as questões que vamos criando. São 10 canções que transpiram rock ’n’ roll».
Não nos vamos meter por considerações filosóficas. Vamos reter «10 canções que transpiram rock ‘n’ roll». Como sabem, de rock ‘n’ roll está o mundo cheio. Rock In Rio, Super Bock Super Rock, etc. Sim, o rock ‘n’ roll é como o inferno. Está cheio de boas intenções. E é aqui que chegamos ao quinto disco na discografia dos DAPUNKSPORTIF, pois não se fica pelas intenções e dá-nos de facto uma dezena de malhões que transpiram rock ‘n’ roll, ainda por cima cheio de pedigree. A sombra de Josh Homme, seja na forma de Kyuss, Queens Of The Stone Age, Eagles Of Death Metal ou mesmo Them Crooked Vultures, é omnipresente em cada segundo desde disco, a explosiva abertura com “Raw & Vulnerable”. Depois há aquele sujeira Oliver Ackermann e a propulsividade Black Rebel Motorcycle Club. A voz de Paulo Franco partilha semelhanças com Dan Auerbach. Tudo isto somado, mais um velho cheirinho punk, temos o carácter sónico dos DAPUNKSPORTIF.
São já praticamente duas décadas a levantar ferro através de riffs e batidas directas. Sinal de que tudo está certo é quando se diz a cada álbum que o mais recente é o melhor. Sejamos honestos, “Soundz of Squeeze ‘o’ Phrenia” é um discaço e partilha muitos dos pressupostos que assinalámos no parágrafo anterior, mas desta vez soa tudo ainda mais amplo, dinâmico e, acima de tudo, mais orgânico. A dupla Franco/Guincho sempre nos ofereceu grooves mega trancados, mas com Fred cada vez mais integrado no som da banda, esse factor está exponenciado e bate-nos com mais força em “Love Hurtz”. O tamanhão de “Getting Lost”, o boogie de “Moving Slowly Backwards”, o peso e as panorâmicas de guitarra de “Disconnect”…
Não estamos a apontar as malhas que mais se destacam, apenas as nossas favoritas. Afinal, para fazer referência uma expressão que, actualmente, muitos usam a eito e nem sempre se justifica como sucede aqui, em “Old, New, Fast ‘n’ Slow” não há fillers, apenas killers. Disparem o player para esta vertiginosa montanha-russa de rock. Bagaço! Discaço!
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