As melhores capas de álbuns (ou de qualquer outro produto) serão talvez as que nos intrigam. Nada se compara ao poder do mistério, a promessa de que se entrarmos por esta porta iremos descobrir tesouros e elixires. A beleza estética de uma superfície é sempre o factor que nos prende o olho, mas há belezas que se ficam só por essa superfície. Não é o caso de “Debut”, de Björk.
O olhar pode-se demorar um pouco mais para reconhecer o belo, mas não se dá o passo ao encontro mais profundo. Já está visto, o que há para usufruir está exposto. O resto é mais do mesmo. Existe essa beleza e existe a beleza intrigante, aquela que contém a promessa em si mesma de desvelar novas camadas de si própria. A beleza que é bela não tanto por aquilo que mostra, mas pela promessa contida de novas revelações. Ao debutar na cena musical da década de noventa em nome próprio, Björk Guðmundsdóttir sabe que pouco mais precisa para captar a atenção daqueles que não a conhecem já da cena de rock alternativo com The Sugarcubes, do que meter o enigma do seu próprio rosto na capa.
Björk vem da Islândia antes de a Islândia ser uma arquipélago presente no consciente colectivo musical da humanidade. Vem da Islândia antes de bancos falidos e línguas esquisitas e vulcões. É a embaixatriz original da ilha dos elfos. Cresceu no meio da natureza, numa terra onde a natureza é sinónimo de paisagens alienígenas e caldeiras fumegantes. Onde a ideia de beleza agreste e estranha ganha todo um sentido visual. Onde estradas são propositadamente desviadas para não perturbar os domínios de criaturas míticas. Björk é estranha até para os padrões islandeses. É preciso, portanto, situarmo-nos num contexto: em 93 estamos a meio caminho entre o ocaso do grunge e o início de britpop. As guitarras e a angústia de Seattle terão uma vida curta, mas marcante, pois toda a explosão punk é verdadeiramente isso: uma explosão, rápida, inesperada, contundente, cujos destroços e estilhaços ficam presentes muito depois do impacto se ter extinguido. O punk é o bombista suicida do pop rock.
Assim o foi em 77, assim tornou a ser em 91. A psique colectiva só aguenta uma determinada dose de raiva e angústia. Depois disso vai buscar o conforto do pop orelhudo e de certa forma mais fútil, que é sempre superiormente concebido nas ilhas britânicas. Björk havia já, com The Sugarcubes (e com os Tappi Tíkarrass e Kukl), surfado por mais de uma década as várias vertentes do pós punk, sendo por isso natural que ao aterrar na cena londrina do início da década já não sejam as guitarras e a fúria cuspida ao microfone o que mais lhe interessa.
O pulsar que a atraiu desde o outro lado do mar, que a fez trocar a sua casa imaculada de musgo e rocha vulcânica, pelo berço da revolução industrial, esse pulsar vem dos clubes londrinos. É batida do deep house, o suor derramado nas pistas, a dança frenética das ruas de Leicester Square a Camdem Town, a metronomia do tube. Toda a sinfonia urbana é um chamariz irresistível para qualquer ser élfico. Björk vem de uma ilha para outra a fim de assumir a maioridade: é preciso deixar a mãe natureza e os seus fiordes repousantes, e adentrar o caos sensual da Babilónia.
Toda a sinfonia urbana é um chamariz irresistível para qualquer ser élfico.
O homem que dá o fio condutor a “Debut” (que, na verdade, não é o primeiro, mas o segundo álbum de Björk a solo, sendo que estreia foi em 77 com o LP homónimo) é o produtor Nellee Hooper, o Bristoliano membro do Wild Bunch, que viria a metamorfosear-se nos Massive Attack. Agarrando nas ideias soltas de Björk e em melodias e letras compostas ao longo de 3 décadas, Hooper coze tudo com os arranjos que viriam a tornar “Debut” um clássico: a batida omnipresente da cena de dança, as orquestrações luxuriantes, o jazz sujo, os detalhes da electrónica ambiente. E a voz de sotaque estranho, e inflexão única, que não sabe bem se quer cantar, gritar ou sussurrar. A voz de Björk pode num dia ser um bálsamo e noutro ser giz numa lousa.
Lançado pela One Little Indian, esperava-se que vendesse à volta de 40.000 cópias em todo o mundo, número baseado nas vendas dos Sugarcubes. Vendeu 600.000 no primeiro trimestre! Björk deixou de ser a vocalista de uma obscura banda indie para pertencer aquele muito raro clube de estrelas pop que são conhecidas apenas pelo primeiro nome (o facto do segundo nome ser impronunciável poderá contribuir para tal). Mas mais do que uma “estreia” auspiciosa, “Debut” é um marco na estrada da música: inaugura um a certa expressão da pop, em que o experimentalismo electrónico, a toada dançante, o impressionismo emocional das letras (mais preocupadas em capturar pequenas impressões, de momentos fugazes, do que grandes declarações de intenções) e a vontade de fugir a fórmulas são os componentes estruturais. Podemos chamá-lo de pós pop. Arte pop.
E à frente de tudo isto temos a imagem da própria Björk, uma das silhuetas mais distintivas nosso panorama musical. É essa silhueta que vai adornar todos os seus álbuns daqui para a frente, em composições progressivamente mais barrocas e extravagantes. Em cada videoclip Björk procura novas formas de mergulhar em si mesma, tornando a sua forma mais orgânica ou mais cibernética, mais fractal ou vectorial, mais crua ou mais adornada. Com roupas, sem roupas, com cisnes, matrioscas ou pérolas, a imagem de Björk é sempre iconográfica, caleidoscópica. Artistas visuais como Matthew Barney, Michel Gondry, Chris Cunningham, Alexander McQueen ou Jean Baptiste Mondino são colaboradores frequentes nos seus trabalhos. É deste último a fotografia que adorna “Debut”, a imagem que Björk escolheu para de certa forma se apresentar ao mundo.
Não temos aqui ainda a profusão de cores ou a explosão de fantasia onírica que daqui para frente irá suceder. Esta é a calma antes da tempestade. O elfo acabou de dar à costa e aparece ainda algo tímido. Perante um fundo neutro, Björk apresenta-se a sépia, uma imagem de um passado imaginário, em terras de fantasia, que já foi o nosso. Veste uma camisola de pelo crespo, como se fosse não tanto a pele de um animal morto, mas como se ela própria fosse esse animal, apanhada no processo de metamorfose para ser humano. A expressão de surpresa, com as mãos em frente da boca no que poderá ser um rezo, um cumprimento ou uma defesa, contribui para a sensação de veado apanhado pelos faróis do carro. Oops! Björk é aqui ainda um bocado criança velha, um bocado feral, ser dos bosques islandeses que decidiu descer à cidade, atraída pelas luzes e pelo pulsar, mas também decidida a vir partilhar de sabedoria antiga, de lições da terra e do fogo.
Quase que se pode adivinhar que após o momento de surpresa do flash da câmara, quando aquelas mãos descerem, vai-se desenhar no rosto o sorriso enigmático e maroto de quem devorar o mundo enquanto é devorada por ele. Björk está numa viagem no qual o fim não estará ainda à vista por uns bons anos (espera-se). Mas talvez o álbum final apresente uma imagem simétrica a esta, antes do regresso definitivo ao coração da terra e à “animalidade” natural.
A promessa que se pressentia aqui era a de acompanharmos uma vida no seu percurso num mundo que é o nosso, mas que, infelizmente, nós não conhecemos muito bem. É preciso quiçá olhos alienígenas para ver tudo o que nos rodeia habitualmente de uma nova perspectiva. Tal como o turista que vindo à cidade nos arrasta para aquele monumento pelo qual passamos todos os dias e já nem ligamos. Björk é a grande turista cósmica no mundo da pós modernidade e a carreira dela o seu diário de viagem. Mais do qualquer outro artista, o seu gosto pelo experimentalismo e a sua indiferença em repetir fórmulas tem sido inconsistentemente consistente nos últimos 20 anos, permitindo, na fusão de sons e imagens, uma redescoberta da matriz que criamos e de como esta se insere em outras matrizes maiores, mais profundas e antigas. O pop xamânico de Bowie encontra nela, quiçá, a sua mais legítima sucessora!
Texto de Carlos Garcia, ilustrador. Aqui reposto com gentil permissão do autor. Edição de Nero. Originalmente publicado na extinta versão digital da Arte Sonora #54.
Um pensamento sobre “Björk, Debut”