Os paradoxos ontológicos do solipsismo à luz da brutalidade hardcore de “Lower Canopy”, o EP/7” dos Don’t Disturb My Circles, que a Ring Leader e a Regulator Records editaram em 2018.
Na filosofia, o solipsismo é a consequência última de se acreditar que o conhecimento ou o saber-se está exclusivamente enraízado em estados de experiência interiores, onde apenas subsiste o ego e as suas sensações e tudo aquilo que o rodeia é acessório, meras impressões de papel figurativo. Na melhor das hipóteses, o solipsismo é voluntariamente abraçado como ideal – no caso do isolamento monástico, do eremitério, embora aí, o ego procure uma ascese metafísica, em detrimento da sabedoria. Na pior das hipóteses, esse egoísmo pragmático torna-se narcótico.
Poucos homens são justos para o seu próprio bem. Seguros de si, daquilo que aos seus olhos é a sua exemplar fibra moral, em poleiros de auto-ilusão e grandiosidade adquiridos através duma cultura de individualidade, não toleram depois ver-se reflectidos nos olhos dos que não os julgam. Então feridos de morte, ante a compreensão da sua própria pequenez, defendem-se com um complexo de superioridade, com um hálito negro de rancor para com aqueles que os rodeiam. E assim lhes sucumbe o resto da graça: incapazes do seu próprio bem, tornam-se incapazes do bem ao próximo. Não amam ninguém, ou nada, a não ser a si próprios. Que leiam o mythos de Narkissos e possam despertar a tempo.
Estas reflexões são despertas por “Lower Canopy”, EP que os Don’t Disturb My Circles editaram em 2018. E que, abrindo com o tema “Rotten And Pleased” e fechando com “Self Inflicted Solipsism”, parece criar um loop paradoxal neste sentido. Porque, na maioria das vezes, é a corrupção que sufoca o indivíduo e o impele a procurar refúgio dentro das suas delimitações ontológicas. Mas depois são estas delimitações, uma fraca, baixa ou reduzida canópia, que acabam por corroer a mente, o espírito e , consequentemente, à sua perdição.
Foi há uns valentes anos que, num obscuro concerto de No Omega (com o chamariz do selo Throatruiner), se deu o contacto com a brutalidade hardcore punk a que a banda nacional funde um certo groove rocker e uma furiosa matemática instrumental. Como refere um internauta no Bandcamp dos DDMC, esta colecção de quatro temas carrega reminiscências do hardcore na viragem do milénio e aos três grandes “Cs”, os Converge, os Coalescence e os Cave In. A ferocidade instrumental do trio que compreende as baterias de João Seixas, os baixos de Sérgio Prata Almeida e as guitarras de Henrique Reis é-nos entregue com assinaláveis destreza e velocidade de execução. E depois, vocalmente, o João Alves Coelho empresta aos temas toda a visceralidade do seu âmago.
A articulação sónica é cortesia do Sérgio Prata Almeida, que gravou, misturou e masterizou os EP no estúdio Midnight Session. A edição conjunta dos selos Ring Leader e Regulator Records ofereceu quatro capas diferentes à versão física (edições de 15 exemplares por capa), a homenagear discos que habitam o imaginário dos músicos.
Os DDMC parecem estar agora embrenhados numa outra persona, os BØW, cujo explosivo exercício que é “Infectious Salty Assault” revimos à luz de “Fedro” de Platão e desse monumental filme de acção e filosofia que é “Point Break”. Há outros pontos de contacto, como a filosofia DIY, a agressividade e a sobrecarga de médios na impressionante parede de distorção. De qualquer forma, espera-se um novo registo dos Don’t Disturb My Circles. Até lá, disparem “Lower Canopy”…

Um pensamento sobre “Don’t Disturb My Circles, Lower Canopy”