O explosivo exercício powerviolence que é “Infectious Salty Assault”, EP/demo de estreia dos BØW, à luz de “Fedro” de Platão e desse monumental filme de acção e filosofia que é “Point Break”.
Talvez seja o melhor filme de sempre. 100% de adrenalina e entretenimento ininterrupto, com abundância de voltas e reviravoltas. Mas não é entretenimento sem sentido, como a maioria dos filmes de acção são. Falamos de “Point Break” (1991), onde toda a hiperbolização faz sentido e por isso é paradoxalmente realista. Todos os actores apresentam performances bem conseguidas, especialmente se considerarmos que se trata de um filme de “acção”, talvez porque uma das coisas que mais impressionam é a forma como o script se entranha, numa leve filosofia veraneante, na estrutura da sociedade e no sentido da vida, através dos olhos de Bodhi (Patrick Swayze). Chamem-lhe o que quiserem – um ladrão, um ladrão de bancos, um viciado em adrenalina ou um criminoso – mas o homem diz muitas verdades. Claro que isto não justifica as suas acções e a criminalidade, mas é preciso dar ao homem algum crédito por ser capaz de fazer o melhor que pode para viver espiritualmente fiel a si próprio e trazer alguns outros para a sua realidade. Um guru que, noutro edifício social, talvez fosse messiânico.
A verdade de Bodhi soa tão melíflua que nem o agente do FBI Johnny Utah (Keanu Reeves) consegue resistir a isso. Impedido de seguir os seus sonhos, Johnny vê-se enredado numa vida e numa rotina que não idealizou, nem de perto nem de longe. Por isso, o estilo de vida livre e divertido de Bodhi conquista-o e a nós, já que ele nos personifica. Isto porque Bodhi tem o dom de ler as pessoas e “descobri-las”, assim como uma forma de com elas travar amizade autêntica e irresistível. Bodhi é o Verão, a Califórnia, o rock ‘n’ roll. A dinâmica destes carácteres contrastantes estabelece o alucinante ritmo em que assistimos ambos a tornarem-se amigos, enquanto cada um desconfia do outro, o que cria uma tensão constante e quase perfeita ao longo de todo o tempo do filme.
São os dois cavalos alados da parábola de Platão em “Fedro”: o cavalo branco representa o impulso racional ou moral; o cavalo preto representa as paixões irracionais, o apetite ou a natureza concupiscente. É divertido ver como Bodhi continua, constantemente a tentar aproximar Utah da sua propensão para a diversão e a ligeireza descomprometida, ensinando-o sobre o lado espiritual do surf e da vida, enquanto se pode ver Utah a questionar as suas opções de carreira, abraçando a lei e a responsabilidade. Um ex grande atleta universitário que está a ser seduzido pela beleza da costa californiana, das suas praias e mulheres. Consequentemente, muitas cenas desenvolvem-se a partir daqui. E nós, os espectadores, o intelecto ou a alma que deve guiar a platónica biga do espírito à verdade. Bodhi é um grande personagem. O melhor Patrick Swayze de sempre e, sim, adoramos “Roadhouse”. Não só é um líder carismático e inteligente, que é fixe e real, como vive literalmente guiado por um conjunto de regras ao longo do seu empreendimento criminoso – regras que o tornam realmente honrado e respeitável, mas quando as coisas correm mal, ele tem de quebrar uma delas e quando isso finalmente sucede, só então o vemos realmente como o mau da fita, o que ele é definitivamente. O final é simplesmente fantástico, porque se mantém fiel à espiritualidade que o filme introduz. É o máximo que podemos dizer sem spoilers.
Bom, talvez possam extrair mais substância de “Fedro”, que nem sequer é um volume particularmente denso, bem pelo contrário. Mas se quiserem um resumo cheio de explosivas sequências de acção, “Point Break” é a melhor opção. De resto, os filmes são um bocado como as bandas. Junta-se um grupo de malta que, quiçá, individualmente nem são os mais prodigiosos músicos e em conjunto, por união de esforços fazem boa música, onde o todo é maior que a soma das suas partes, para parafrasear Aristóteles, outro pós-socrático. É preciso mais que bons músicos para fazer uma boa banda, por mais dinheiro, talento e esforço de produção que estejam envolvidos. Tal como sucede com os filmes e com este “Point Break” e tal como sucede com esta nova banda que são os BØW.
Hardcore. Powerviolence. E a mesma ligeireza filosófica cheia de referências, precisamente, a “Point Break”, com citações extraídas do filme no permeio dos temas e Santa Cruz a servir de Califórnia, neste curtíssimo e prometedor registo que é “Infectious Salty Assault”. Também gravado pelo Sérgio Prata Almeida, tal como os discos de Don’t Disturb My Circles, banda que esteve na génese deste projecto. Há outros pontos de contacto, como a filosofia DIY, a agressividade e a sobrecarga de médios na impressionante parede de distorção. Mais as vociferações contra a moagem imposta pelo sistema, encarnando Bodhi. Este registo vvai fazer-vos tornar a subir à biga e a pegar nas rédeas. Disparem o player e vão ficar a ouvir em loop. Espera-se muito, muito mais, tão brevemente quanto possível!
7 pensamentos sobre “BØW, Infectious Salty Assault”