Besta

A Era da Besta, a Terceira Vinda e a Terra em Desapego

Os Besta vão editar o seu 3.º álbum em Agosto de 2023 e abriram-nos as portas do estúdio para uma primeira audição exclusiva do trabalho. “Terra Em Desapego” transporta consigo a ferocidade reconhecida à banda, mas eleva o renovado quarteto a um patamar, raramente visto no metal português, de excelência musical interpretativa do mundo caótico e violento em que vivemos e da sociedade blasfema e egomaníaca em que nos tornámos.

No início do ano, os nacionais Besta revelaram o título do seu terceiro registo de longa-duração. Intitulado “Terra Em Desapego”, o disco vai ser editado numa parceria entre a Lifeforce Records (que vai editar mundialmente o registo nos formatos CD, LP e digital), a Black Hole Productions (responsável pela edição brasileira em CD) e a Raging Planet (a cargo do lançamento em cassete limitada). Chegará aos escaparates no dia 4 de Agosto de 2023.

Com vários lançamentos desde que surgiram em cena, corria o ano de 2012, partilharam palcos com bandas como Eyehategod, Napalm Death, Criptopsy, Possessed, Obituary, Mantar ou Conan, para citar apenas algumas. Já fizeram várias digressões na Europa e também na América do Sul, sendo que, no currículo, contam também com uma série de aparições em festivais de renome, de que são bons exemplos o Obscene Extreme ou o Ressurrection Fest.

O mais recente longa-duração de originais dos Besta, intitulado “Eterno Rancor”, foi editado a 15 de Março de 2019 e marcou o primeiro lançamento do grupo através da independente alemã Lifeforce Records. Já o dissemos amiúde nestas páginas, mas reforçamos que esse disco tornou-se distinto por cristalizar uma progressivamente crescente consciência social que o grindcore da banda foi desenvolvendo nos últimos anos. Sonicamente, é um álbum prossegue uma estética apegada aos padrões do género no final dos anos 80, sem grandes compromissos na atitude. É old-school, revestido de algum caparro extra de low end. Ou seja, groove à bruta no que respeita ao som e ao vigor de execução da banda, na qual se destaca o dinamismo instrumental e o facto da voz não ser uma espécie de one trick poney.

A formação actual do quarteto, que inclui elementos dos Sinistro e Redemptus, é composta por Paulo Rui na voz, Paulo Lafaia na bateria e Ricardo Matias e Ricardo Correia nas guitarras. “Terra Em Desapego” será o primeiro disco com estes músicos, que já subiram a palco na ocasião em que mais recentemente os apanhámos ao vivo. Foi no SWR Feast, cuja análise e respectivo concerto podem ser recordados na reportagem da ROMA INVERSA ao festival minhoto.

666

A Besta do Apocalipse é uma figura simbólica que aparece no livro que fecha o Novo Testamento, o Apocalipse. Representa o inimigo final de Deus e do Seu povo, e é descrita como uma criatura terrífica que surge da terra para causar caos e destruição. O Livro do Apocalipse descreve a Besta como tendo dez chifres e sete cabeças, com nomes blasfemos escritos em cada um deles.

Embora o seu significado exacto seja aberto a vários tipos de interpretação (o que sucedeu ao longo da história), permanece como um símbolo poderoso que continua a cativar a imaginação de artistas e teólogos. Alguns olham-na como uma representação das forças das trevas e do pecado que ameaçam engolir a humanidade, enquanto outros a vêem como um aviso dos perigos da idolatria e da falsa adoração. A associação da Besta com o número 666, a “marca da Besta”, também levou alguns a interpretá-la como um símbolo do Anticristo, uma entidade prevista para surgir no fim dos tempos e levar a humanidade à rebelião contra Deus.

Apesar da sua natureza sinistra, a Besta também é olhada com esperança, pela promessa de que acabará derrotada pelo poder de Deus. Estes dualismos dão-lhe o carácter duradouro no pensamento filosófico e, acima de tudo, na arte, na literatura e na música, onde provoca reflexões sobre a natureza da existência e o nosso lugar no mundo.

Terra Em Desapego

Aqui chegados, nunca uma era esteve tão madura para um novo disco de uma banda como os Besta. Há um tremendo soundbite de Richard Cassaro, autor dedicado ao misticismo e simbolismo, que diz: «Our technology is masking the fact that we are living in a Dark Age». É difícil discordar.

O mundo anterior, com o seu carácter pastorício, de nobreza de direito divino e em que a Igreja era o próprio ar que se respirava, morreu de velhice (quiçá de reforma antecipada) e os ares claros deram lugar, primeiro, ao crescente poder financeiro da alta burguesia e, depois desta de instalar na aristocracia, ao fumo fabril. E a injustiça das relações sociais, num mundo em que tudo era predeterminado por leis divinas, deu progressivamente lugar a um mundo onde essa injustiça é agora moldada por leis bem mais prosaicas: as do mercado! A agravar tudo isto, emergiram as redes sociais e a formam como descontextualizam e condicionam o acesso à informação, filtrada pelo controlo dos media exercido pelos grandes interesses económicos.

Em 2023 a Europa encontra-se numa guerra sem sentido, que ricocheteia outros pontos do globo; a ameaça nuclear possui uma sombra que parece alastrar à dimensão da Guerra Fria; os ricos são cada vez mais ricos, a classe média cada vez mais subjugada e os pobres cada vez mais sem futuro; aumenta a intolerância à diversidade, ao livre pensamento e ao livre-arbítrio; o crime e a corrupção instalam-se progressivamente nos magistérios governamentais, judiciais e até religiosos. Em Portugal, em particular, o escândalo da pedofilia clerical divide a guerra de audiências televisivas com o caos na habitação e com a leviandade do uso do dinheiro público (TAP, BES, Marquês, Segurança Social em capitais de Risco, etc.), enquanto as taxas fiscais estrangulam o povo e se assiste ao declínio da Saúde, ao desprezo da Educação e à corrupção da Justiça. Uma “Terra Em Desapego”, deveras.

Sete Cabeças & Dez Chifres

A primeira coisa que qualquer um vai constatar no novo álbum de Besta é a enorme transmutação da banda. Se até aqui, a violência sónica do quarteto nunca sofreu nenhum compromisso, agora somos colocados diante de um predador totalmente diferente. Naturalmente, a ferocidade permanece intacta, mas os recursos que a demonstram foram consideravelmente aumentados.

Em 1993, os acólitos das expressões mais extremas do metal foram surpreendidos por um disco intitulado “Heartwork”. Os Carcass, que já antes haviam quebrado barreiras no grindcore e no goregrind, neste disco deixavam para trás tudo isso e decidiram fundir a brutalidade do death metal com twin guitars dentro da melhor tradição do NWOBHM. O novo álbum dos Besta recorda, de certa forma, esse espírito exploratório das lendas de Liverpool. Será uma constatação óbvia assim que tenham a possibilidade de ouvir o álbum. E antes que, num traço tão enraizado na cultura do underground nacional, comecem a desconsiderar estes elogios como propaganda ou porque estão nessa atitude do «bah, já foi feito», ainda não perceberam a dimensão disto. Primeiro porque, ainda hoje, o “Heartwork” é um álbum divisivo e dar um passo desses exige uma determinação férrea a qualquer banda. Segundo porque, acreditem, ainda nem começaram realmente os elogios…

Quando os Besta me convidaram para visitar o seu covil criativo, nada me podia ter preparado para aquilo que me esperava. Desde logo, a produção sónica sem máculas. Miguel Tereso já assinou uns quantos trabalhos de qualidade extraordinária e enorme robustez, mas aqui a mistura e a masterização assumem um carácter decisivo na interpretação do disco. Porque a articulação de tantos detalhes nos arranjos é absolutamente notável: a secção rítmica transporta consigo o imponente poder propulsivo dos álbuns anteriores dos Besta e o dinamismo dos incessantes e fogosos apontamentos das guitarras é explosivo.

Falando em dinamismo e propulsividade, as baterias neste álbum são um tremendo rugido de Paulo Lafaia ao quão underrated é enquanto músico. Há três décadas que permanece activo e a evoluir, adquirindo uma panóplia de recursos considerável e aqui nos assina a sua impressionante Suma. Vejamos, a tentação de qualquer baterista seria percorrer este disco com blast beats de uma ponta à outra. O que Lafaia nos oferece é precisão e velocidade com tremendo savoir-faire nos pratos, groove nas ghost notes e apurado bom gosto nos fills. Claro, há blast beats de sobra, mas o domínio rítmico dos momentos das canções, nas sincopagens, nos breakdowns e até nos compassos compostos que surgem ocasionalmente, é que se manifesta trovejantemente vigoroso. A banda optou por, ao vivo, abdicar do baixo. No disco, o instrumento não surge tão destacado, mas as suas tarefas são convenientemente desempenhadas. Discretas, mas sólidas.

01. Olhar Seráfico; 02. Veias em Catarse; 03. Patologia Profunda; 04. A Colónia dos Mentirosos; 05. Sector Parasita; 06. Terra De Má Memória; 07. Transmissão Semântica; 08. De Corpo Em Corpo

Depois, é a nova era dos Besta, uma era de riffs e shredding, que mais se destaca “Terra Em Desapego”. Referimos o “Heartwork” em jeito de referência, mas o álbum até abre com um malhão com riffs ‘Morbid Angelicais’, apropriadamente intitulado “Olhar Seráfico”, cujos solos podiam ter sido gravados por Trey Azagtoth. Até aqui, sempre considerara o Rick Chain (Ricardo Correia) um guitarrista de trabalho árduo, dedicado e bastante sólido nos ritmos. Ao Ricardo Matias só o reconhecia (musicalmente falando) pela elegância melódica que emprestou aos Sinistro – um registo musical totalmente diferente. Podem imaginar o meu queixo a escancarar-se até ao chão quando, na sessão de audição que realizámos, dou por mim a ouvir riffs que me remeteram para Slayer, Morbid Angel, Carcass ou Death e melodias com o sabor clássico de Iron Maiden, Judas Priest ou Mercyful Fate.

Cada malha ultrapassa os cinco ou mais minutos, o que significa que apenas dois ou três temas ultrapassam a duração total do anterior “Eterno Rancor”, mas a sensação é a de estarmos a ouvir o mesmo estalo. Uma sensação que se instala, principalmente, a partir de malhas como “Patologia Profunda”, “Colónia dos Mentirosos” e “Sector Parasita”. Tudo disparado com fulgurante velocidade, fraseados bem articulados pelas duas guitarras e uma intensidade avassaladora de ideias e criatividade e um vendaval de harmonizações de trítonos ou em intervalos de terceiras e quintas.  Se removermos da equação o instrumental “Transmissão Semântica”, ficamos com sete malhas ou as sete cabeças e cada uma delas dez chifres com nomes blasfemos escritos em cada um deles.

Podem fazer pré-encomenda do álbum através da Lifeforce. Até lá, eis o “Sector Parasita”, num vídeo realizado por Henrique Reis (Don’t Disturb My Circles / BØW).

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