Gente danada faz som danado. Nesta rubrica revemos alguns dos mais extraordinários trabalhos criados por músicos portugueses, devotos de volume e distorção extremos, de paisagens sónicas escuras ou violentas e do Grande Bode. Neste volume, focamo-nos no último par de anos do efervescente black metal português.
É comum dizê-lo, como será em todos os países, que o underground metaleiro nacional tem evoluído muito. Mas quem está familiarizado com a cena heavy portuguesa sabe que depois dos picos de intensidade no início dos anos 90 e alguns apontamentos esporádicos na década seguinte, os grandes discos de música extrema portuguesa não surgiam num fluxo constante. Felizmente, na última década, as coisas mudaram e há cada vez mais bandas e lançamentos com padrões bem elevados na composição, na atitude e nos aspectos sónicos, seja nas proezas instrumentais ou no enorme salto nos valores de produção que advieram da democratização das ferramentas de gravação.
Ainda assim, o metal continua a ser um género bastante guetizado em Portugal e há discos que passam despercebidos aos mais desatentos, quando deveriam ser alvos dos maiores louvores. É isso que pretendemos nesta rubrica. Para visitar os volumes anteriores, entrem nos seguintes links: Primeiro Volume; Segundo Volume; Terceiro Volume; Quarto Volume; Quinto Volume; Sexto Volume; Sétimo Volume; Oitavo Volume e Nono Volume, no qual recuamos no tempo, até à primeira metade da década de 90, quando a descendência dos boomers portugueses criou uma forte cena underground em Odivelas.
Desta feita, focamo-nos novamente num género. Nos últimos anos, o Black Metal Português tem vindo a crescer e a desenvolver ramificações nas suas diferentes estéticas musicas, criando uma nova geração de bandas e talentos individuais que começaram a dar nas vistas além fronteiras, quer pela sua originalidade como pela qualidade, algumas delas com discos marcantes que acabam por definir um percurso promissor. Eis cinco discos bem recentes…
No que toca a genialidade e mística, é essencial sem sombra de dúvida o trabalho de estreia da entidade Fustilarian, one man band que assume o controlo total da composição e produção de “All This Promiscuous Decadence”, disco com cerca de 43 minutos e um som situado no black metal dos anos 90, com veia mais tradicional. Aliás, mesmo numa perspectiva internacional, este é um destacado disco dentro da veia tradicional do género, evocando os Darkthrone e “Transylvanian Hunger” ou “Hate Them” e os Craft, como sugere o José M. Rodrigues, da LOUD! De resto o talento aqui revelado despertou a atenção da editora de black metal germânica Amor Fati, que estreou, em 2021, o trabalho em formato CD e vinil. Depois desses dois formatos, chegou a vez da cassete, em reedição assumida pelos selos nacionais Miasma of Barbarity e Half Beast Records. A edição é limitada a 100 unidades, 50 cassetes brancas e 50 cassetes pretas, possui artwork exclusivo da Belial NecroArts que inclui lyric sheet, e encontra-se disponível nas plataformas habituais das duas editoras.
Mais um projecto nascido de uma única mente mas, ao contrário de Fustilarian, aqui o foco é o black metal avant-garde. Monte Penumbra celebra precisamente uma década em 2022 (se contarmos que o seu primeiro registo data de Janeiro de 2012). Depois de um LP e dois EPs editados ao longo de dez anos, em 2021 chegou “as Blades in the Firmament”, o mais potente e focado da sua discografia. Uma explosão de psicadelismo e dissonâncias, atravessando atmosferas inóspitas ou sufocando em terror claustrofóbico. Enorme densidade instrumental, com as potentes baterias do islandês Bjarni Einarsson (Almyrkvi, Sinmara, Slidhr, Wormlust) a corporizarem o caos, brilhante nos blasts, e uma estranha coerência que é como um fio condutor a meio deste hermético labirinto de insanidade. O title track é um tema absolutamente maníaco e brilhante. O trabalho foi misturado e masterizado por Stephen Lockhart, nos seus Studio Emissary em Reykjavík.
Os Concilium editaram o seu tenebroso LP de estreia em 2021. “Desecration” é um denso disco e black/death metal (aqui e ali com atmosferas do death/doom). O press ilustra bem aquilo que nos espera: «Como a criança bastarda de Portal, Beherit e Black Cilice, “Desecration” levita da escuridão pura com um miasma de lamentações tortuosas, sussurros de sepentescos e gritos sufocados irradiados das profundezas do tormento interior, enquanto um fluxo incessante de black metal lo-fi preto e punitivo e sepulcral death metal reverbera como que através das fundações abandonadas de templos soterrados e túmulos esquecidos, materializando um pesadelo aural verdadeiramente perturbador e sinistro. A textura magistral da banda de black/death metal decadente e sulfuroso com atmosferas de escuridão subterrânea e um sentido de corrupto ritualismo oculto cria um crepúsculo aural sem luz que abraça o ouvinte como uma doença desencarnada, dando lugar a uma experiência aterradora». Toda esta hiperbolização não peca por excessiva para descrever a sumptuosidade macabra deste disco de Nuno Zuki (que também criou o artwork via Belial NecroArts), Occelensbrigg (Conjuro) e Vulturius (IRAE, Morte Incandescente).
Muitas das baterias de “Sob o Feitiço do Necrobode” (2020) transportam consigo o punk selvático da segunda vaga do black metal, os ritmos e os riffs intransigentemente punitivos e as vocalizações de guturalismo animalesco. A profanidade lírica é delirante e evocativa dos dementes contrastes entre velocidade rítmica demolidora e os momentos de algum abrandamento. A referência aos finlandeses Archgoat é óbvia, mas um tema como “Algol” é capaz de nos remeter para Morbid Angel, ainda que mais pelo corpo atmosférico que pela destreza da execução. De qualquer forma, esse não é o objectivo aqui. O que os Necrobode almejam é a blasfémia.
“The Fire Cult Beyond Eternity” é o mais recente álbum de Onirik e mais uma prova do talento de Gonius Rex, o único membro da banda, que desde 2002 tem explorado várias dimensões do black metal. Com a participação especial de Dirge Rep nas baterias (Gehenna, Enslavesd, Orcustus, The Konsortium), e misturado & masterizado por Semjaza (Thy Darkened Shade), “The Fire Cult Beyond Eternity” é uma pedra angular na discografia de Onirik, onde cada nota instrumental é substantiva e reflecte as expressões de ódio vocal. por baixo dos fraseados de guitarra, um frenético baixo surge a desconstruir as paredes das seis cordas, criando intensos contrastes melódicos. “The Fire Cult Beyond Eternity” soa mais old-school, sinistro e cru do que os trabalhos que o antecedem.
Um pensamento sobre “Pérolas Imundas do Underground #10”