Gonçalo Pereira, Tricôt no País das Maravilhas

Nunca existiu muito a figura do shredder em Portugal e a orfandade aumentou quando aquele que, porventura, foi o mais mediático entrou, de um momento para o outro, em hiato. Depois de quatro vibrantes álbuns, Gonçalo Pereira tornou-se uma figura sebastiânica no universo nacional da guitarra eléctrica. Recordamos aqui o percurso do músico, o seu gear e uma velha promessa de que, de uma forma ou de outra, haverá mais música sua no futuro.

Talvez a propensão musical não seja genética, mas será fruto ambiental ou comportamental. Por influência do pai, que tocava bandolim, piano e violino, Gonçalo Pereira sempre teve uma enorme ligação aos instrumentos musicais. Todavia, a devoção à guitarra eléctrica surgiu violenta e subitamente. «Sou gajo para dizer que me devo ter cruzado com algum vídeo dos Whitesnake ou com uma fotografia de um maluco qualquer com calças de cabedal e uma guitarra na mão e fiquei maluco», admite o guitarrista português entre risadas.

Depois, pelos 13 anos de idade, começou a aventura de descodificar a linguagem do fretboard, da mesma maneira como tantos começam. Pela tentativa/erro, “sacando” malhas de ouvido que, na verdade, é uma ferramenta tão aparentemente básica como indispensável. «A arma número um de qualquer músico é ter um ouvido sintonizado, conseguir tocar aquilo que ouve, porque [num diálogo] se me disserem uma frase também a consigo repetir, afinal». Mas só isso não chega. «Aos 15 ou 16 anos, senti uma necessidade enorme de ir aprender a gramática musical, as regras do jogo. Então, inscrevi-me no Centro Cultural de Benfica para ter aulas de formação musical e guitarra clássica. Conheci lá o professor Miguel Fevereiro e o Rui Luís Pereira, também conhecido por Dudas, e eles ajudaram-me imenso, porque no que toca a guitarra clássica é outra técnica, outra escola, que aprendi com muito gosto e até hoje cultivo essas técnicas e fazem parte de mim. Foi muito bom aprender as regras da música, a formação musical, fazer ditados rítmicos, ditados melódicos, perceber como é que se constroem os acordes e aprender a ler. E é engraçado porque desde essa altura que acordo todos os dias com conhecimento. Ao invés de ser um empírico, de todos os dias acordar e ir, outra vez, à procura das mesmas coisas, acordo com uma sensação de um certo poder, de que está tudo bem, isto é igual a ontem e amanhã será igual também».

Gonçalo defende, atrevemo-nos a dizer com toda a razão, que as pessoas que referem a aprendizagem musical como um handicap para o elusivo feeling, não poderiam estar mais erradas. Para o músico, é mais uma linguagem, «como vir de outro país e aprender português com os teus colegas ou aprender português na escola, saber a gramática e que não se diz ‘percebestes’, mas ‘percebeste’. Porque a música é uma linguagem. Para aprender grego também é preciso aprender o alfabeto, os sons, a entoação e o sotaque. Dá trabalho».

A sua formação, aliada ao talento natural, valeu-lhe a atenção de um dos maiores nomes portugueses do pop rock, Paulo Gonzo. Este descobriu-o no circuito de bares, onde tocava três a quatro dias por semana com os Wako Wako. Tocar com Paulo Gonzo foi como uma pós-graduação. O Paulo Gonzo «tinha umas músicas porreiras e quis abraçar essa experiência de tocar com um artista e ver palcos grandes. De repente, aquilo teve um boom com os “Jardins Proibidos” e o “Dei-te Quase Tudo” e foram três anos sempre a abrir, fomos a todos os sítios onde haviam portugueses, umas duas ou três vezes. Foi uma escola fantástica, mas também foi cansativo e castrante de tudo o resto que era a minha vida, fui para a estrada e ponto final».

Gonçalo Pereira ainda viria a investir muito na produção e acabou por colaborar também com Lúcia Moniz, Adelaide Ferreira, Blister ou Boss AC. Quando Rita Guerra saiu do Casino Estoril tinha dois álbuns de muito sucesso, o “Rita” e o “Sentimento”, que queria levar para a estrada e, quando sentiu necessidade de formar uma banda, Gonçalo foi contratado por Alexandre Manaia, então o director musical, Alexandre Manaia. Essa posição foi posteriormente assumida pelo guitarrista. Mas, recuando ao que aqui focamos, foi o ímpeto de uma carreira a solo que o fez parar de trabalhar com Paulo Gonzo, «porque tinha fechado um ciclo e porque estava mortinho para lançar o ‘Tricôt No País Das Maravilhas’. Passados três anos achei que tinha ideias e projectos que queria fazer e, de uma forma normal, cessei a minha colaboração».

A solo, Gonçalo Pereira gravou os vibrantes discos “Tricôt no País das Maravilhas” (1998), “Upgrade” (1999) e “gonçalo_pereira@g_spot” (2003). Já em 2012, alguns meses depois desta conversa, chegou o 4º álbum, “Serviços Secretos”. Em 2005, lançou o seu primeiro DVD intitulado “Another Day in Another World”, o primeiro do género em Portugal com um concerto ao vivo e lições de guitarra. Com as honrosas execpções de alguns nomes como Luís Fernando (o “amante imortal” de Adelaide Ferreira) ou Rui Fingers, essa estirpe do shredder era bastante rara em Portugal. E se poucos surgiram por cá na década dourada do género, os loucos anos 80, muito menos se esperaria o enorme impacto mediático de Gonçalo Pereira, que cativou mesmo o imaginário popular com a sua velocidade de execução demoníaca, enorme sincronização entre a mão esquerda (dona de impressionante amplitude, capaz de ligações extraordinárias) e a mão direita, permitindo-lhe destreza elegante no hybrid picking. Sempre melódico, como algumas das suas maiores influências, nomeadamente o luso-americano Nuno Bettencourt ou Paul Gilbert.

Naturalmente, a soberba adaptação de “Movimento Perpétuo” do gigante Carlos Paredes, arranjada para guitarra eléctrica por Gonçalo, foi o ponto alto do seu reconhecimento mediático. E a pesquisa da técnica de Paredes terá feito germinar uma ideia, nunca concretizada, confessava-nos o shredder no início da década passada e na qual, no estúdio que construiu, ainda planeava o futuro da sua carreira musical, deixando a certeza de que, demorasse o tempo que demorasse, ainda não ouvimos as últimas notas do Gonçalo Pereira.

Esse quarto disco? [“Serviços Secretos” chegaria, alguns meses depois desta conversa, em Março de 2012, numa edição de autor]
Quero fazer o meu quarto álbum e depois fazer um álbum só de guitarra acústica, sem overdubs, só mesmo uma guitarra. E também fazer um DVD instrucional, mas que seja fosse o típico sentar-me e «vejam, isto é um Dó Maior» [risos]. Tenho um amigo com quem ando a preparar isso e aquilo já vai num filme impossível de fazer. Temos que encontrar algo pelo meio, aquilo já desenvolveu para um DVD instrucional de guitarra que não ensina uma única malha de guitarra [risos]. Tenho que encontrar um equilíbrio. Entretanto, para bem ou para mal, devido aos meus compromissos profissionais, ando a adiar a feitura desse tal quarto álbum que, à partida e em termos de produção, será o projecto mais megalómano, mais exigente de mim. Mas vai aparecer, esse projecto está intrinsecamente ligado à minha pessoa. Portanto, posso fazer um álbum com 50 anos, outro com 60, outro com 70. Não tenho, infelizmente, oportunidade de fazer um álbum por ano ou de dois em dois anos, como malta que admiro o pode fazer. Porque, enfim, é a vida… 

A partir de certa altura, começou-se a fazer música mais introspectiva e parece que se tornou um crime fazer hard rock que, actualmente, tal como a guitarra eléctrica é quase anátema e fazer um disco é mais teimosia, mais passional. É por aí que estará a demora num novo trabalho?
Vou bifurcar a minha resposta, uma resposta simples e outra mais de “modos vivendi” e filosofia de vida. Se fiz os álbuns de Gonçalo Pereira, foi porque achava que tinha música, composições, e é isto que eu quero sublinhar, que eram relevantes de serem captadas em documento. Assim que são captadas em documento, é como estar a escrever uma carta e não a pôr no correio, já agora mandam-se para o correio, para chegar a um publico seja ele qual for, sejam 15, sejam 15 mil, não interessa. Isso é um lado da questão. Será, eventualmente, a veia artística, da música original ou da fantasia, como lhe costumo chamar. É o meu mundo de fantasia, a minha criação, a minha composição. O facto de tocar guitarra e de explorar as coisas que exploro e a minha relação com o instrumento e com a música e o facto de ser músico, é muito mais abrangente do que isso. É um “modos vivendi”, um compromisso de vida, e é uma cena muita mais apenas minha. Ou seja, estou-me nas tintas se o pessoal gosta ou não gosta de ouvir gajos que tocam mil à hora ou que tocam tudo ou que não tocam nada. O que sei sobre mim é que quero tocar o melhor que puder, quero saber o mais e melhor possível sobre a música, sobre esta linguagem e sobre esta forma de comunicação. Ao ponto de não ser só guitarrista. Sou guitarrista, aprendiz de bateria, baixista, ando a aprender a tocar piano (um bocadinho mais devagar), sou técnico de som, produtor musical… Isto é, uma vida ligada à música. Não peço para acordar todos os dias para aqui virado, mas por algum motivo é assim e nem se questiona. Portanto, o meu único compromisso é estar sempre o melhor que posso e vivo insatisfeito com cada coisa que me arrasta para fora da música. Cada burocracia, cada ida às finanças é uma dor [risos]. Isto sei explicar, mas não tem nada a ver com públicos ou com fazer um álbum para vender milhões e comprar uma ilha nas Caraíbas [risos].

Mas a forma como aquilo que as editoras procuram, seguindo uma imposição geracional do público e/ou tendências radialistas, acaba por exigir coisas diferentes ao teu tipo de música ou não?
Particularmente, passa-me ao lado. Nesse aspecto, sou um bocado camaleão, por ter noções das regras da música. Essa tal história de ser um gajo relativamente informado e saber as regras da música e a gramática musical e conhecer a linguagem musical. Por isso é que aconselho qualquer pessoa a meter-se nisso. Ganhei um ofício, não sou apenas um fantasista que faço música, a minha música e mais nada. Trabalho em música como um alfaiate. Pedes-me para fazer um single de três minutos para a rádio e sei como fazer isso, já o fiz. Produzo música para terceiros, tenho que ser sensível à necessidade e à vontade que as pessoas têm de ter airplay, de serem comerciais. Conheço e trabalho nesses meandros todos. Se me perguntares enquanto artista, passa-me ao lado… Senão, para começar, não fazia um projecto de música instrumental.

A noção errada que muitas vezes se tem sobre os instrumentos. A guitarra é médios. Há frequências numa guitarra que não é para lá estarem.

Gonçalo Pereira

Vamos lá falar um pouco de rigs. Que amps e pedais preferes?
Mesa Boogie. Adoro. Encontrei ali, realmente, o som que gosto, o som que consigo trabalhar com versatilidade. Não te dá só “rancancan”, chegar e power chord com distorção para cima. É um som de solo que, se quiseres, é doce e aveludado, uma voz que canta. Claro, também é o “rancancan” mais poderoso que já apanhei. Se tiver que bater um power chord mesmo à bruta, é com Mesa Boogie. Mas tem um som mesmo limpo, cristalino e bonito. No que toca a amplificadores, sou um gajo perfeitamente resolvido. Tenho também um Bogner que gosto muito e que uso alternadamente. Até é de menores dimensões portanto, às vezes, até acabo por optar pelo Bogner, por ser mais prático de transportar. Uso muitos pedais da BOSS: o Super Chorus, o Digital Delay DD-5, que prefiro aos outros todos, melhor que o DD-6, melhor que o DD-7…

Porque…
Porque tem multi patterns de tempo e também dá para ligar o footswitch para o tap tempo, enquanto que no DD-7 o footswitch é no próprio pedal. Tens paciência para esperar dois segundos enquanto tocas uma canção e depois desligar, ligar, desactivar o tap tempo e esperar mais dois segundos? Com licença, não me f*dam! Se quiser fazer sequência de delays no DD-5, tenho uma função que me dá logo a colcheia pontuada. Depois, tenho um Chorus da MXR que adoro. O Flanger da MXR que adoro. Os MXR são muito bons, tenho o Phase 90 da MXR, que comprei quando fui tocar à China, a Taiwan. Numa loja onde tive uma actuação, fizeram-me um belo desconto, numa altura onde não conseguia, em toda a Europa, encontrar o pedal. Uso um Whammy, um Cry Baby (o 535Q, que é o melhor), embora goste muito dos Morleys pelo facto de não teres que dar o click para ligar e desligar o wah wah, mas o som não é a mesma coisa. Tenho uma série de pedais mas, basicamente, são estes que uso. Mais um “overdrivezinho” da BOSS, o OD-1, só para dar… Imagina de 0 a 10, uso a distorção no 1 e uso um bocadinho de level para cima, serve ao mesmo tempo de boost e apicanta as minhas distorções ou não. Aliás, serve de mais um estágio de distorção. Posso estar com o som limpo e, se precisar de um ligeiro overdrive ou só de um arranhãozinho naquele som limpo, ligo-o e sobe o volume. Adiciona sempre um bocadinho de harmónicos ao som, portanto serve para o limpo, para o crunch ou para o lead. No lead dá aquela cena típica de Satriani e de Steve Vai, aquele sustain interminável em que a nota ganha harmónico e cor, ou seja, nem tens que colocar o teu lead com a distorção no máximo. Regra geral, tenho a minha distorção no lead para aí no 7.

Tocar com artistas e em situações diferentes influencia muito o tipo de escolhas que fazes de rig ou manténs sempre o teu som, ou seja, procuras ter a tua voz independentemente disso?
É mais isso. Já toquei em diferentes projectos com diferentes equipamentos, mas a verdade é que desde que estabilizei no Mesa e na Paul Reed Smith Custom 24, com ponte fixa (actualmente, praticamente, só uso pontes fixas, uso alavancas para uma ou outra música e essencialmente em estúdio, se a canção o pedir, mas sou um acérrimo defensor de pontes fixas), que encontrei a minha voz, o meu som. E com isso sinto-me livre de panóplias e que consigo responder a tudo. É óbvio que há um ou outro tema em que tenho especificamente de gravar com uma guitarra de jazz, com cordas flatwound, por exemplo. Depois tenho o meu outro lado de guitarrista acústico, em que toco com uma Taylor, que também é uma coisa que, desde que consegui meter as mãos numa, me fez sentir logo outro guitarrista acústico. O lado da guitarra acústica para mim é muito mais importante do que se calhar as pessoas pensam. Invisto mesmo muito tempo a tocar guitarra acústica e é uma coisa na qual passei a ter muita saída profissional, seja para gravar discos, seja para tocar ao vivo. No projecto da Rita Guerra, metade das músicas são em guitarra acústica, quando não são concertos inteiros.

Estabilizaste na PRS. Ainda faz sentido dizer que são guitarras com médios excessivos?
Outro dia falava precisamente sobre isso. Sobre a noção errada que muitas vezes se tem sobre os instrumentos. A guitarra é médios. Há frequências numa guitarra que não é para lá estarem. Aquele gajo que diz: «Quero a minha guitarra com um grande ‘gravezorro’»… Traduz lá isso em frequências. O “gravezorro” na guitarra, se calhar, é uma frequência que não tem nada a ver com o de um baixo, de um bombo ou de um timbalão do chão. Ou uma mulher que cante e goste de graves na voz, de certeza que estamos a falar de uma frequência muito superior ao próprio grave da guitarra ou do baixo. Portanto, a guitarra é médios. Agora, se formos a falar de médios num sentido demasiado nasal ou algo agressivo e irritante, acho que as PRS são as guitarras com melhor som sinceramente, a par de Les Paul, Telecaster e Stratocaster. É quase como estar a dizer que são os clássicos mais a Paul Reed Smith que, a meu ver, beneficiando de um rigor, uma construção e de uma arte sem compromissos, também tem vindo a tornar-se um clássico. Toco com a mesma guitarra há muitos anos, tem quilómetros e quilómetros de notas e de noites a tocar e não me deixa ficar mal. Agora, chegámos à tal história: digo-te o que é melhor para mim, se achares que o que é bom para mim está perto ou é uma boa referência do que é bom para ti, muito bem, se não, procura a tua cena. Porque a única coisa que aprendi nesta vida é: «Cada caso é um caso e o som é um fenómeno» [risos].

Explica lá esse fervor por pontes fixas…
Toco guitarra nylon, tenho algumas incursões no flamenco – muito com técnica minha, ou seja, roubo algumas técnicas ao flamenco, mas não tenho a mínima presunção de dizer que sou um guitarrista de flamenco, a não ser que o possa afirmar por dominar, de alguma forma, a sonoridade, as escalas, os acordes, a linguagem, mas não sou um ultra rápido com os dedos, com aquela magia que os grandes mestres têm – toco acústica com cordas de aço e toco guitarra eléctrica. Quando passas muito tempo agarrado ao nylon, ficas calibrado, feito com aquele som. A tensão das cordas, o toque que é diferente do aço, a altura das cordas, o peso da própria guitarra. Tocar guitarra acústica de aço é outra coisa, porque se calhar tanto te pedem para dedilhar, como para tocar de palheta (guitarra ritmo, canções de fogueira) e como passas horas e horas em desgarradas a desbundar solos onde, se calhar, estás a utilizar uma palheta mais dura, cais na tentação de tocar como se fosse uma guitarra eléctrica. Portanto, fazes bendings, tocas blues, fazes tudo o que tens a fazer, usas cordas mais grossas porque o grande som virá de umas 0.12, quando não 0.13, não é com cordas de menino que lá vais. E depois, quando vais para a guitarra eléctrica, calibrado das acústicas, se palhetares com muita força numa guitarra com alavanca ela gargareja, a nota gargareja, a ponte treme. Se fizeres um bending e tocares na corda que está por baixo, a calibragem do que tens que esticar a corda até afinar aquele efeito é totalmente diferente do que se estiveres numa guitarra acústica. Logo, se tocares isso numa Les Paul ou qualquer guitarra com ponte fixa, estás calibrado, a relação é a mesma e a guitarra não gargareja e, se tiveres que gravar, não vais gravar gargarejos. Para mim, as guitarras com alavanca servem quando usas o efeito da alavanca, senão é para estarem no tripé. E contra mim falo, porque tenho duas guitarras maravilhosas que mandei fazer que são com alavanca e são maravilhosas.

Por falar nisso, numa ocasião (na Musikmesse) em que entrevistei o Paul Reed Smith, ele mencionou a guitarra marada de 11 cordas que fez para um gajo português e perguntou o que seria feito dela. Como surgiu essa ideia?
Dava aulas a um aluno canhoto e, às vezes, pegava na guitarra dele para lhe exemplificar algo mais rapidamente. Então via-me na necessidade de tocar tudo ao contrário, tinha que ver os mesmos mapas de cima para baixo. Fez-me pensar que seria um desafio interessante, ao tocar mais naturalmente sairiam frases diferentes, agarrei numa guitarra normal e fiz essa experiência, coloquei as cordas ao contrário, do agudo para o grave. Então idealizei a 11 cordas. Inicialmente como uma espécie de guitarra ambidestra, em que a corda do meio seria o Mi grave, para baixo seria uma guitarra normal e para cima seria o espelho disso e fui, com o apoio do Paulo Nogueira, da Castanheira, também à feira de Frankfurt, onde ele me apresentou ao senhor Paul Reed Smith que achou piada à ideia. Sentámos à mesa para esboçar a guitarra, tomar decisões e para lhe explicar o projecto; peguei numa guitarra de canhoto para explicar o que queria; ele ainda sugeriu colocar três carrilhões no meio [na parte detrás da cabeça], tem quatro de cada lado e três no meio, pois achava que se metesse todos lado a lado, a cabeça ficava muito pesada e ia inclinar a guitarra muito para a frente. É uma guitarra única, que ainda hoje em dia exploro, mas entretanto mudei o conceito. Criei antes uma ideia de simetria e de espelho, mantendo o Mi grave como corda pivô: a guitarra para baixo é o que eu chamo o hemisfério sul, uma guitarra normal, depois para cima, começando mesmo na corda mais perto de mim, que é um Mi 0.10 fininho, normalíssimo, a partir daí as cordas são Mi, Lá, Ré, Sol, Si, e chegamos ao Mi bordão. E qual é o fenómeno? É o Mi fininho que desce uma quinta para um Lá, desce uma quinta para um Ré e cria um hemisfério norte em que a interacção entre as cordas é toda subvertida, quase como ligar um arpeggiator num teclado. Tocas uma escala de Dó Maior a subir (que desce nas oitavas), no hemisfério sul é uma escala de Dó Maior, que tocas normalmente (a descer, mas a subir nas oitavas). Se quiser improvisar, o som é completamente diferente, surpreende-me a mim próprio enquanto toco. Nunca caí na tentação de a apresentar, porque também sinto que preciso de ter uma relação e um à vontade com ela, para ser um acto natural.

Ainda não falámos de colunas. Também usas Mesa Boogie?
Uso uma Framus, equipada com Celestion 30 Greenback. Gosto muito das colunas da Mesa Boogie também, mas a Framus é mais barata e mais leve. O peso é o grande defeito das Mesa, se tenho que carregar aquilo sozinho… Não me apetece [risos], é terrível! A Framus tem uma característica muito boa: projecta muito bem o som, se me afastar o som parece estar ao dobro do volume, abre-se muito bem.

Nestas conversas, manda a lei dos bons costumes inquirir sobre as maiores influências dos músicos.
As minhas maiores influências espalham-se por vários campos da música. No que toca a música clássica, cresci a ouvir tudo e mais alguma coisa, o meu pai tem uma biblioteca monstruosa, mas os meus favoritos são Bach, Mozart e Vivaldi. Depois, é obvio que tenho aquelas influências da adolescência e da irreverência. Sempre gostei de metal e hard rock, mas aí incluo desde o rock mais leve até ao mais pesado. Adoro coisas tão diferentes como Dire Straits, Bryan Adams, Eric Clapton, gosto (mais na fase anterior) de Bon Jovi. Gostava de Whitesnake, adorava Iron Maiden, era doido por Metallica, gostava de Halloween, Anthrax, Slayer, King Diamond. Era consumidor de todas as vertentes do rock, mas depois também sou um saudosista da pop dos anos 80, mesmo gajos como Nik Kershaw e sei lá que mais. Sempre gostei de jazz também, mas mais num formato de sair à noite e ir ouvir música ao vivo e ver os músicos a desbundar. Sou um consumidor de música ecléctico e versátil, gosto de ouvir tudo e de aprender tudo. É essa a minha postura e o meu objectivo como músico. Quero tocar todos os estilos do mundo.

Um pensamento sobre “Gonçalo Pereira, Tricôt no País das Maravilhas

Leave a Reply