Tão incoerente como genial, o mal-amado álbum dos Guns N’ Roses que Axl Rose criou ‘sozinho’ vale muito mais do que a polémica que o envolveu. “Chinese Democracy” poderá não agradar a todos, mas é bem sucedido em quase tudo o que pretendia ser.
«Ouvi o álbum, e é bom, um álbum quintessencial de Axl. Demorou um pouco a sair [risos], mas é exactamente o que estava à espera, é brilhante dentro da sua sonoridade e é muito bom ouvir a voz do Axl, porque ele é do “caraças”! E é isso». Estas palavras sobre “Chinese Democracy” são do Slash, numa conversa que tivemos com o guitarrista aí por Abril de 2010 (publicada na extinta edição impressa da AS). Citar o músico que, na altura, estava fora dos Guns N’ Roses, serve para ilustrar a nossa opinião a respeito do infame disco. Dentro daquilo a que se propôs, “Chinese Democracy” merece muito mais consideração do que aquela que lhe é atribuída.
As culpas para que o álbum que os Guns N’ Roses editaram em 2008 seja tão mal amado podem dividir-se por vários aspectos: nunca nenhum dos Guns perdoou a Axl Rose a prepotência com que tratou os seus colegas (Steven Adler, Izzy Stradlin, Slash e Duff McKagan) e ganhou nos tribunais o controlo sobre os destinos da banda; o desgaste da imagem de Axl durante a Use Your Illusion Tour, potenciado por vários conflitos com outros músicos, imprensa e fãs, foi enorme; consequentemente, o frontman da outrora ‘banda mais perigosa do mundo’ tornou-se um alvo fácil nos media cada vez mais globalizados; a juntar a isso, o secretismo e o tempo que demorou a ser feito, tornou-se caricatural para os fãs e para os media – estes passaram até a usar a queda dos Guns, que marcou o fim de uma era na música, como validação para o bitaite/clickbait que afirma há décadas que o rock está morto…
Ao mesmo tempo, precisamente o secretismo e os nomes que iam sendo confirmados como intervenientes, mais o longo tempo de produção, aumentaram as expectativas a um patamar ao qual talvez nenhum álbum pudesse chegar. Em “Chinese Democracy”, Axl Rose procurou refundar os Guns N’ Roses. Na nossa opinião, não o conseguiu fazer, mas na tentativa criou um extraordinário disco a solo. O seu maior defeito é ter querido tanto (e tentado atingi-lo por tanto tempo) que acaba por ser algo incaracterístico ou incoerente, pouco uniforme. Resultado de tantos produtores e experiências e até de extravagância surrealista.
Retalhos
Em ’98, Martin Glover foi o primeiro a juntar os cacos das ruínas dos Guns N’ Roses. O produtor, baixista fundador dos Killing Joke e uma lenda post punk, começou por estudar as primeiras demos ao lado de Axl Rose e apontar caminhos criativos, mas o vocalista ainda hesitava em retomar o trabalho e vivia isolado, desconfiado de meio mundo. Foram feitos poucos progressos e Glover abandonou o projecto, dando lugar a Sean Breavan.
Durante o seu tempo na cadeira de produtor, Sean Beavan gravou 35 canções para o álbum, antes de se separar amigavelmente da banda em 2000. A maioria das canções desse disco praticamente começou e acabou com o trabalho de Beavan. De facto, apesar do envolvimento subsequente do produtor Roy Thomas Baker, que convenceu Axl a regravar a maior parte do álbum, o vocalista decidiu manter a maior parte dos vocais que tinha gravado com Beavan e utilizá-los no álbum. Numa entrevista para o podcast Guns N’ Roses Central em Fevereiro de 2018, Beavan recordou que ficou surpreendido por se ver creditado em oito das 14 faixas do álbum. «A maioria dos vocais que usaram no disco foram os que tinha feito em ’99. Tenho a certeza que cada coisa que gravei foi regravada por outra pessoa, porque os membros da banda mudaram muito – e sempre que a banda mudava, Axl queria regravar com o novo tipo. Penso que as únicas coisas que não foram regravadas foram os vocais», disse o produtor.
Fã ardente e de longa data dos Queen, Axl convidou Brian May a contribuir com um solo para a canção “Catcher in the Rye”, entre outros temas de Chinese Democracy. May aceitou participar, mas não gostou muito da forma como Axl e Sean Beavan “compuseram” o solo final de “Catcher in the Rye” a partir de vários takes diferentes. Foi Axl que confessou o desconforto do guitarrista britânico, um mês depois da edição do álbum, no chat Here Today…Gone To Hell: «Ainda que, pelo menos publicamente, o Brian tenha manifestado alguma apreciação pelo resultado, infelizmente ele não ficou particularmente satisfeito pela manipulação que fizemos. Lembro-me de olhar para o Brian, de pé à minha esquerda a olhar para os grandes monitores do estúdio, e de ele dizer: ‘Mas não foi isso que toquei’. O Sean Beavan e eu não estávamos de modo algum a tentar depreciar o Brian, apenas optámos por fazer assim e depois tentámos o nosso melhor para defender as nossas decisões».
Sempre cavalheiro, Brian May tem negado continuamente guardar quaisquer ressentimentos sobre a experiência. «Foi divertido, atirar algo lá para dentro para ajudar um amigo», disse à Uncut em 2011. «Penso ter tocado em duas faixas e meia… Tenho misturas rudes dessas faixas algures no meu arquivo, mas não vou deixar ninguém ouvi-las, por lealdade a Axl».
Psicopatia
Quando o guitarrista Robin Finck – que tinha sido contratado em 1997 para substituir Slash – deixou a banda no Outono de 1999 para regressar aos Nine Inch Nails, Axl substituiu-o por Brian Carroll. Um guitarrista profundamente excêntrico, mais conhecido como Buckethead, Carroll foi recomendado pelo antigo baterista dos Primus, Bryan “Brain” Mantia, que se tinha juntado recentemente aos GN’R. No palco e no estúdio, Buckethead preferiu tocar enquanto usava um chapéu feito de um balde KFC e uma máscara facial tipo Michael Myer, e só comunicava com os gestores da banda através de um fantoche chamado Herbie. «Torrou a paciência a todos», disse Mantia ao I’d Hit That podcast em 2015: «Há milhões de dólares em jogo, e eles estão a falar com a merda de um fantoche!»
Insistindo que tinha sido criado por galinhas, Buckethead pediu que fosse construído um galinheiro especial para ele no estúdio, e a banda acedeu. «Era como um apartamento dentro do estúdio, que é um galinheiro», recordou Tom Zutaut, A&R da Geffen, à Classic Rock em 2008. «Ele tinha a sua cadeira para gravar e um pequeno sofá lá dentro, e havia, tipo, uma galinha de borracha com a cabeça cortada pendurada no tecto e outras partes do corpo. É totalmente o mundo do Buckethead. É como o Halloween no galinheiro: parte galinheiro, parte filme de horror. Construímos o galinheiro e depois ele trouxe todos os seus adereços e brinquedos e colocou palha no chão! Quase se podia sentir o cheiro das galinhas. Ninguém podia entrar ali, excepto os engenheiros assistentes para ajustar microfones – não se podia destruir o espírito e a vibração do galinheiro, o seu retiro pessoal».
Mesmo neste ambiente borderline psicopata, as coisas correram razoavelmente bem, pelo menos musicalmente falando, até que Axl descobriu o quão extremo era o porno que Buckethead visualizava dentro do galinheiro, alegadamente para se inspirar, e repreendeu duramente o guitarrista que desanimou. As palavras são de Zutaut: «Desapareceu durante alguns dias, porque ficou bastante destroçado por causa disso. Não porque estivesse zangado ou porque achasse que devia poder ver o que queria. Penso que foi mais por causa das implicações emocionais que Axl lhe trouxe à cabeça: que não era correcto ser inspirado por merdas dessas».
À parte de tudo isto, a saída de Buckethead acaba por ser uma das maiores oportunidades perdidas na história do rock. Basta ouvir os solos que criou no disco, nomeadamente o de “TWAT”. O mesmo podia ser dito sobre Robin Finck e até sobre Bumblefoot, que veio depois assumir o papel de ambos os guitarristas que gravaram o disco.
Polarizado
Gravadas e regravadas em 15 estúdios diferentes, com múltiplos produtores – incluindo Youth, Sean Beavan e Roy Thomas Baker – faixas densamente estratificadas e ambiciosamente arranjadas como “Street of Dreams”, “Madagascar”, “There Was a Time”, “Riad N’ the Bedouins” e “Prostitute” são similares a vários momentos dos “Use Your Illusion” no sentido épico e da grandiosa visão musical de Axl. Malhas mais directas como “Better” e o tema-título extraem peso de instrumentação electrónica e revelam muito do que foi a produção musical no rock da primeira década do século XXI. Todavia, e afinal essa parecia ser a intenção, o sleaze de “Appetite For Destruction” não se ouve em parte alguma.
Isto pode ser o que torna o disco irreconciliável com os fãs mais intransigentemente defensores do passado da banda, mas ao mesmo tempo torna o disco prodigioso. Adoramos o Slash, não duvidem, mas há aqui solos cujo artifício vai bem para lá do domínio impressionante que o guitarrista possui do blues/rock. Da mesma forma, a exploração electrónica dá um groove renovado à banda (bordejando mesmo o trip hop), ainda que respeitando as estruturas do rock clássico e o seu imponente passado. As orquestrações são sublimes e a masterização em vinil é absolutamente explosiva!
Liricamente será mesmo o trabalho mais maduro de Axl Rose. Sem a selvajaria e deboche juvenil dos discos dos anos 80, sem a obsessão psicoterapêutica de “Use Your Illusion” centrada no ego de Rose, “Chinese Democracy” reflecte sobre o controlo e o medo que os vários tipos de regimes políticos (das ditaduras aos neo-liberais) exercem sobre a sociedade; a superficialização desta mesma sociedade; revela preocupações ambientais, como ilustra “If The World”; a preocupação com a violência social ligada ao direito à posse de armas (“Shackler’s Revenge”). Enfim, em muitos assuntos revela uma profundidade e coragem assinaláveis sobre assuntos que, à época, ainda não eram tão amplamente considerados no debate mediático.
Originalmente editado no dia 23 de novembro de 2008, “Chinese Democracy” irá sempre dividir opiniões. Tendo custado, alegadamente, mais de 13 milhões de dólares gravá-lo, é o álbum rock mais caro alguma vez produzido. As suas vendas não salvaram a indústria e, na verdade, ficaram abaixo das expectativas. Contudo, numa era em que as vendas físicas da música caíam a pique e a pirataria estava no auge, o álbum estreou na posição #3 da Billboard 200 e chegou a platina nos Estados Unidos. Na Europa, ultrapassa o milhão de vendas.
Um pensamento sobre “Guns N’ Roses, Chinese Democracy”