As Lendas Esquecidas da Amplificação Britânica na Era Dourada do Rock

À boleia do guru Dave Hunter, perseguimos alguns amplificadores que foram axiomáticos na construção do rock ‘n’ roll e do conceito do som britânico desde o final dos anos 50 ao início dos anos 70.

A maioria dos guitarristas tem, no seu ouvido mental, digamos assim, uma imagem idealizada, mais ou menos correcta, do “som britânico clássico”, embora isso possa diferir dependendo das suas preferências gerais. Os sons lendários dos amplificadores Marshall e Vox da era dourada dos amplificadores de válvulas ingleses constituirão a referência para a maioria, enquanto alguns poderão inclinar-se para o som poderosamente avassalador dos Hiwatt ou para o rugido da Orange. Seja como for, há muitas características específicas de design e componentes que ajudam a definir estes clássicos e a torná-los resolutamente britânicos na nossa imaginação e na ponta dos nossos dedos. No entanto, houve mais amps criativos e inspiradores de onde estes vieram, ainda que possam ser menos mediáticos. Vale a pena investigar uma vasta gama de alternativas britânicas, desde o final dos anos 50 até ao início dos anos 70, e ligarmo-nos a algumas inovações sónicas que foram determinantes nos arquetípicos prazeres aurais ingleses.

Para isso, seguimos um artigo de Dave Hunter, autor reputadíssimo de livros como The Guitar Amp Handbook, British Amp Invasion, The Gibson Les Paul, Fender 75 Years, entre muitos outros e um colaborador regular de publicações de renome como a Guitar Player, Vintage Guitar ou The Guitar Magazine (UK).

’59-’61 Selmer Professional
SELMER

Desde os elegantes modelos de dois tons, do final dos anos 50 e início dos anos 60, até aos icónicos amplificadores de guitarra “mock-crocodile” de meados dos anos 60, os amps Selmer sempre exibiram uma estética moderna e apelativa. O primeiro grande nome nos amplificadores de guitarra de fabrico britânico, monopolizando mesmo os primeiros tempos da indústria, a Selmer nasceu da ala londrina da empresa francesa de instrumentos musicais fundada por Henri Selmer no final do século XIX. Em locais diferentes em Charing Cross Road, no coração da agitada West End de Londres – uma Meca para a cena musical britânica – a Selmer importou pela primeira vez amplificadores de fabrico americano nos finais dos anos 30. Após adquirir o fabricante RSA e a sua marca Truvoice, em 1947, a Selmer começou a construir os seus próprios amplificadores, aumentando consideravelmente o volume de produção através dos anos 50 e até aos anos 60, à medida que a explosão pré-rock ‘n’ roll na Grã-Bretanha, em meados dos anos 50, aumentava a procura. Estes modelos, inicialmente, mantiveram a marca “RSA Truvoice” (talvez como homenagem do construtor original), mas tanto a marca como os circuitos internos evoluíam à medida que os estilos musicais mudavam.

A linha de 1957 incluía quatro modelos, a TV6, TV12, TV18 e TV20, numa altura em que os amplificadores Vox ainda não passavam de um vislumbre no olhar de Tom Jennings. Com 18 watts através de um único altifalante 12″, o combo TV18 era tão potente como qualquer amplificador de guitarra fabricado no Reino Unido nessa altura (e eram poucos com essa potência), enquanto o combo TV20 de 14 watts possuía tremolo dentro da sua construção 4×8″. Em 1959, com a ascensão do rival Vox AC15, a Selmer renovou completamente a sua linha de produção. Estes amps ostentavam agora o nome da empresa-mãe mais proeminentemente sob o emblema da Truvoice, dispensando completamente a marca RSA. No topo da nova gama surgia o Selector-Tone Automatic, capaz de 25 watts RMS a partir de um par válvulas EL34, a saírem para um único altifalante 15″, com um engenhoso botão na secção de tone a dar-lhe o seu nome. Por esta altura, a Selmer já tinha experiência no uso de uma válvula pentodo EF86 a dar músculo ao pré-amplificador, neste e noutros modelos, mesmo antes de Dick Denney ter adoptado essa válvula quando reconfigurou o seu design do AC15.

’63 Selmer Zodiac Twin

Talvez estes modelos e os azulados cinzentos sejam mais desejados no mercado retro, hoje em dia, mas alguns dos modelos Selmer mais recomendáveis seguiram-se-lhes sob a forma dos amps de 1963-65 (os tais com a pele falsa de crococilo). Casos do Zodiac Twin 30 e o Zodiac Twin 50, com 30 watts e 50 watts, respectivamente, através de colunas 2×12″, completos com indicadores que pulsavam no tempo do hipnótico tremolo. Neste período, a Vox estava a fazer mossa no negócio da Selmer e a Marshall começava a rugir para se tornar no gigante no mundo do rock. No entanto, os Beatles, os Shadows e os Animals – entre muitos outros – soavam ainda através de Selmers. Muitos anos depois, Jack White descobriria a glória do Zodiac Twin 30, ao gravar o álbum “Elephant”, dos White Stripes. Todavia, o habitual estilo da Selmer decaiu um pouco nos finais dos anos 60 e nos anos 70 e os amplificadores tornaram-se menos desejáveis, embora ainda sejam capazes de fazer o trabalho. Em suma, os maiores Selmers dos anos 60 caracterizam-se por uma voz espessa e calorosa, que se pode tornar apelativamente agressiva quando se puxa o volume e é, definitivamente, uma válida opção na norma do som britânico.

WATKINS/WEM

Um genuíno desbravador de veredas e um pilar da cena há várias décadas, Charlie Watkins nunca foi reconhecido como um criador de primeira linha no campo da amplificação da guitarra britânica. Isto, provavelmente, tem algo a ver com os desvios ocasionais no seu percurso, embora também em parte devido à qualidade percebida de muitos desses amplificadores, que a maioria dos músicos confirmarão poder soar bastante bem – e, ocasionalmente, excelentemente – mas que estavam, geralmente, mais ao nível dos amplificadores de “de catálogo” produzidos nos EUA, na altura. Ainda assim, existem muitos amps notáveis com os nomes Watkins e WEM, desde os finais dos anos 50 até aos finais dos 70.

’63 Watkins Dominator

Após regressar do serviço militar na Segunda Guerra Mundial e trabalhar durante algum tempo como acordeonista profissional, Charlie Watkins abriu uma loja de discos no sudeste de Londres com o seu irmão e, rapidamente, se tornou parte do mapa da cidade. Através desta loja em Balham, começaria a comercializar amplificadores de guitarra com o seu próprio nome, vários anos antes do lendário Tom Jennings entrar em cena (sob o seu apelido ou como Vox/JMI) e uma década antes de Jim Marshall e a sua empresa firmarem o seu primeiro JTM45. Ainda que Watkins já disponibilizasse úteis e compactos combos de guitarra há alguns anos, ultra-cool modelo Dominator, quando chegou no final dos anos 50, foi o primeiro produto verdadeiramente digno de nota da empresa. Alojado numa elegante estrutura em “V “, com 2×10″ na sua face frontal, oferecia 17 watts através de um par de válvulas EL84. Mesmo que nunca tenha chegado aos rigs de muitos guitarristas profissionais da época, tornou-se a escolha de muitos jovens guitarristas e aspirantes a artistas. O modelo Dominator permaneceria no centro da produção durante as próximas duas décadas, embora, a partir do início dos anos 60, passasse a ser alojado numa caixa rectangular tradicional, normalmente com um único altifalante 12″ ou 15″.

Em finais de 1963 ou início de ’64, inspirado pelo aspecto e popularidade do logotipo “VOX”, Charlie condensou a marca principal dos seus produtos: WEM, para Watkins Electric Music. Em 1964, a WEM lançou os seus primeiros amplificadores de 30 watts, o Control ER30 e o Control HR30, cada um derivando a sua potência de quatro EL84s e construídos num formato de cabeço com coluna separada 2×12″. Estes modelos também marcaram a mudança para a construção em placa de circuito impresso (PCB), que muitos coleccionadores consideram como o início do declínio geral na qualidade, embora os amplificadores, após este período, se tenham mantido bastante robustos e possam muitas vezes soar soberbos. Entretanto, tal como a Vox e a jovem empresa de Jim Marshall, a WEM poderia ter passado para amplificadores de válvulas ainda mais potentes, mas não o fez pela convicção – não rara no circuito de especialistas – de que esta tecnologia seria em breve descartada pelos benefícios percebidos dos transístores dos solid state. (Ironicamente, o maior sucesso da WEM nos grandes palcos dessa época foram as colunas 4×12″ Starfinder, concebidas para acompanhar os amplificadores solid state maiores e utilizadas por David Gilmour, nos Pink Floyd, sob os seus cabeços valvulados de 100 watts da Hiwatt).

Os dois maiores sucessos de Watkins não foram os amplificadores de guitarra como tal, mas o equipamento a ser utilizado ao seu lado nos rigs. O primeiro deles foi o tape echo Watkins Copicat, desenvolvido com a ajuda do engenheiro Bill Purkis, em finais de 1958 ou início de ’59. Rapidamente se tornou “O” tape echo britânico, vendendo cerca de 1.000 unidades por mês nos primeiros anos de produção. A segunda, surgida alguns anos mais tarde, veio sob a forma de um dos mais poderosos PAs da época, que Watkins começou a construir com a ajuda dos esquemas solid state de Purkis. Se os seus amplificadores de guitarra mal surgiam no mapa entre os grandes artistas, os seus sistemas PA eram poderosíssimos e adorados por bandas como Cream, The Who, Small Faces, Jeff Beck, Jimi Hendrix, Fleetwood Mac e dezenas de outros nos grandes festivais em Windsor, Hyde Park e a Isle of Wight. E, claro, em Pompeia…

Charlie Watkins chegou a reformar-se em 1974, mas optou retomar actividade logo no início dos anos 80. Continuou a inventar e a desenvolver o fabrico de produtos e assinou a reedição do Dominator em “V” original, no início dos anos 2000 e novamente por volta de 2010. Morreu na sua casa em Balham, em 2014, aos 91 anos de idade.

SOUND CITY

Vão dizer: «Sound City, esquecido? Este gajo está parvo». Tudo bem, mas agora pensem em como arranjar um e, além disso, um anterior a ’68. Se conseguirem, é ver aí a página de contactos e informar, queremos uma palete!

A cena inglesa de meados dos anos 60 viu surgir uma avalanche de construtores ansiosos por competir com a Marshall, que escalou rapidamente a montanha das poderosas stacks para o rock. Um dos mais dignos de nota foi a Sound City, nomeado assim em homenagem a uma cadeia de lojas de música londrinas temáticas: a “City”, gerida pelo grupo Dallas-Arbiter. A Sound City era uma loja de guitarra e amps na Rupert Street do Soho, a poucos quarteirões para oeste das lojas Jennings e Selmer (entre outras) em Charing Cross Road – e frequentada não só por The Beatles, mas também, mais tarde, por Eric Clapton, Jimi Hendrix e inúmeros outros. Foi aí que Ivor Arbiter decidiu, como outros antes dele, iniciar o seu próprio negócio de amplificadores. Para o fazer, porém, precisava de um designer e um construtor. Arbiter escolheu a Hylight Electronics, fundada e gerida por outro nome dos anais da amplificação britânica, um jovem engenheiro chamado Dave Reeves que tinha terminado recentemente a sua formação na Marconi Electronics e Mullard. Reeves, claro, viria a estabelecer a sua própria marca no final dos anos 60, que seria tornaria ainda mais significativa na história da amplificação que a Sound City.

Sound City “One Hundred” original, design e construção de David Reeves.

A Dallas-Arbiter desejava amplificadores que rivalizassem com a ascensão da Marshall, mas o que obtiveram de Reeves (e o que o próprio Reeves produziria depois, sob o nome de Hiwatt) foram as coisas bem distantes de meras cópias. O seu aspecto exterior e a sua disposição de controlos poderiam ter parecido inspirados na Marshall, mas Reeves estava determinado a construir algo melhor no início dos anos 60, antes mesmo de haver muita consciência sobre a Marshall, e os seus amplificadores dispunham de originalidade e um impulso para óptima qualidade e e grande desempenho em cada um dos seus recantos. Os primeiros amplificadores vendidos pela Sound City ostentavam um simples logo Arbiter nas placas de controlo frontal, passando posteriormente a ter chapado o nome distintivo da loja. De acordo com uma pesquisa de Mike Huss (publicada em Hiwatt.org), em 1967, Reeves recebeu um pagamento de aproximadamente 800 libras esterlinas para produzir um lote de amps Sound City para a Dallas-Arbiter, que construiu na garagem da sua casa em Malden, Surrey, no extremo sudoeste dos subúrbios de Londres. Estes primeiros amps produziam 100 watts de um quarteto de EL34s e eram conhecidos como “One Hundred”, L100 ou Lead 105 no seu formato modificado Reeves (também mais tarde referido como o Mk1).

Reeves deixou de fornecer amplificadores Sound City em 1968 e passou a produzir os seus próprios modelos Hiwatt, continuando com desenhos muito semelhantes de 50 e 100 watts. A Dallas-Arbiter continuou a produzir amps Sound City, inicialmente seguindo os circuitos que Reeves tinha estabelecido, mas minimizando custos na montagem e nos componentes para atingir orçamentos de produção rigorosos. Se os amplificadores Sound City pós Reeves foram feitos com custos de produção relativamente baixos, isso não significa que – por mais que sejam comparados com amplificadores de proa da época – tenham sido feitos de forma deficiente. Utilizavam excelentes transformadores Partridge e muitos outros componentes da época que eram peças de boa qualidade e eram, geralmente, montados por uma equipa bem preparada, que incluía Dennis Cornell (mais tarde um notável fabricante de boutique). Os amplificadores Sound City resistiram até ao início dos anos 80 e se nunca tiveram endorsers mediáticos como a Marshall, Vox e Hiwatt acumularam, foram vistos de forma proeminente nos backlines dos finais dos anos 60 de Pete Townshend e Jimi Hendrix (pelo menos, as colunas por baixo dos seus cabeços Marshall) e em digressão com The Rolling Stones.

LANEY

Agora, sim. Podem pensar que é uma perfeita imbecilidade referir a Laney neste artigo. Mas a verdade é que, se a marca subsiste até aos nossos dias com a reputação intacta (algo que não é linear), nunca atingiu o estatuto mediático da Vox ou da Marshall e, hoje em dia, no culto british tone, enfrenta a ascensão da Blackstar, por exemplo.

’69 Laney Supergroup

Enquanto os outros três fabricantes aqui referidos estavam todos sediados em Londres, a Laney está a uma viagem de algumas horas a norte da Big Smoke. Originalmente, este fabricante perseguia a mesma performance big-stack que a Sound City. Como muitos que entraram no negócio nos seus primeiros dias, Lyndon Laney era músico, tocando em bandas na sua terra natal nas West Midlands e arredores. A mais notável foi a Band Of Joy, ao lado de Robert Plant e John Bonham, antes dos Led Zeppelin. Sem fundos fundos para comprar um amplificador adequado, Laney construiu o seu próprio modelo e logo teve outros músicos locais a bater-lhe à porta e a pedir-lhe um. Começou por dar vazão a este mercado inicial de passa-a-palavra ao montar amps na barraca de arrumos de jardinagem do seu pai, até que a procura ultrapassou a sua capacidade de produção naquelas condições. Laney lançou oficialmente a sua empresa em 1967, altura em que se tornou proprietário de uma fábrica em Digbeth, Birmingham.

Naturalmente, a Laney passou a ser frequentemente associada à cena heavy metal que explodiu em Birmingham na viragem dessa década. A sua credibilidade nesse mundo particular foi reforçada desde cedo pela venda de um sistema PA a Robert Plant, em 1968, que partiu em digressão com os Led Zeppelin para os EUA, pouco depois disso. O cliente mais conhecido de Laney, porém, é Tony Iommi dos Black Sabbath, que tem usado os amplificadores da empresa desde 1970 e do lançamento desse opus que é “Paranoid”. De facto, o som de Iommi é definitivamente ilustrativo do som dos grandes modelos Laney: trovejante, monstruosamente volumoso, evocativo da opressão do doom metal quando o som é é puxado bem alto.

Para o exterior, a Laney seguiu o popular template Marshall, mas a empresa sempre teve as suas peculiaridades de design. O grosso da sua linha de produção inicial compreendia poderosos modelos de 100 watts, embora fossem construídos amps mais compactos e, eventualmente, modelos muito maiores também. A popular gama Supergroup, que o Iron Man dos Sabbath adoptou quando ficou disponível, chegava até ao enorme Supergroup 200, com seis EL34s. Durante muitos anos, os amps Laney foram encarados como uma alternativa mais acessível a algumas das marcas mais mainstream, mas amplamente considerados máquinas ferozes, ainda assim. A empresa continua em funcionamento (após um cessar de operações em 1980 e um eventual regresso com uma remodelação do alinhamento), operando a partir de um local não muito distante do original, em Halesowen, West Midlands, sob a direcção do filho de Lyndon, James.

Há vários outros amps a copnsiderar entre as grandes lendas valvuladas da era dourada do british tone. Todavia, Selmer, Watkins/WEM, Sound City e Laney são, indiscutivelmente, os mais poderosos, apenas um passo atrás dos grandes nomes que continuam a definir “o som britânico” hoje em dia.

Artigo traduzido e adaptado de “Unsung British Guitar Amps from the Golden Age of Rock”, de Dave Hunter. Fotos dos amps Selmer (no artigo) cortesia de Rob Sawyer. Fotos dos amps Watkins cortesia de Marcel Cavallé. Foto do Sound City cortesia de Steven Fryette, Sound City Amplification.

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