Gente danada faz som danado. Nesta rubrica revemos alguns dos mais extraordinários trabalhos criados por músicos portugueses, devotos de volume e distorção extremos, de paisagens sónicas escuras ou violentas e do Grande Bode. Neste volume, focamo-nos no universo shredder português e no temível mundo dos álbuns de guitarristas a solo.
É comum dizê-lo, como será em todos os países, que o underground metaleiro nacional tem evoluído muito. Mas quem está familiarizado com a cena heavy portuguesa sabe que depois dos picos de intensidade no início dos anos 90 e alguns apontamentos esporádicos na década seguinte, os grandes discos de música extrema portuguesa não surgiam num fluxo constante. Felizmente, na última década, as coisas mudaram e há cada vez mais bandas e lançamentos com padrões bem elevados na composição, na atitude e nos aspectos sónicos, seja nas proezas instrumentais ou no enorme salto nos valores de produção que advieram da democratização das ferramentas de gravação.
Ainda assim, o metal continua a ser um género bastante guetizado em Portugal e há discos que passam despercebidos aos mais desatentos, quando deveriam ser alvos dos maiores louvores. É isso que pretendemos nesta rubrica. Podem consultar a primeira colheita (aqui), a segunda (aqui) e ainda a terceira (aqui). Entretanto, aligeiramos um pouco o peso e aceleramos as notas debitadas por segundo, focando-nos no ainda mais guetizado mundo do guitar hero nacional. Tiramos da equação o Gonçalob “Tricôt” Pereira, afinal chegou a andar nas tabelas nacionais de vendas, mas podem desvendar toda a sua carreira no artigo especial que lhe dedicamos.
Como instituído, eis mais cinco tremendos discos que merecem a nossa e a vossa atenção…
“Transcendence”, o segundo disco de Fred Brum. O guitarrista é um prolífico hired gun quer nacional, quer internacionalmente, e um fervoroso apaixonado por instrumentos de 7 e 8 cordas (e até alguns monstruosos multi-scale de 36 trastes. Desenvolveu as suas idiossincrasias estéticas e sónicas nesse tipo de guitarras e é esse “meio” djent que surge no álbum de estreia a solo – “Atonement” (2011). Podem ouvi-lo aqui. A nossa escolha recai sobre o segundo apenas proque o sentimos com uns extras de groove, com um som mais equilibrado e orgânico e com algumas surpresas impactantes nas progressões melódicas. De facto, “Transcendence” é um álbum assente em guitarra de 8 cordas que não se remete ao djent. A sensibilidade melódica ao longo do disco é deslumbrante. O tema título, por exemplo, revela uma belíssima técnica de tapping na criação das melodias. Os riffs de “Ryujin” e a teia de tappings e picking são arrasadores. Se são fãs de coisas debitadas pelos Animals As Leaders (e que não sejam), ajudem a trazer alguma justiça mediática ao Fred The Shred que é um dos guitarristas mais underrated no nosso país!
Este álbum de Luzio não se trata de tatuagens ou brincos, apenas de criatividade nas 6 cordas! “Fulfillment” estabelece os parâmetros elevados de um álbum de guitar shredding surpreendente. Surpresa, porque num guitarrista jovem e num primeiro álbum a solo não seria de esperar uma maturidade de bom gosto e pertinência já tão elevadas. Até no sentido deste “Mood & Colors” (2013) estar muito menos apegado ao azeite extravagante que têm pautado enorme parte da carreira dessa malta do G3 e o Diabo a sete, estando muito mais dentro duma estética clássica de Satriani com alguns toques de Petrucci nos licks e sonoridade. Apontar referências não impede que identifiquemos uma personalidade logo aí vincada, uma voz nos dedos de Luzio. Essencialmente no diálogo que estabelece entre a sonoridade canónica deste tipo de discos com uma fusão jazz, que nos faz pensar em algo tão díspar ao universo deste álbum como Paul Masvidal nos Cynic. “Determination” é exemplo axiomático dessa sensação e, já agora, é um malhão! Também “Unfinished Conversation” poderia ser apontado como exemplo disso. O álbum vai discorrendo nestes parâmetros apenas com dois defeitos (ou feitio). Falta muita força bruta ao som do disco, sabendo de antemão que isso é uma questão de preferências pessoais. Ainda assim, ao ouvir uma malha como “Espectacle” sentimos mesmo falta de mais músculo na bateria e baixo. É um álbum com um som muito polido. Entre outros temas que se agarram à memória, como “Boogie Azul” ou “7/8 de Lua”, sentimos que o outro problema é a extensão do álbum (13 temas). Removendo algumas das “baladas” e compactando o alinhamento com menos 3 ou 4 temas seria uma bomba ainda mais poderosa de talento, criatividade e arrojo.
Luiz Arantes nasceu em Brasília, no Brasil, e começou a tocar guitarra em 1983 influenciado por bandas como Kiss, Scorpions, Queen, Journey ou Peter Frampton. Inspirado pelo ambiente da primeira edição do festival Rock In Rio, em 1985, começou a integrar bandas e a ter aulas particulares de guitarra. Fast forward e a vida trouxe-o para Portugal. Começou por entrar no circuito de covers, gravar como hired gun e dar aulas de guitarra. Como músico de sessão, chegou ao topo da indústria nacional – integrando a banda de Tony Carreira. Mas a sua devoção ao velho rock e aos guitar heroes foi materializada em 2016 através da energia e virtuosismo do seu primeiro álbum a solo, “Spectrum”. O álbum une sonoridade vintage com as novas tendências da guitarra eléctrica, tendo Arantes usado guitarras dos anos 70 e modelos mais recentes da Suhr ou PRS para gravar o álbum. Os amplificadores reflectiram também este dualismo, através de unidades valvuladas Marshall e Mesa/Boogie e o processador Axe FXII da Fractal Audio. O álbum conta com a produção de Ricardo Fernandes e Luiz Arantes e a masterização foi feita nos estúdios Abbey Road em Inglaterra e também na Finlândia por Mike Jussila. O tema “Synergy” conta com a co-autoria do guitarrista/produtor Carlos Bastos e com um solo de guitarra do convidado especial, o guitarrista brasileiro Marcelo Barbosa (Angra/Almah), mas existem mais contribuições ao longo do disco como: Vicky Marques, Sandro Oliveira, David Jerónimo, Dikk, Nuno Correia, João Alferes, Ernesto Rodrigues, Pedro Martinho e Nuno Louro. «Spectrum é um disco de celebração, de homenagem, de tributo e de veneração ao nobre instrumento que é a guitarra eléctrica e todo o seu universo rock», confessa o shredder que o nosso país adoptou.
Seria ridículo equacionar uma recolha nacional deste género sem incluir o ícone do heavy metal luso, Paulo Barros. Apesar da versatilidade da sua imensa discografia, este veterano das seis cordas mantém a capacidade de nos surpreender, como fez ainda no ano passado aos comandos do regresso dos Tarantula – a histórica banda celebrou o seu 40º aniversário com o novo álbum “Thunder Tunes From Lusitania”. Se a banda liderada pelos irmãos Luís e Paulo Barros se firmou como a maior da banda da primeira vaga de metal português e uma das maiores de sempre no nosso país, dentro dos espectros mais pesados da música, com aclamação dentro e fora de fronteiras, muito disso é devido ao desenvolvimento técnico que cada um deles sempre procurou no domínio do seu instrumento. Isso dos arpeggios e da velocidade era uma coisa que, no início dos anos 90, fascinava muitos de nós, adeptos do heavy metal. E o Paulo Barros era o Rei para uma ou duas gerações de headbangers nacionais. Em 1996, estreou-se a solo com “Vintage” (assim chamado por assinalar os 20 anos da sua carreira de guitarrista), um álbum maioritariamente composto por temas instrumentais em que «o Paulo Barros e a sua guitarra estabelecem diálogos com outros músicos e instrumentos, como o baixo de Jorge Romão (GNR), a guitarra acústica de Rui Vilhena (Vozes da Rádio) ou o saxofone de José Nogueira (colaborador habitual de António Pinho Vargas)». Mistura o heavy/power metal dos Tarantula, com rock clássico, o AOR e algum hair metal. Dentro daquilo que quem gosta dos “álbuns de guitarristas” compreenderá, este é o álbum aqui apresentado com uma sonoridade e com malhas mais tradicionais. É um pedacinho de história do nosso heavy metal e é imperdível!
Foi em 2015 que Tó Pica, que já tinha feito de tudo menos um álbum a solo, editou “Is This The Best You Can Do?!”. Progressões de escalas orientais, com toques de Marty Friedman, a omnipresença do estilo de fusão pós grunge de Mark Tremonti (“Binding The Distance”, até vocalmente, é quase um tributo aos Alter Bridge), muitos dos fumos sónicos dos RAMP, naturalmente. São estas as bases estéticas mais salientes do álbum. O corpo sonoro do disco tem momentos de algum desequilíbrio, separando de forma bastante fria a secção rítmica das guitarras, com um dinamismo muito flat e criando momentos em que há elementos como os pianos que surgem demasiado in your face. É desapontantemente plástico nesse aspecto. O álbum acaba por reflectir a riqueza da carreira itinerante de Pica e, muito pelo seu corpo sonoro, acaba por não ser muito homogéneo. Isso é causado em certa forma pelos vários vocalistas convidados, mas essa decisão é, ao mesmo tempo uma das mais-valias do álbum. Não há sombra de dúvida de que Pica poderia ter optado por um álbum a esgalhar a guitarra de uma ponta à outra. Ainda bem que decidiu não fazê-lo. Porque os vários convidados trazem um dinamismo vigoroso ao disco, e o sentimento que é emprestado a alguns temas consegue fazer transcender as limitações físicas da gravação. “Espelho”, com Tobel a emprestar todas as suas idiossincrasias à canção, soa emocionalmente poderosa em português e é consensualmente o momento mais destacado do álbum. Tal como os momentos de maior propulsividade como “My Time Has Come” (cantada por Marco Resende), a frenética “Suspended Metamorphosis” (também com Tobel) e “Faceback” (excelente prestação vocal de David Pais). Estes temas são malhões! No entanto, a jóia da coroa é a forma sóbria como Pica empresta a sua técnica às canções, sem demonstrações desnecessárias de virtuosismo, nem nas duas peças instrumentais “The Urge” e “…And Just Breathe”, a abrir e fechar o álbum respectivamente. Antes, o guitarrista desvenda o seu amplo talento como songwriter, dono de uma grande sensibilidade melódica. Atenção, não pensem que não há shred como manda a lei, porque há! É mais um álbum que podia ter sido encurtado em dois ou três temas. Se são fãs de baladas, como esse gajo de enorme coração que é o Tó, então podem subir o valor geral ao disco. Quando à resposta ao título, não. Não é o melhor que pode fazer, venha o segundo!
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