De uma autêntica orgia de fusão de estilos musicais ao peso do heavy metal, a extravagante e irascível saga “Bat Out Hell”, criada por Jim Steinman e Meat Loaf, é composta por três discos sem paralelo na história do rock.
Foi em Abril de 2021 que morreu Jim Steinmanm, que será sempre reconhecido pelo seu trabalho na estreia de Meat Loaf em 1977, “Bat Out of Hell”, e no sexto disco, e sequela, em 1993, “Bat Out of Hell II: Back into Hell”. Steinman nasceu em Nova Iorque, em 1947, e formou-se na George W. Hewlett High School, em 1965, antes de obter o seu bacharelato no Amherst College, em Massachusetts. Enquanto lá esteve, dirigiu produções musicais de artistas como Bertolt Brecht e Michael McClure, e até escreveu o seu próprio musical, intitulado “The Dream Engine”. A história seguia um jovem rapaz chamado Baal e o seu bando de rebeldes foras-da-lei apelidado de The Tribe, e colocou Steinman num trilho que o tornaria um dos renegados mais notórios da música pop.
Menos de um ano depois, no passado dia 20 de Janeiro, morreu Meat Loaf. Também em 1947, nasceu Michael Lee Aday, em Dallas. Contou o músico, actor e produtor norte-americano que o nome artístico tem dois pais: o progenitor biológico, um veterano da II Guerra Mundial. com problemas de alcoolismo, que lhe chamou “carne”, devido à cor avermelhada que Michael apresentava quando nasceu e que manteve durante mais tempo do que o habitual. A segunda parte do nome chegou mais tarde, quando um treinador lhe chamou «rolo de carne». Foi com este nome e alma que iniciou a carreira de músico, aos 20 anos, em Los Angeles, com a banda “Meat Loaf Soul”. Uma carreira com arranque difícil para o músico.
No início dos anos 70, Steinman trabalhou em várias produções teatrais, caso de um musical de 1973 chamado “More Than You Deserve”. No elenco estava Meat Loaf. Travaram amizade e, em 1977, Jim teria a sua grande oportunidade no rock ‘n’ roll, compor “Bat Out of Hell”. Recusado por várias editoras discográficas, Meat Loaf conseguiu editar, com a ajuda da mulher, que trabalhava como manager de Bob Dylan e Janis Joplin esse álbum que ninguém queria, “Bat Out of Hell”. Juntos, Steinman e Michael criaram a lenda dos Meat Loaf, uma sonoridade operática, lasciva e intensa. A sua pompa narrativa e extravagância nos arranjos, muitas vezes bastante aproximados à tradição da Broadway, atingiram o seu zénite logo em 1977 e nesse disco que, ainda hoje, é um dos mais vendidos da história da música, com mais de 43 milhões de cópias vendidas. 16 anos depois foi criada a sequela que, não obstante, números mais baixos, também foi um sucesso comercial, muito por culpa do épico single “I’d Do Anything for Love (But I Won’t Do That)”. Ao fim de 13 anos, chegou a conclusão da trilogia. Steinman iniciou o trabalho, mas não o terminou e, numa era de acentuado declínio de vendas na indústria discográfica e com a popularidade do rock nas ruas da amargura, o disco que, para muitos, só fica atrás do primeiro da trilogia, foi motivo de cisma entre os dois amigos. No final, fica uma saga que, goste-se ou não, tem muitos poucos paralelos na história da música…
BAT OUT OF HELL
Tudo começou a partir de um musical. “Neverland” era uma versão rock futurista de Peter Pan, que Steinman escreveu em 1974 e apresentou no Kennedy Center Music Theatre Lab em 1977. Steinman e Meat Loaf, sentiram que três dessas canções eram verdadeiramente excepcionais (“Bat Out of Hell”, “Heaven Can Wait” e “The Formation Of The Pack”, que se tornaria “All Revved Up With No Place to Go”) e Steinman começou a desenvolvê-las como parte de um conjunto de sete canções que formariam um álbum, trabalhando fervorosamente durante 1975. Conduzido ao piano, ao melhor estilo de Elton John, e percorrido por galopantes ritmos do rock americano, na melhor tradição de “Born To Run”, de Springsteen. Aliás, Max Weinberg e Roy Bittan, baterista e pianista da E Street Band, respectivamente, tocaram neste disco. Todavia, por grandioso que fosse o LP, Steinman e Meat Loaf enfrentaram a dura e frustrante realidade da rejeição e do desprezo durante os dois anos seguintes.
De acordo com a vibrante autobiografia de Meat Loaf, este apresentou o álbum ao vivo nos escritórios de vários executivos editoriais, acompanhado por Steinman ao piano e, por vezes, Ellen Foley a juntar-se-lhes em “Paradise By The Dashboard Light”. O episódio de maior afronta teve lugar nos escritórios da CBS, onde Clive Davis rejeitou o projecto e desafiou as capacidades de escrita de Steinman e os seus conhecimentos de música rock: «Sabes como escrever uma canção? Sabes alguma coisa sobre escrita? Se vais escrever discos, é assim: A, B, C, B, C, C. Não sei o que estás a fazer. Estás a fazer A, D, F, G, B, D, C. Não sabes como escrever uma canção…. Alguma vez ouviste música pop? Já ouviste rock ‘n’ roll?» Em vez de desistirem, Metal Loaf e Steinman procuraram outro génio excêntrico e mentiram-lhe. Todd Rundgren, convencido que havia um contrato discográfico com a RCA e apaixonado pelo que considerava uma abordagem leviana e cómica de Springsteen, decidiu produzir o disco e gravar uma grande parte das guitarras. Naturalmente, foi adoptada a Wall of Sound de Phil Spector. Edgar Winter foi convidado para gravar os saxofones. As orquestrações não sintetizadas foram gravadas por elementos da New York Philharmonic e da Philadelphia Orchestra. Então, Rundgren descobriu que não havia qualquer acordo editorial e que, basicamente, estava a bancar o disco, cuja edição ficou então presa por um fio…
Foi outro membro da E Street Band que salvou “Bat Out Of Hell”. Steven Van Zandt desbloqueou um contrato com a Cleveland International Records, uma indie subsidiária da Epic Records, casa onde praticamente toda a gente detestava o disco. Mas a Cleveland fez um trabalho devocional na procura de aumentar a exposição do disco. Ainda assim, a resposta do público norte-americano foi tudo menos imediata e foi a reacção positiva dos mercados britânico e australiano que catapultou Meat Loaf e um disco que, em retrospectiva, Steinman admitiu ser «intemporal por não se enquadrar em qualquer tendência. Nunca foi parte do que estava a acontecer. Podia ser editado em qualquer altura e estaria sempre deslocado».
“Bat Out Of Hell”, de facto, mostra Steinman como um compositor sem paralelo e uma fusão inigualável de elementos pop, góticos, operáticos e rock ‘n’ roll, refinada pela acutilância da produção e mistura de Rundgren. Mas talvez o que o torne irressistível é o quão deslocado e mesmo imbecilmente juvenil. Tão grandioso quanto despretensioso e com ganchos melódicos e coros carregados de açúcar. Tornou-se um dos álbuns mais bem-sucedidos de sempre, comercialmente e junto de audiências e crítica especializada – que mais cedo ou mais tarde converge com a opinião popular…
BAT OUT OF HELL II: BACK INTO HELL
No final da década de 70, o colossal sucesso de “Bat Out Of Hell” mudou tudo para os seus criadores. Agora, era a vez dos executivos lhes implorarem uma sequela, ao ponto de colocarem um travão na digressão e pedirem a Steinman que se fechasse em estúdio, o que o compositor fez, começando a criar um trabalho com o título provisório de “Renegade Angel”. Steinman estava entusiasmado: «Queria fazer uma continuação e queria fazer um trabalho que fosse mais além, que fosse mais extremos se possível. Muita gente não acreditava que fosse possível, mas queria perceber se conseguia fazer um disco ainda mais heróico, pois é o que penso ser aquilo que se trata… Para mim, ‘Bat Out Of Hell’ ainda que seja cómico é extremamente heróico e queria fazer algo ainda mais épico, mais operático e mais passional», recordaria, em 1981, no BBC Rock Hour Special.
O que sucedeu então para a sequela apenas chegar uma década e meia depois? Em 1978, após algum trabalho de composição e escrita, Steiman tornou a juntar-se a Meat Loaf, que nunca deixou de estar em digressão. Os dois iriam rever o que estava feito até aí, após um concerto em Toronto, no Canadá. Acontece que, durante o concerto, alguém invadiu os camarins e roubou vários bens aos músicos, incluindo o caderno de letras e apontamentos de Steinman e de “Renegade Angel”. Um revés, ao qual se juntou uma catástrofe. Foi nesta altura que Meat Loaf perdeu a voz – resultado de uma combinação explosiva de cansaço, fruto de um calendário de digressão exigente, e drogas. Dessa forma, o cantor entrou num período de convalescença e aceitou mesmo um papel em “Roadie”, filme de Travis Redfish. Em 1980, a sua voz estava de volta, mas o sucessor de “Bat Out Of Hell” tinha sido colocado de parte. Os Meat Loaf tornaram a juntar-se a Todd Rundgren e, por sua vez, a juntar-lhe Stephan Galfas e Jimmy Lovine na produção de “Dead Ringer”. O single “Dead Ringer For Love”, com a participação de Cher, catapultou o disco comercialmente. Mas a chama parecia estar a desvanecer…
Steinman escreveu imensas canções no tempo que Meat Loaf esteve em recobro. Canções que Meat Loaf considerava que deviam ter sido parte do catálogo da sua banda ou que deviam ter sido trabalhadas na badalada sequela do álbum de ’77. Caso de grande parte das canções que Steinman editou a solo, no álbum “Bad For Good” – que, de facto, viriam a ser regravadas em “Bat Out Of Hell II” -; de canções que Steinman usou em “Original Sin”, disco do projecto de vozes femininas Pandora’s Box e que também acabariam no segundo “Bat”. E, antes dessas, os super singles de Bonnie Tyler e dos Air Supply, “Total Eclipse Of The Heart” e “Making Love Out Of Nothing At All”, respectivamente. Steinman defendia que a editora não lhe pagou para usar as canções em discos dos Meat Loaf e este, sem resolução à vista para uma disputa legal, limitou-se a cumprir cláusulas dos contratos discográficos. Gravando os discos que lhe competiam: “Midnight At The Lost And Found”, “Bad Attitude” e “Blind Before I Stop”. Assim, no início dos anos 90, a carreira de Meat Loaf estava em acentuado declínio e a indústria passara a encarar a sequela de “Bat” como uma piada, ainda para mais dado o desperdício de esforços de Steinman e a relação entre este e o cantor. Foi quando ambos decidiram reconciliar-se e tentar, uma vez mais, o impossível. Começaram a gravar em 1991 e a produção só encerrou em 1993, decorrendo entre os estúdios Ocean Way Recording, em Los Angeles, e os The Power Station, em Nova Iorque.
As estrelas do primeiro disco regressaram, caso de Roy Bittan, Todd Rundgren, Ellen Foley, Rory Dodd e Kasim Sulton. O engenheiro, desta vez, foi David Thoener. O feitio irascível de Steinman só se manifestou no momento de assumir um edit de rádio para “I’d Do Anything for Love (But I Won’t Do That)”. Só o manager Allan Kovac o convenceu a aceitar, sob pena de a canção, o imponente single do álbum, não ter airplay. Mas percebe-se a postura de Steinman. É um crime não ouvir os épicos 12 minutos do tema, que abre com a emulação do motor de uma chopper, através das guitarras de Todd Rundgren e evocando o primeiro álbum da trilogia, e encerra com o dueto com a voz feminina de Lorraine Crosby. “Bat Out Of Hell II: Back Into Hell” é menos explosivo que a primeira parte, mais introspectivo e denso no seu som. Mais pesado na instrumentação e com um carácter pessimista, ainda que sempre irresistivelmente melódico, como está exemplarmente manifesto nessa fábula rock que é “Rock and Roll Dreams Come Through”.
Mas o disco está demasiado ancorado no seu épico tema de abertura. O rock também havia mudado, tal como a sua audiência, agora mais apegada ao cinismo dos Nirvana ou à agressividade dos Metallica. Talvez em retrospectiva, seja possível descobrir-se o génio de composições como “Just Won’t Quit” ou “Out of the Frying Pan (And into the Fire)”, o poder das suas texturas e a maturidade das suas aplicações dinâmicas. Uma vez mais, é um álbum de extremos, para amar ou odiar, mas não se pode negar o quão esplendoroso é nos seus melhores momentos. “Bat Out Of Hell II” é menos bombástico que o disco que, conceptualmente, o antecede, mas ganha na dimensão sónica, usufruindo de maiores valores de produção, tornando a instrumentação mais poderosa. No final é um digno sucessor do original e, pensava-se na altura, um dos últimos exemplares desta forma de fazer música.
BAT OUT OF HELL III: THE MONSTER IS LOOSE
Meat Loaf e Jim Steinman começaram a trabalhar na última parte de “Bat Out of Hell” no início do segundo milénio, mas o caldo tornou a entornar rapidamente entre ambos. Steinman havia registado (em 1995) a expressão Bat Out Of Hell como marca, reservando para si os proveitos económicos desta. Meat Loaf moveu uma acção legal como resposta, afirmando ter méritos na criação do disco original que não estavam a ser protegidos dessa forma. Esse processo legal foi movido já depois de Meat Loaf ter acordado um contrato com Steinman para escrever o final da saga («um dos melhores contratos alguma vez oferecidos a um produtor na história da indústria discográfica») e de, confrontado com alguns problemas de saúde de Steinman, ter optado por avançar sem o seu eterno parceiro.
Meat Loaf acabou por eleger Desmond Child para produzir. No currículo de Child figuram a composição de canções como “I Was Made for Lovin’ You”, dos Kiss; “You Give Love a Bad Name”, “Livin’ on a Prayer” e “Bad Medicine”, entre outras, dos Bon Jovi; “Dude (Looks Like a Lady)” e “Crazy”, entre outras, dos Aerosmith; e “Poison”, de Alice Cooper. Isto apenas para referir aquelas mais próximas ao universo de Meat Loaf. Ainda assim, o disco só poderia avançar após resolução da disputa legal com Steinman, que chegou em 2006 e “Bat Out Of Hell III” acabou por ser editado em Outubro desse ano. De resto, ainda que Steinman não se tenha envolvido na gravação do álbum, há sete canções com a sua assinatura. Todd Rundgren voltou para trabalhar em alguns arranjos, mas a ideia era trazer “Bat Out Of Hell” para uma nova era sónica. O álbum contou com uma constelação de músicos que inclui os guitarristas Brian May, John 5 ou Steve Vai. Sonicamente e esteticamente é o mais extremo, com uma atmosfera mais negra, e indubitavelmente o mais pesado, algo notório desde os primeiros momentos de “The Monster Is Loose” e dos riffs demolidores de John 5. É o menos extravagante dos três discos, com temas mais focados, mais compactos e sóbrios. Mas não se pense que há uma cisão com os antecessores. “It’s All Coming Back to Me Now” é Steinman puro, um baladão que podia servir de banda sonora ao mais brega filme romântico da Disney. Se isso é um patamar acima do que conseguem suportar, as coisas entram mais nos eixos em “Bad For Good”, com aquelas épicas camadas que Brian May trouxe dos Queen para este disco. Dos três “Bats”, este é aquele com o mais caloroso corpo orquestral. Não podia deixar de o ser, dada a dimensão do recurso a perto de uma centena de músicos – mais de uma vintena, por exemplo, apenas para os violinos. Na ausência de Steinman, Child optou por dar mais músculo ao som do disco – e algum shred, como se constata pelos solos de Vai em “In The Land Of The Pig, The Butcher Is King”. “If God Could Talk” exala elegância e poder, uma balada old school. E por falar em poder, mas desta vez cheio de exuberância e luxúria instrumental, segue-se “If It Ain’t Broke Break It”.
A encerrar o trabalho, “The Future Ain’t What it Used To Be” é a canção que mais se aproxima do primeiro disco e parece fechar o círculo. Só se pode especular sobre como teria sido o final da saga, se Steinman tem estado mais directamente envolvido, mas não se pode desprezar esta peça final que deixa um fiel retrato da era em que foi feito. Talvez pudesse ter abdicado de duas ou três canções. Mas, mesmo longe dos holofotes dos primeiros dois álbuns, não deixa de se merecer louvores bem altos, principalmente quando colocado ao lado de muita da música mainstream feita na mesma altura…