Meshuggah

A Brutalidade Cerebral de Meshuggah

Os nacionais The Voynich Code (chamados à última hora) e o leviatã matemático que são os Meshuggah criaram um bloco de imponência sónica a meio do esquizofrénico cartaz do Evil Live Festival.

Nos dias 28 e 29 de Junho de 2023, o Evil Live Festival trouxe à Altice Arena, em Lisboa, um cartaz multigénero dentro da música pesada, naquela que foi a sua edição inaugural. O conceito passou pela diversidade de géneros e subgéneros, com propostas que foram do mainstream ao alternativo, dos riffs e das guitarradas às novas tendências mais contemporâneas, dos grandes nomes estabelecidos ao talento emergente. Talvez as coisas tenham sido algo esquizofrénicas, sendo todas apresentadas num único palco e tratando-se, afinal, dum número reduzido de bandas. Uma constatação simples, bastando para isso olhar para o imenso cartaz do vizinho Resurrection Fest (que, certamente, facilita a logística deste evento).

Dito isto, ninguém se pode queixar muito quando há um promotor disposto a meter a cabeça no cepo e trazer a Portugal os Slipknot e, acima de tudo, uma reunião dos Pantera, de homenagem aos falecidos irmão Dimebag e Vinnie Paul. Sobre os headliners já nos pronunciámos e podem ler a reportagem dos Pantera e também a reportagem dos Slipknot. Por aqui, fomos convidados a escrever as reportagens diárias para o media mainstream e podem descobrir na AS esses artigos que resumem o Dia 01 do festival e o Dia 02 do EVil Live. Os que aqui retemos são os concertos dos The Voynich Code e dos Meshuggah…

Foi apenas a duas semanas do evento que  os norte-americanos Nothing More cancelaram os espetáculos agendados na Península Ibérica. «Devido a questões de logística, alheios à organização do festival, os norte-americanos Nothing More cancelaram os espetáculos agendados na Península Ibérica», anunciou a 14 de Junho a Prime Artists, promotora do festival. Para o lugar deixado vago, foram chamados os nacionais The Voynich Code.

A banda pode extrair o seu nome do manuscrito do século XV, considerado por muitos o livro mais críptico do mundo, pelo facto da sua escrita ser indecifrável, mas apesar de usar motivos médio-orientais, sempre evocativos de mistério, nas suas progressões de escala, desde o EP “Ignotum” (2015) que a sua mensagem sónica é bastante clara: deathcore preenchido por alusões ao djent e malhões de intensidade técnica e musical. Apesar de menor rodagem do que as bandas que imediatamente se seguiram no cartaz, com menos espalhafato e mais foco musical, os lisboetas ofereceram uma mesmerizante descarga de distorção e compassos compostos à Altice Arena e, se isolássemos o seu concerto com o dos Meshuggah, teríamos tido uma excelente tarde de navegação entre o slam, o groove e o djent que há cerca de década e meia começou a proliferar no submundo do peso.

Tomas Haake, O Demiurgo

Criados no final dos anos 80, os Meshuggah são uma das bandas mais aclamadas das últimas três décadas no universo da música pesada e vistos como precursores do fenómeno djent. Oferecendo uma forma complexa de metal que combina arranjos matemáticos e cerebrais, os ritmos esquivos do jazz mais experimental, polirritmia, síncopes, dissonâncias, melodias cromáticas e uma dose de balanço tão impressionante quanto demolidora, a banda de Umeå tem uma dezena de álbuns de qualidade inegável no seu fundo de catálogo, entre os quais se contam títulos tão incontornáveis e influentes como “Destroy, Erase, Improve”, “Chaosphere”, “Nothing”, “Catch Thirtythree” ou “Obzen”, que foi até alvo de uma nomeação para um Grammy sueco. Amplamente elogiados pela imprensa, pelos fãs e pelos seus pares, afirmam-se como uma força da natureza, de que o mais recente exemplo é “Immutable”, editado em 2022, e que, por exemplo, para o pessoal dos Converge é um dos melhores álbuns desse ano.

Foi através do novo álbum, com “Broken Cog” que primeiro se percebeu que os suecos seriam uma proposta diametralmente oposta às duas imediatamente anteriores. Com um simples e poderoso esquema visual, com os músicos das cordas alinhados com o frontman Jens Kidman na frente do palco e com esse monstro que é Tomas Haake atrás do drumkit, mais elevado, a platei cada vez mais preenchida da Altice Arena foi alvo de sucessivas vagas de peso monolítico. Através de uma parede impenetrável de distorção e cerebral brutalidade rítmica, o balanço dinâmico adveio dos dedilhados e fraseados limpos das guitarras, tal como de ténues sombras de sintetização que criavam uma ainda maior densidade harmónica.

Vamos atrofiar um pouco. “Broken Cog” é terrificamente simples na sua polimetria numa base 4/4, com a bateria assente num 12/8. O ritmo principal, tanto como conseguimos contar, chega às 22 colcheias, feitas em uníssono com o staccato do baixo e as guitarras. É uma das grandes assinaturas sónicas dos Meshuggah e de Tomas Haake. Em “Rational Gaze” sente-se logo outra, com a propulsividade conduzida por um “hiper groovíco” backbeat. O ritmicamente alucinado solo de guitarra, quase um trompete, poderia ter sido assinado por Robert Fripp num disco dos King Crimson. E por falar em explorar as fronteiras do jazz, o núcleo vital deste concerto tão maquinal como orgânico terá sido a épica interpretação das suas partes de “In Death”

Mais perto do final do concerto, surge “The Abysmal Eye”. Outro single perfeito do mais recente disco, para qualquer fãs dos Meshuggah. Como outras músicas da banda, a estrutura é uma vez mais em 4/4, Da mesma forma que em “Broken Cog”, a tarola é tocada na terceira batida. O ritmo principal tem 26 beats e é hipnoticamente repetido na introdução do tema e evocado ao longo de toda a malha, que possuem outros três padrões rítmicos – as quatro semicolcheias de bombo, a acentuação no crash em uníssono com o bombo e a sua respectiva variação (com o prato mais “longo”) na repetição. E pensar que, apenas em 2020, o baterista confessou que problemas de saúde o afastaram das baterias durante um longo período e que correu o risco de nunca mais poder tocar. Seria um rude golpe para um génio.

A actuação fechou com dois fan favorites, o híbrido djent e post doom (à Godflesh) de “Demiurge” e o abrasivo “Future Breed Machine”. Um final avassalador de um concerto que soube a muito pouco. Eis a setlist: Broken Cog; Rational Gaze; Ligature Marks; Born in Dissonance; Mind’s Mirrors [Samplado]; In Death – Is Life; In Death – Is Death; The Abysmal Eye; Demiurge; Future Breed Machine.

Fomos escrever para o big media e este texto foi originalmente publicado na Arte Sonora, onde podem ver ainda a enorme galeria de fotografias da Inês Barrau. A foto que ilustra este artigo é de Anthony Dubois.

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