A batalha legal que Lars Ulrich e os Metallica encetaram contra o Napster passou, ao longo dos anos, de abjecta a heróica. Recordamos o processo, os problemas que continuam por resolver na era do streaming e as novas formas de pirataria comercial, que ferem os direitos dos artistas.
Em Abril de 2000, Lars Ulrich apareceu na sede da empresa Napster com 60.000 páginas contendo uma lista de 335.435 utilizadores do serviço que piratearam canções dos Metallica através daquele programa. Uma demo em MP3 do tema “I Disappear” dos Metallica tinha também circulado antes do seu lançamento oficial, e um furioso Lars Ulrich “atirou-se” ao Napster e aos seus utilizadores. Essa postura não gerou consenso na comunidade musical, aliás, esteve muito longe disso. Lars Ulrich acabaria por vencer a batalha legal, levando ao desaparecimento do serviço de partilha de ficheiros Napster, que desde então passou a ser uma plataforma legítima de streaming pago.
Na altura, a iniciativa de Ulrich foi em parte vista como uma traição aos fãs – afinal, eram eles que descarregavam as canções dos Metallica. Além disso, a banda não parecia beneficiar do frenesim que se seguiu nos meios de comunicação social. E, se alguns artistas, em 2000, possam ter visto a partilha de ficheiros MP3 no Napster (audiogalaxy, Soulseek, etc.) como um meio de publicidade gratuita, agora são os mesmos que criticam os serviços de streaming como o Spofity e outros, exigindo uma compensação justa.
Por exemplo, em Portugal, a GDA – Gestão dos Direitos dos Artistas lançou um apelo ao Ministro da Cultura do novo Governo para que seja garantido «um pagamento justo» aos artistas pela utilização online das suas obras. Num comunicado enviado à Agência Lusa, a GDA revela ter enviado uma carta ao novo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, na qual apela para «que, ao propor à Assembleia da República a transposição da Directiva MUD [Mercado Digital Único], garanta duas coisas simples: que os artistas que hoje recebem pouco pela utilização online das suas obras passem a receber mais, de uma forma justa e proporcionada; e que a maioria dos artistas, que nada recebe, passe a receber direitos sempre que as obras em que participa gerem receitas no online». Isto já depois de, em Outubro de 2021, a GDA, entidade que gere os direitos de propriedade intelectual dos músicos, actores e bailarinos em Portugal, ter tornado pública a sua discordância relativamente à proposta de lei de transposição da directiva apresentada pela então Ministra da Cultura, Graça Fonseca, à Assembleia da República.
Ainda segundo a Agência Lusa, para a GDA, «o texto proposto nessa altura omitia os pontos da Directiva MUD em que o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia procuraram garantir que a exploração online, nomeadamente o streaming das obras musicais e audiovisuais, seja uma fonte de rendimento justa e proporcionada para todos os artistas, intérpretes e executantes titulares de direitos». A GDA considera assim que a directiva do MUD «foi a resposta que o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia encontraram para o problema da distribuição muito desigual das receitas geradas pela utilização online de obras artísticas, nomeadamente musicais: 30% das receitas ficam em plataformas de ‘streaming’ como Youtube, Facebook, Spotify, a Google ou iTunes; em média 60% das receitas são entregues às editoras, cujas maiores são a Sony, a Universal e a Warner; e apenas cerca de 10% é entregue aos artistas».
Como se sabe, a indústria do streaming continua a ser tópico de muita discussão e, em Julho do ano passado, também o Parlamento britânico deu indícios de querer intervir na situação depois de um relatório que aponta para um suposto abuso de poder por parte das grandes editoras. De acordo com esse relatório, mencionado pelo The Guardian, a solução poderia passar por um «reset completo» do funcionamento das plataformas de streaming — caso contrário, a situação dos artistas no Reino Unido (e provavelmente em muitos outros países do mundo) pode estar totalmente transformada para pior dentro de uma década. Portanto, a ideia seria instituir uma série de medidas para proteger os artistas, uma vez que os números mostram que, em média, 30 a 34% do que é arrecadado pelas plataformas retorna directamente para os serviços, enquanto 55% vai para as editoras — o restante, que teoricamente varia entre 15 e 11%, é dividido entre o artista, a distribuidora e os compositores. Como exemplo, pode tomar-se a actual taxa de pagamento do Spotify, que varia entre US$0,003 e os US$0,005 por reprodução. Usando esses números como base, um artista com um milhão de streamings mensais receberia no máximo US$750 se fosse, ao mesmo tempo, artista, distribuidor e compositor.
ADVOGANDO O DIABO
Por outro lado, apesar de todas as críticas feitas aos serviços de streaming, a verdade é que essas plataformas, mais de duas décadas após o ocaso do Napster, continuam a impulsionar o crescimento da indústria musical. De acordo com um relatório da RIAA publicado no ano passado, o mercado registou um crescimento de 27% só na primeira metade de 2021, tendo gerado 7,1 mil milhões de dólares. Em 2020, esse valor atingiu 5,1 mil milhões durante o mesmo período. Desse total, 84% da receita vem directamente de serviços como Spotify, Apple Music e Deezer — e, só com as assinaturas pagas, foram arrecadados cerca de 4,6 mil milhões.
Em média, na primeira metade de 2021 identificaram-se 82 milhões de pessoas como assinantes dos serviços premium das plataformas. Vale a pena dizer ainda que, de acordo com a Mixmag, esse número representa apenas as inscrições que foram feitas e não o total existente; ou seja, é provável que o verdadeiro número de inscritos seja bem maior. Note-se aqui que, apesar da predominância do streaming, as vendas físicas também têm tido um resultado bastante positivo e apresentam crescimento. O relatório aponta para um aumento de 94% das vendas de discos de vinil, mas até mesmo os CDs — outrora considerados obsoletos — tiveram um crescimento de 43,9%.
«O Spotify é a resposta à pirataria: a migração de milhões de fãs de música baseada na pirataria para uma plataforma legítima onde o seu consumo de música pode ser monetizado e os artistas que dedicam as suas vidas à criação de música podem finalmente ser pagos». Sean Parker, co-fundador do Napster e investidor inicial do Spotify, sabia qual seria a venda mais forte para a empresa de Daniel Ek (patrão do Spotify) ao negócio discográfico, antes do lançamento da plataforma nos EUA em 2011. A verdade é que a aparente capacidade do Spotify em dizimar a popularidade da pirataria online há muito que é considerada um benefício B2B fundamental da plataforma – assim como uma justificação repetida para a continuação do seu nível gratuito em todo o mundo.
Mas será que a pirataria musical desapareceu realmente, mesmo com a queda do Napster, na era Spotify? Num artigo que, na altura, editámos para a AS, um relatório publicado em 2020 sugere que não. O estudo (que pode ser consultado aqui) foi conduzido pela empresa de monitorização de direitos online INCOPRO e descobriu que os sites de pirataria representam agora mais de 80% dos 50 sites de pirataria só de música mais populares no Reino Unido. A explosão no uso de pirataria em ‘stream-ripping’ no Reino Unido acontece numa altura em que o uso de sites de download BitTorrent (P2P) continua a diminuir significativamente. A INCOPRO descobriu que nos 50 principais sites de pirataria de música no Reino Unido houve uma queda notável na proporção de sites BitTorrent em relação aos três anos anteriores – diminuindo de 14 para seis. O relatório descobriu também que o sítio número 1 de pirataria no Reino Unido é o y2mate.com, que teve a maior utilização de todos os sites monitorizados. E, apesar da utilização global destes sites ter disparado nos últimos três anos, o volume real dos mesmos diminuiu significativamente. Isto, lê-se no relatório, foi possivelmente devido aos esforços da indústria contra estes serviços de ‘stream-ripping’, tais como o bloqueio do youtube-mp3.org no terceiro trimestre de 2017.

Estes serviços de ‘stream-ripping’ permitem aos utilizadores criar ilegalmente cópias offline de áudio ou vídeo a partir de plataformas como o YouTube, que continua a ser o serviço legítimo mais explorado por ‘stream-ripping’. O Spotify é agora o segundo serviço mais afectado, ultrapassando o SoundCloud que foi o segundo mais atingido nos últimos três anos. Deezer, Amazon Music e Tidal foram, entre as outras plataformas, as mais visadas. Simon Bourn, da PRS for Music, afirma que «este relatório mostra que a pirataria musical ainda está muito viva e em alta e que o ‘stream-ripping’ é agora responsável por uma proporção gigantesca do problema global da pirataria“, acrescentando que “os ‘streaming royalties’ representam agora mais de 20% do rendimento dos nossos membros e a popularidade desta actividade ilegal tem um impacto severo e directo nos ‘royalties’ que podemos cobrar por eles a partir de serviços legítimos».
Bourn promete que «serão tomadas todas as medidas possíveis para impedir a existência de serviços de ‘stream-ripping’, a fim de maximizar os royalties que recolhemos para os nossos membros e de assegurar que estes recebam uma remuneração justa pelo seu trabalho», mas deixa o apelo: «Esperamos também que outros que se encontram em posições de responsabilidade na economia digital, incluindo lojas de aplicações, plataformas de software e plug-in, redes de anúncios, YouTube e outros serviços licenciados, desempenhem os seus próprios papéis para impedir que estes serviços ilegais roubem música e privem os compositores e editores de música da sua recompensa legítima». Andrea C. Martin, CEO da PRS for Music, reforça que «desde que esta investigação foi realizada, o mundo mudou para além do que qualquer pessoa poderia ter imaginado, devido à Covid-19“, pelo que a ausência prolongada de receitas de espectáculos ao vivo «significa que as receitas geradas em plataformas digitais legítimas são mais importantes do que nunca».
Por isso, há um par de anos, numa entrevista ao podcast de Steve-O, Wild Ride!, o líder dos Slipknot Corey Taylor afirmou que o baterista dos Metallica, quando encetou, em 2000, uma batalha contra o serviço de partilha de ficheiros Napster, estava totalmente certo em relação ao futuro da música digital e à compensação dos artistas. «Lembro-me de toda a gente se ter atirado a ele por causa disso. E agora, o que têm a dizer? Ele sabia que esta era a direcção que estávamos a tomar». Taylor sublinha que «é um pouco estranho e difícil, porque nos dias de hoje é realmente difícil saber quais dos serviços de streaming compensam realmente os artistas que estão a roubar». E conclui: «É mais importante para mim que as pessoas ouçam a música. Neste momento, fiz uma espécie de paz com o facto de haver vários serviços que nos estão a lixar e, até que a legislação seja realmente aplicada, vão continuar a cobrar-nos a esse ritmo. Julgo que irão aumentar as taxas e os músicos poderão voltar a ganhar a vida com as suas gravações».
OS DONOS DISTO TUDO
Para fechar o círculo e a título de curiosidade, tendo ultrapassado a marca das quatro décadas de existência, Napster ou não, os Metallica continuam a ser uma super-potência: a banda contou mais de mil milhões de streams no Spotify, só em 2020, tendo partilhado um gráfico no seu feed do Instagram que lista as suas estatísticas do ano naquela plataforma, com 1,1 mil milhões de fluxos, 99,3 milhões de horas, 53,3 milhões de ouvintes únicos em 92 países diferentes. «Achávamos que os números do ano passado eram insanos. Vocês superaram-se a si próprios! 99,3 milhões de horas?! Isso é como se alguém começasse a ouvir em 27 de Outubro de 9318 a.C. e nunca mais parasse. Alguém consegue adivinhar qual foi a canção mais tocada este ano, a 128,6M horas? Vocês continuam a ser os fãs mais dedicados do mundo – obrigado por passarem tanto do vosso ano connosco», escreveu a banda. As duas canções mais tocadas foram “Nothing Else Matters” e “Enter Sandman”. Cada uma atingiu um total de meio bilião de streams, muito acima de “Master of Puppets”, com 300.000 streams.