Gente danada faz som danado. Nesta rubrica revemos alguns dos mais extraordinários trabalhos criados por músicos portugueses, devotos de volume e distorção extremos, de paisagens sónicas escuras ou violentas e do Grande Bode…
É comum dizê-lo, como será em todos os países, que o underground metaleiro nacional tem evoluído muito. Mas quem está familiarizado com a cena heavy portuguesa sabe que depois dos picos de intensidade no início dos anos 90 e alguns apontamentos esporádicos na década seguinte, os grandes discos de música extrema portuguesa não surgiam num fluxo constante. Felizmente, na última década, as coisas mudaram e há cada vez mais bandas e lançamentos com padrões bem elevados na composição, na atitude e nos aspectos sónicos, seja nas proezas instrumentais ou no enorme salto nos valores de produção que advieram da democratização das ferramentas de gravação.
Ainda assim, o metal continua a ser um género bastante guetizado em Portugal e há discos que passam despercebidos aos mais desatentos, quando deveriam ser alvos dos maiores louvores. É isso que pretendemos nesta rubrica. Podem consultar a primeira colheita (aqui) e a segunda (aqui). Entretanto, eis mais cinco tremendos discos que merecem a nossa e a vossa atenção…
Em 2011, “Sortilégio dos Mortos” estabeleceu o tom. Em 2014, “Equinócio Espectral” foi uma bomba de devassidão, blasfémia e peso. O seu sucessor, “Parthenogenesis”, o terceiro álbum dos Martelo Negro, mantém os pressupostos estéticos thrash/black, um grande caldeirão sacrílego onde estão combinados Hellhammer, Celtic Frost, Napalm Death, os Entombed e uma certa atitude e cadenciação rock ‘n’ roll – dotado de uma natureza arcaica. Os temas são feitos de riffagem tão esmagadora quanto crua, o peso da sonoridade apodrecida é avassalador. Por simples que soem estas evocações de vileza primordial, conseguir dar-lhes carácter é o truque e se os músicos não revelam pretensões de malabarismo técnico, o groove que conseguem transladar para o disco é qualquer coisa digna de registo. Nota-se a evolução da banda nas composições, com melhores evocações atmosféricas e maior preocupação dinâmica. Ainda assim, o disco retém todo o charme underground dos álbuns anteriores, além do despretensioso humor macabro de sempre. No meio de agressividade estridente de guitarras, o overdrive e corpo de graves no baixo como contraposição, os Martelo Negro soam como se chicoteados por Baphomet, com a bateria a ostentar a precisão e violência de um demoníaco martelo pneumático. Quando se discute o quanto algumas bandas são apenas posers, os Martelo Negro exsudam autenticidade. “Parthenogenesis” foi editado a 17 de Abril de 2019, com o selo Hellprod Records.
As identidades ocultas revelam músicos que, em “Appalling Ascension”, criaram um álbum com um peso sonoro esmagador e um ritualismo que percorre estéticas do brutal death metal, passando pelo sludge, até ao black metal. Em 2017, com o selo 20 Buck Spin na América do Norte e Osmose Productions na Europa, The Ominous Circle criaram um dos discos do ano e da última década dentro das sonoridades extremas. Muitas vozes refereriam-se a este álbum apontando a sombra dos Morbid Angel. Também afinamos esse diapasão, acrescentando que a banda nacional acrescenta ao death das lendas norte-americanas um manto negro de sub frequências que envolve o seu som com tremenda densidade atmosférica. Destaca-se a tempestade de blast beats de “From Endless Chasms”, o groove gigantesco de “Poison Fumes” (favorita pessoal), os solos de guitarra demoníacos de “As The Worm Descends” e a unidade da banda através das várias dinâmicas que se cruzam nos temas ao longo de todo o álbum. No final de 2021, a banda deixou uma mensagem críptica nas suas redes sociais: «Brewing in the pits, darkness awaits». De facto, está na altura de novas trevas lovencraftianas.
“Illvmantithesis”, o segundo EP dos Enlighten é mais um trabalho com o selo Signal Rex. Um registo onde o black metal cruzado com linhas melódicas do death metal ganha um sentido épico nos temas “Shroud Of Ash” e “Pallor”. Porquê a escolha deste trabalho sobre o primeiro, o EP “Phösphorvs Paramovnt” de 2015? Porque aqui permanece a estridência e o rugido violento da dupla nacional (Artur Pacheco nas baterias e Bruno J.S. Correia nos restantes instrumentos e tarefas vocais), mas há maior dinâmica instrumental, e apontamentos mais intrigantes e exóticos nos arranjos, que escapam com maior eficácia às correntes tradicionalistas do género. Dessa forma as desafiantes dissonâncias da banda aproximam-se mais das manifestações de Blut Aus Nord, por exemplo. Há ainda equilíbrios a definir na sonoridade dos Enlighten, mas a honestidade e vigor criativo não deixam de ser notáveis neste registo.
Temas rápidos e curtos, quase todos abaixo dos três minutos, que falam por si, sem artimanhas ou pretextos fingidos. Depois de dois EPs bem recebidos e cinco anos a partilhar palcos com bandas como Terror, Death Before Dishonor, Bane, Comeback Kid e Turnstile, os Shape lançaram o primeiro LP, “Crossing Roads”, via Hellxis Records, em 2015. Como seria de esperar, pelo que o antecede, o álbum é instrumentalmente forte, firme, e encanastra com a voz dura e seca, e até melancolicamente raivosa, do seu frontman. Riffs coesos e mensagens robustas, temas como “Enjoy Life” exemplificam precisamente a banda. Gravado por Miguel “Veg” Marques, nos GeneratorMusic Studios, trata-se do melhor registo dos lisboetas, com o som bem sólido e coeso e a energia da banda usada de forma mais expressiva. Há momentos mais rockers (“Heart In Flames”), há momentos mais emotivos (“Enjoy The Pain”) e há ainda outros mais atmosféricos (“100º”). “Headache”, um instrumental, inicia com um excerto do poema “Lisbon Revisited”, de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. Depois é percorrido por uma arquitectura post rock (que é algo omnipresente no hardcore da banda), até terminar com um sample que questiona a vida, o que podemos tirar dela, e o fatalismo da morte. Frio, agressivo, crude. Na estética e no som, no qual se destaca a vivacidade das guitarras.
O trio formado em Vouzela, distrito de Viseu, estreou-se em 2013. O EP homónimo foi gravado nos Black Sheep Studios, em Sintra, pelas mãos de dois guru nestas andanças, Makoto Yagyu Fábio Jevelim – antes de ambos se terem mudado para os Haus, parceiros ainda em projectos como Riding Pânico, If Lucy Fell ou os mais notórios PAUS. Isto para salientar porque os Memoirs Of A Secret Empire os escolheram para moldarem o seu post rock atmosférico. Acabaram por criar um registo notável. Interpretando os seus quatro temas instrumentais como se fossem literalmente uma jornada e desde o primeiro minuto conquistando a atenção de quem o ouve. “Dawn”, “Sunset” e “Night”, dividida em dois actos. Extremamente bem estruturado e composto, este EP revela sumptuosos crescendos, dinâmicas equilibradas e contrastes explosivos “ao longo do dia”. Foi um categórico preâmbulo para “Vertigo”, o LP editado em 2016, onde a banda assumiu as texturas pesadas do doom metal de forma mais declarada.
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