Se “Renounce” e “Erosion” foram construções circulares, “FÆMIN” é o centro megalítico da carreira dos Process Of Guilt – um punho no rosto de deuses esquecidos.
Por mais que as bandas o relativizem, há sempre um risco no trabalho de pós produção feito à distância – a pessoa encarregue de o fazer, sem a pressão da banda, pode limitar-se a cumprir uma formalidade e retirar aos temas a alma que ficou impressa nas captações. “FÆMIN” é um exemplo de quando as coisas correm bem por dois motivos: dentro do género, o trabalho de Andrew Schneider estava a tornar-se seminal e, depois, seria difícil esvaziar de alma um álbum como este terceiro longa-duração dos alentejanos.
“FÆMIN” é um monumento de peso colossal e com uma solidez de construção que não demonstra qualquer tipo de fissuras. Em comparação com os álbuns anteriores ganha em todas as vertentes sónicas – quer em pressupostos técnicos, quer estruturais – por um sentido mais cru, com menos processamento nas guitarras e um tamanho enorme das baterias. Certamente que aqueles que se fidelizaram com a banda devido a um sentido mais melódico poderão ter manifestado, na altura, descontentamento com a estética deste álbum, mas não podiam anunciar-se surpresos, pois o álbum anterior já caminhava neste sentido. E no fundo, este é um álbum com composições e som muito mais fiéis ao que a banda mostrava ao vivo há um par de anos.
Oriundos de uma Évora, onde ainda hoje subsistem poderosos artefactos de quando o mundo e a sua arte eram mais rudes, os Process Of Guilt fizeram um percurso em ascensão desde as suas duas primeiras demotapes (“Portraits Of Regret” e “Demising Grace”), até chegarem agora ao seu terceiro álbum. “Fæmin” é a confirmação de todas as expectativas de uma banda que elevou padrões no underground português e tem conseguido aclamação externa no submundo do doom. Os guitarristas Hugo Santos e Nuno David contaram-nos a experiência de um álbum cuja imponência o tornou num monólito que poderia estar erigido no círculo neolítico dos Almendres.
A criatividade não surgiu do nada. Batalhámos muito pelo riff.
Hugo Santos
Poderia dizer-se que há um percurso até ao “Erosion”, que se tornou o vértex no som da banda, e outro depois?
Hugo Santos: Subescrevemos um pouco esse raciocínio. O “Renounce” foi um disco gravado quase a posteriori – houve a oportunidade de gravar um disco e juntamos uma série de coisas que tínhamos há muito tempo, quando já tínhamos mesmo outras referências. Com o “Erosion” tivemos oportunidade de pensar tudo do zero. É um álbum que nos representa muito mais e que foi feito com uma melhor noção daquilo que queríamos.
Nuno David: As demos e o primeiro álbum serviram mesmo para experimentarmos enquanto banda, talvez inconscientemente, a preocupação não era muito ter uma assertividade musical, mas descobrir. Foi a partir do “Renounce” que conseguimos desenvolver uma atitude mais crítica. Depois demorou muito a sair e ao vivo as coisas já não nos faziam sentido da mesma maneira, estávamos a desenvolver outra dinâmica.
Santos: Considerando os clichés que nos pontuavam, eu veria mesmo o “Erosion” como o primeiro álbum, em que se encontra a banda muito mais decalcada, mais purificada. Mesmo assim, já não estávamos satisfeitos com muitas coisas que procurámos mudar agora no “Fæmin”.
Essa procura e mudança manifestou-se como no “Fæmin”?
Santos: É o som da banda a definir-se. Não consigo fazer-te ter uma ideia de quantos riffs, quantas coisas… queremos que o álbum tenha um sentido, uma toada, e desta vez demorámos meses e meses a experimentar riffs e riffs, a limá-los com um pendor muito mais rock, vá lá, muito mais cru. Demorámos muito tempo a descobrir a toada do disco, quais os tipos de notas, os tipos de melodias.
David: Foi o primeiro disco em que discutimos tudo: o tipo de som, o tipo de voz…
Santos: Muito tempo gasto com o baixo, com a bateria… Estávamos muito preocupados em fazer algo que nos soasse bem e que nos continuasse a fazer sentido na “semana a seguir”. Só quando ficámos cientes disso fomos gravar. Concentrámos a nossa expressão toda neste álbum.
Foi fácil manter a motivação num processo exaustivo de repetição e revisão como esse?
Santos: Depende. A criatividade não surgiu do nada, batalhámos muito pelo riff.
David: Trabalhámos com a certeza de que tivéssemos um timing apertado para fazer as coisas, elas não iriam sair bem – seria optar pelo facilitismo. Para ser mais suave dividimos o trabalho em períodos que se repetem ciclicamente: composição, gravação e tocar ao vivo. Quando voltávamos a estúdio tínhamos tido tempo de rever o que estava feito com outros ouvidos. Temos versões das malhas do disco completamente diferentes.
Santos: Fomos depurando tudo, até dizer «temos aqui qualquer coisa». Isso acabou por fazer com que agora consiga ouvir regularmente o disco, quando nos outros trabalhos, o processo de edição, misturas, etc. acabava por me saturar dos álbuns ao ponto de não ser capaz de os ouvir.
Nas estruturas melódicas, nesse trabalho do riff, nota-se a busca por alguma dissonância, por desconforto – isso é uma extensão conceptual ou simplesmente expressividade musical?
Santos: Aquilo que designamos por toada do disco, o ambiente que queríamos, começou a ser definido cedo. Tínhamos uma música ou outra, a certa começaram a surgir nomes, e apareceu o “Fæmin”, a sugerir algo mais negro, mais monolítico, mesmo dum ponto de vista lírico. Construímos a música quase toda e foram aparecendo esses detalhes líricos. Sabíamos que teriam que existir notas para compensar a parte vocal que, ainda não havia, mas seria inserida.
David: Trabalhou-se as letras da mesma forma que os arranjos, a cor final do disco.
Santos: Essas dissonâncias e notas estranhas que vão pontuando as músicas são, de facto, para vincar o contexto lírico. Até a própria voz serve como mais um elemento musical, ao invés da canção com versos A e B, depois refrão, está antes a funcionar como mais um elemento de pressão em determinados momentos, e é importante que as palavras ditas em determinado momento gerem essa pressão também – para ser aquilo que é, pesado e com o poder orgânico que queremos imprimir. É mais interessante procurar uma abordagem musical que desenvolva dinâmicas assim, que tenham groove – a nossa alegria em tocar as músicas está no groove que encontramos nelas.
Em termos práticos de som, gravação, captação… que diferenças houve neste álbum em relação com os registos anteriores?
David: É ponto assente que queríamos mudar muita coisa, inclusive o próprio processo de gravação. Baixo e bateria teriam que ter protagonismo como base e soar bem, para depois inserirmos o nosso som de guitarra. Depois foi um processo repartido, gravámos baterias num sítio, as guitarras noutro, a mistura noutro ainda. Foi bom ter o tempo que referimos, porque permitiu-nos delinear um plano e segui-lo à risca. Além de que, através da experiência já tínhamos mais aptidão para esse trabalho.
Santos: Ainda que um som meio ranhoso, pudemos fazer uma pré-produção, que nos permitiu um maio estudo e um maior profissionalismo. O esforço partiu de uma interpelação recorrente nos concertos, em nos diziam «impecável, está muito melhor que o CD». Fizemos uma pesquisa por álbuns que tínhamos, que tivessem o som que queríamos ter. Foi por aí que chegámos ao Andrew Schneider – ele deu-nos as suas dicas, de como queria as coisas captadas, etc. E nós, dentro das possibilidades que tínhamos, tentámos corresponder a tudo, mesmo a nível de microfonia, uma procura de sistemas compatíveis com os desejos dele, que trabalha em Pro Tools. Queria tudo captado o mais cru possível, com resolução em 48 kHz.
David: Também viu a sala onde ia ser captada a bateria e deu algumas sugestões, sem ser imperativo, claro.
Santos: O ideal teria sido gravar no estúdio dele [Translator Audio], onde tira sons de bateria brutais… Acabámos por gravar as baterias durante 4 dias em Paço d’Arcos, nos MDL com o André Tavares, e depois baixo, guitarras e voz em Évora, nos estúdios Quinta Dimensão com o João Bacelar e o Fernando Mendes. Depois mandámos-lhe as captações que ele trabalhou durante uma semana. Necessitou de um dia para acertar a mistura, a partir do segundo dia o que foi vindo, salvo uma ou outra exceção, estava sem nada a apontar, tudo como queríamos. Depois enviou-se a masterização para o Collin Jordan [nos estúdios Boiler Room].
E trabalharam o som de guitarra de alguma forma específica?
Santos: O Andrew queria o máximo de coisas possível. Gravámos com a Road King [Mesa Boogie], que tem os speakers na vertical, ou seja, cada coluna dá um som diferente [quer nos agudos, quer nos graves], isso permitiu enviar-lhe áudios separados, com cores diferentes.
É um mais ou menos consensual que dois guitarristas devem procurar ter o som diferente, usando vocês as mesmas cabeças de amplificação, como trabalham isso?
David: As próprias guitarras são determinantes nesse processo, como tu tocas e as opções que fazes na guitarra, garantem suficientemente esse som diferente. E depois há algo mais profundo, a personalidade de cada músico. Contudo, mesmo com os mesmos modelos, um amplificador permite trabalhar respostas diferentes de som. Diria que o meu som está numa região mais nos médios-agudos e a do Hugo nos médios-graves.
Santos: O 5150 tem bom espectro de equalização, que permite trabalhar essa distinção. É um amp que foi pensado para o shred à grande e não é isso que lhe acontece connosco… mas é um amp com bom som, tem um som encorpado e muito distinto. Por muito que goste de outros amplificadores já estou tão habituado a tocar com este, que sei precisamente onde pode chegar ao que queremos sonoramente, dentro daquela jarda e do tone que tem. Sem dúvida que há um certo virtuosismo na cabeça de quem pensou aquilo.
David: Especialmente se não exagerares a puxar pela saturação/overdrive do amp, consegues apanhar nuances muito boas da própria guitarra e fazê-la aparecer mais. Confesso que se tivesse dinheiro gostava de ter um Sunn…
Santos: Sim! Especialmente depois de ter visto Goatsnake ao vivo…
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