A Metonímia do Místico Orfeão Sónico

Singularmente, Um Corpo Estranho e Saturnia, são vibrantes proposta no rock alternativo português. Contiguamente, conquistaram o pleno direito à antonomásia de O Místico Orfeão Sónico, como pudemos testemunhar no Cine-Teatro São João, em Palmela.

É Umberto Eco que diz, em “O Pêndulo de Focault”, que quando queremos encontrar conexões entre ocorrências, ideias ou figuras, ainda que absolutamente díspares, que as conseguimos fazer. Que o próprio mundo se torna num vértice de pontos infinitos, abrindo coincidências e possibilidades teóricas numa maníaca e incessante rede pseudo-lógica. Pois bem, nesse sentido, seria impossível não começar por referir que a ansiada primeira vez que vimos, ao vivo, O Místico Orfeão Sónico de Um Corpo Estranho e Saturnia, foi no Cine-Teatro São João, em Palmela. Nem importa muito determinar qual a figura joanina. O Baptista? O Evangelista? O da Cruz? Qualquer um deles com traços de alienação, todos meio… Místicos.

Quanto à intencionalidade de ver e criar conexões a partir de um único ponto. Com o surgimento da guitarra eléctrica e o rock ‘n’ roll, a partir da década de 50, a música tornou-se uma vibrante tapeçaria, com ligações entre milhares de pontes. O folk com o clássico, o popular com o vanguardista, o branco com o negro, combinações improváveis de escalas e estruturas rítmicas, etc. E o rock psicadélico (e o prog) será a afirmação mais contundente desta cabala sónica. Aproveito a boleia do Carlos Garcia: «O cruzamento entre os combos tradicionais de guitarra, baixo e bateria com os ambientes criados por toda uma nova leva de tecnologia de sintetizadores, o desejo de criação de espaços emocionais na música além da vibração dançável, a descoberta de toda a riqueza da música oriental com escalas e harmonias que se regem por princípios completamente diferentes das ocidentais. Tudo isso alimentado pelas propriedades dissolutivas das novas substâncias enteogénicas, com a sua capacidade de dissolver limites e fronteiras». Foi nesse mundo coloridamente especulativo que chegámos a este momento, no dia 21 de Maio de 2022.

Com um backline desprovido de pretensiosimos e elegantemente eficaz, o peso de “A Torre”, o ritmo bem candenciado de “A Velha Carruagem” e de novo o peso de “A Força” acolhem-nos para dar início à viagem de fusão sónica que resultou num álbum que merece estar na galeria dos mais notáveis trabalhos da música portuguesa. Luís Simões com uma Italia Rimini 6; Pedro Franco com uma Les Paul Junior, a qual irá alternar com uma Telecaster c/Bigsby – pareceu-nos uma rara ’72 Custom; e o João Mota com um Squier de escala-curta, um surpreendentemente insuspeito Bronco. Simões estava ligado em DI, para melhor controlar os samples que dispara e a alternância entre a a guitarra e o sitar; Franco usou um Crate Blackheart, a mandar os seus 15 watts para uma Marshall 1912; e Mota ligou-se a um Trace Elliot Series 6 (GP7, pareceu-nos).

Um puto é capaz de fazer as cenas mais cringe no TikTok, como se não fosse nada com ele, para milhares de pessoas. Um tipo com o andamento do Simões, que além da sua carreira leva anos de estudo no instrumento e horas de ensaios, ainda demora três ou quatro temas a soltar-se. Quem nunca? Naturalmente que nos referimos ao estado de comodidade em palco, a imersão no momento e a contextualização com a monição e os outros colegas músicos. Porque toda a banda entrou algo tensa, mas sem comprometer a performance global. Também porque o som demorou algo a estabilizar os seus equilíbrios, a nossa percepção foi afectada por alguma hiperabundância de médios-altos, distraindo-nos do groove natural dos temas que, através dos acertos do FOH, cresceu progressivamente no concerto.

E foi em “Para Lá do Fim do Mundo” que chegámos ao cerne da questão, com os drones, a slide guitar, a sitar. Os Popol Vuh e os Tantra, o kraut e o prog psicadélico. A transição para “O Covil” (o momento maior do concerto e do disco) é feita através de uma jam alongada, para depois tudo soar estrondoso e Gonçalo Mota atingir o zénite da sua actuação, conduzindo os contrastes dinâmicos de forma esplêndida, como se o músico se tivesse apoiado no ponto fixo universal, num perfeito agente pendular e o arquetípico que possibilitou o sincretismo entre Um Corpo Estranho e Saturnia, naquele palco, naquele momento. Um papel que iria repetir em “Fonte Sado”, com foco no vibrante crescendo para o epílogo da canção, que foi outro dos momentos mais altos desta noite, tal como sucede no disco. O tema foi preambulado por “Afinação” e “Ermita”, que permitiram também espaço para jam, com a força das guitarras de Pedro Franco e as melodias ali pelo 12º trastes de João Mota a solificarem os sons imateriais de Simões. Após aquilo que foi um instante nos cosmos, que se passou repleto de canções com variações melódicas de enorme sofisticação e suavidade, o blaster rocker que é “Sete de Bastões” fechou o concerto como um ouroboros. Facilmente se repetiria.

Felizmente, houve lugar a um curto e poderoso encore, através de “Pulso” (original de Um Corpo Estranho) e “Keep It Long” (um dos temas dos mais recente álbum de Saturnia). Neste último… Os solos de guitarra com reverse delay podem ser (e são-no na maior parte das vezes) algo absconsos. Aqui, foram explosivamente coordenados com a secção rítmica e firmaram a sensação de que, mesmo nos momentos mais livres, são escassas, muito, as notas dadas a mais (no disco são, basicamente, nenhumas) pelo Místico Orfeão Sónico.

Setlist: Desafinação; A Torre; A Velha Carruagem; A Força; Para Lá do Fim do Mundo; O Covil; Afinação; Ermita; Fonte Sado; Sete de Bastões; Pulso; Keep It Long.

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