Peter Gabriel, Passion

O extraordinário trabalho musical de Peter Gabriel, criando pontes entre o Ocidente e o Médio Oriente, para o filme que Martin Scorsese (um dos seus mais espontâneos e melhores) construiu a partir do romance teológico de Nikos Kazantzakis.

Em 1988, em resposta sonora a um argumento gráfico, um génio definiu as barreiras daquilo a que hoje chamamos world music e até new age. Muitos anos depois, a partir daqui, continuaram a ser moldados trabalhos como, por exemplo, os de Sephiroth ou aqueles lançados por Ulf Söderberg em nome próprio. Mais mediática, a banda sonora que John Debney escreveu para o filme “The Passion Of The Christ”, de Mel Gibson, bebeu directamente deste disco, para não falar no que a sua estática despoletou no som de Bredan Perry e Lisa Gerrard a solo e nos Dead Can Dance, entre imensos outros.

Este álbum criou essa definição imperialista britânica de “world”, do som que é feito fora dos moldes pop do mundo ocidental. Por coincidência, tal como o próprio cristianismo, apoderou-se de elementos que lhe eram externos e aculturou-os, emprenhando-os da sua própria força estética. Portanto, ao mesmo tempo, criou a fusão entre ambas as correntes, entre todas as correntes, fez ponte entre mundos – até pelos músicos que trouxe para esta aventura e ganharam reconhecimento junto dum público maior, como foi o caso de Nusrat Fateh Ali Khan, L. Shankar, Baaba Maal e, claro, Youssou N’Dour – trazendo, mesmo para as composições, inserções de peças tradicionais da Arménia, Curdistão ou Egipto.

É certo que, a partir do momento que abandonou os Genesis, Peter Gabriel iniciou uma procura também progressiva, no sentido do termo, mas fora dos moldes do rock, e os seus trabalhos tiveram sempre demarcada essa busca pelo som universal humano. No início, excêntrica nas estruturas de ritmo e melodia até abraçarem uma certa sobriedade tocada pelo minimalismo com que o britânico escreve actualmente.

Mas aqui, no meio da sua carreira a solo, surgiu este trabalho que é um marco, um padrão de conquista musical único. A própria score serviu o filme “The Last Temptation Of Christ”, de Scorsese, duma forma perfeita. Pela fusão de características sonoras modernas e tradicionais, eléctricas e espirituais, a música corporiza a dicotomia do brilhante romance teológico de Nikos Kazantzakis. Foi a segunda banda sonora da carreira de Peter Gabriel e o seu oitavo trabalho a solo. Foi originalmente intencionado apenas para musicar o filme, mas Gabriel apaixonou-se pelo projecto e passou depois vários meses a desenvolvê-lo para editar o álbum como seu em vez de limitá-lo a OST.

Pelo impacto que, abraçando essas duas plataformas, este trabalho teve na forma como tantos procuram pensar a música, é um disco incontornável, algo que acreditamos que qualquer verdadeiro amante de música devia ter na sua colecção. Há poucas obras no mundo que harmonizem teologia, filosofia, antropologia, cinema e música. Muito poucas. Já agora, o livro permanece também um vibrante documento extra cânone, cujo prefácio aqui deixamos transcrito…

Μου δώσατε μια κατάρα, Άγιοι πατέρες, σας δίνω κι εγώ μια ευχή: Σας εύχομαι να ‘ναι η συνείδηση σας τόσο καθαρή, όσο είναι η δική μου και να ‘στε τόσο ηθικοί και θρήσκοι όσο είμαι εγώ

A essência dual de Cristo – o anseio tão humano, tão sublime do homem de alcançar Deus; ou, para ser mais preciso, de voltar a Deus e de com ele se identificar -, essa essência sempre foi para mim um mistério profundo e inescrutável. Essa nostalgia por Deus, ao mesmo tempo tão real e tão insondável, abriu em mim grandes chagas e também fez brotar poderosos mananciais. Desde a adolescência, a minha principal aflição e a origem de todas as minhas alegrias e tristezas foram a batalha incessante e impiedosa entre a carne e o espírito. Convivem dentro de mim as sombrias forças imemoriais do Mal, as humanas bem como as pré-humanas. Estão também dentro de mim as forças luminosas, tanto as humanas quanto as pré-humanas, de Deus. A minha alma é a arena em que esses dois exércitos se encontraram e se entrechocaram. A agonia foi intensa. Eu amava o meu corpo e não queria que ele perecesse; amava a minha alma e não queria que ela se corrompesse. Lutei muito para conciliar essas duas forças primevas, tão opostas entre si, para fazer com que elas percebessem que não são inimigas, mas sim, companheiras, de forma que elas pudessem alegrar-se na harmonia e que eu também pudesse, com isso, alegrar-me. Todo o homem participa da natureza divina tanto no seu espírito quanto na sua carne. É por esse motivo que o mistério de Cristo não é simplesmente um mistério exclusivo de um credo específico: ele é universal. Eclode em todos o combate entre Deus e o homem, acompanhado do anseio pela reconciliação. Na maioria das vezes é um combate inconsciente e efémero. Uma alma fraca não tem a capacidade de resistir à carne por muito tempo. Torna-se pesada; transforma-se ela própria em carne, e a luta termina. Entre os homens responsáveis, homens que dia e noite mantêm os olhos concentrados no Dever Supremo, o conflito entre a carne e o espírito irrompe sem tréguas e pode estender-se até à morte. Quanto mais fortes a alma e o corpo, mais frutífero será o combate e mais ampla a harmonia final. Deus não ama as almas fracas e as carnes flácidas. 0 Espírito quer enfrentar uma carne que seja forte e que lhe ofereça resistência. É ave carnívora, dotada de fome insaciável; ela devora a carne e, ao assimilá-la, faz com que desapareça. A batalha entre a carne e o espírito, a rebeldia e a resistência, a reconciliação e a submissão, e finalmente – o supremo objectivo do combate – a união com Deus. Foi esse o árduo caminho que Cristo palmilhou, a ascensão que ele nos convida a tentar, seguindo pela sangrenta trilha que nos deixou. É este o Dever Supremo do homem que luta: partir na direcção do cume altivo que Cristo, o primogénito da Salvação, atingiu. Por onde podemos começar? Se quisermos ser capazes de seguir o seu exemplo, será preciso que tenhamos um profundo conhecimento do seu conflito; que revivamos a sua agonia: a sua vitória sobre as ciladas do mundo, a sua renúncia às grandes e pequenas alegrias dos homens e a sua ascensão de sacrifício em sacrifício, de prodígio em prodígio, até ao apogeu do martírio, a Cruz. Jamais acompanhei a tremenda jornada de Cristo até o Golgotha com tanto terror; jamais revivi a sua Vida e Paixão com tanta compreensão e tanto amor quanto nos dias e noites em que escrevi “A Última Tentação de Cristo”. Enquanto registava esta confissão da angústia e da grande esperança da humanidade, ficava comovido ao ponto dos meus olhos se encherem de lágrimas. Nunca antes eu sentira o sangue de Cristo cair gota a gota em meu coração com tanta suavidade, com tanta dor. Para poder se alçar até à Cruz, o ápice do sacrifício, e até Deus, o ápice da imaterialidade, Cristo passou por todos os estágios que o homem que luta tem de atravessar. É por esse motivo que o seu sofrimento nos é tão familiar; é por isso que participamos dele e é por isso que a sua vitória final se assemelha tanto à nossa própria vitória futura. Aquela parte da natureza de Cristo que era profundamente humana ajuda-nos a compreendê-lo, a amá-lo e a dedicarmo-nos à sua Paixão como se a nossa fosse. Se dentro de si Cristo não tivesse esse cálido elemento humano, ele jamais conseguiria tocar os nossos corações com tanta segurança e ternura; não conseguiria tornar-se um modelo para as nossas vidas. Nós lutamos, vemos que ele também luta, e nisso encontramos força. Percebemos que não estamos totalmente sós no mundo: ele combate ao nosso lado. Cada momento da vida de Cristo é um conflito e uma vitória. Ele superou o encanto irresistível dos simples prazeres humanos; superou as tentações, transubstanciou incessantemente a carne em espírito e elevou-se. Ao atingir o topo do Golgotha, ainda galgou a Cruz. Mesmo ali, porém, a sua luta não estava terminada. A tentação – a última tentação – esperava por ele na própria Cruz. Diante dos olhos esmorecidos do Crucificado, o espírito do Mal, num Lampejo momentâneo, desdobrou a visão ilusória de uma vida tranquila e feliz. Pareceu a Cristo que ele havia optado pela estrada amena e sossegada dos homens. Casara-se e tivera filhos. As pessoas amavam-no e respeitavam-no. Agora, velho, sentado ao portal da sua casa, ele sorria com satisfação quando recordava os anseios da sua juventude. Como fora sensato, que esplêndida decisão tomara ao escolher o caminho dos homens! Que insanidade ter desejado salvar o mundo! Que alegria ter escapado das privações, das torturas da Cruz! Foi essa a última tentação, que surgiu num lampejo para perturbar os momentos finais do Salvador. Entretanto, Cristo imediatamente sacudiu a cabeça com violência, abriu os olhos e viu. Não, ele não era um traidor, glória a Deus! Não era um desertor. Cumprira a missão que o Senhor lhe confiara. Não se casara, não vivera uma existência feliz. Alcançara o extremo sacrifício: fora pregado à Cruz. Contente, ele fechou os olhos. E ouviu-se um terrível brado de triunfo: Está consumado! Em outras palavras: Cumpri meu dever, estou a ser crucificado, não caí em tentação… Escrevi este livro porque desejava oferecer um modelo supremo ao homem disposto a lutar; queria mostrar-lhe que ele não deve temer a dor, a tentação, ou a morte, porque todas as três podem ser superadas; todas as três já foram superadas. Cristo sofreu a dor, e desde então a dor foi santificada. A Tentação esforçou-se até ao último instante para desviá-lo do caminho, e a Tentação foi subjugada. Cristo morreu na Cruz, e naquele instante a morte foi para sempre derrotada. Cada obstáculo na sua jornada tornou-se um marco, uma ocasião para maior regozijo. Temos agora diante de nós um modelo que nos ilumina o caminho e nos dá força. Este livro não é uma biografia; é a confissão de todos os homens que lutam. Ao publicá-lo, estou a cumprir o meu dever, o dever de alguém que muito lutou, que foi muito amargurado pela vida e que nutriu muitas esperanças. Tenho certeza de que todos os homens livres que lerem este livro, tão repleto de amor como é, amarão a Cristo mais do que antes, com um amor mais profundo do que antes.

Nikos Kazantzakis

Um pensamento sobre “Peter Gabriel, Passion

Leave a Reply