O Barroco de Pergolesi e o Romantismo de Szymanowski, duas emocionalmente arrasadoras e distintas perspectivas do comovente poema que descreve o sofrimento de Maria diante da Cruz.
O poema latino Stabat mater dolorosa, há muito atribuído a Jacopone da Todi (frade franciscano da Úmbria do século XIII) é um comovente relato da dor da Virgem diante da Cruz. Pertence à tradição das ‘sequências’ latinas – versos comprimidos, métricos, rimados sobre temas religiosos. Apesar do seu rigor formal, o poema explode de tormento e dor lacerante e o seu esquema de rimas (aab ccb) explora pungentemente os efeitos da antecipação e da memória.
O sentimento maternal que impregna o trabalho ressoa para lá do fervor religioso, fazendo eco das angústias da maternidade. Em Nápoles, particularmente, a sua ressonância tornou-se abismal, diante das elevadas taxas de mortalidade infantil na época em que se popularizou a composição do poema e quando a cidade viu serem construídas duas centenas de igrejas devotadas a Maria.
Tradicionalmente, fraternidades leigas cantavam a sequência em procissões religiosas solenes, mas mais tarde foi incorporada na liturgia para a Festa das Sete Dores da Santíssima Virgem Maria. As origens da adaptação de Giovanni Battista Pergolesi (1710 – 1736) estão envoltas em mistério. A tradição diz que escreveu a obra pouco antes de morrer para uma nobre confraria napolitana: os Cavaleiros da Virgem das Sete Dores. Provavelmente, foi destinado ao dia da sua festa epónima na igreja de San Luigi di Palazzo, onde o patrono de Pergolesi – o Duque de Carafa di Maddaloni – tinha uma capela privada.
Talvez se destinasse a substituir a adaptação prévia de Alessandro Scarlatti para a mesma confraria, uma vez que ambas as obras se destinam a recursos semelhantes, como nos diz a plataforma Classical Music (abre novo separador): duas vozes a solo, cordas e basso continuo (um padrão de composição no período Barroco, no qual uma linha de baixo e uma progressão de acordes criavam a estrutura harmónica).
Pergolesi
Estilisticamente, Pergolesi faz eco das melodias líricas e texturas transparentes do seu cómico intermezzo La serva padrona. Particularmente controversos para os ouvintes do século XVIII foram os ritmos de dança, as síncopes e os motivos decorativos que pareciam trivializar o texto carregado de dor. Ainda assim, a adaptação de Pergolesi é considerada por muitos, nos nossos dias, como a mais rica na linguagem musical e expressividade poética. No dueto de abertura, por exemplo, as suspensões chorosas e a tónica de F menor estabelecem o tom assombroso; Christian Schubart associou mais tarde essa tónica a “gemidos de miséria e a ânsia da sepultura”, enquanto Haydn, Beethoven e Liszt a aliaram à passio (sofrimento).
No segundo movimento, Cuius animam gementem, ritmos descompassados, distorcem deliberadamente as acentuações naturais do texto para evocar a lâmina que perfura a alma da Virgem, enquanto trilos azedos transmitem a sua angústia. Do mesmo modo, em justaposição aos ritmos de dança de Quae moerebat, as sincopações e os trilos usados sugerem turbulência emocional. Cores cromáticas e dinâmicas oscilantes pintam a Eja mater, momento no qual o suplicante implora para lamentar-se juntamente com Maria. Depois, em Fac ut portem, os ouvintes partilham as torturas da paixão de Cristo, à medida que a música se debruça com dissonâncias, saltos abruptos, silêncios inquietantes e ritmos perfurantes. E depois, incessantes e decadentes motivos melódicos escorrem no movimento de encerramento – Quando corpus morietur – num eterno fluxo de lágrimas. Esta é uma meditação dolorosa sobre a morte e o sofrimento de um compositor que morreu aos 26 anos de idade, estando já aqui demasiado consciente da fragilidade da vida.
Szymanowski
A música Barroca, como a arte, aliás, não é passível de conquistar aqueles que admiram mais a imponência da austeridade ou o sentido épico do Romantismo, por exemplo. Nesse caso, a adaptação de Karol Szymanowski deve ser considerada e, pela nossa parte, possui outro tipo de poder. Karol Szymanowski (1883 – 1937) nasceu em Tymoszówka, na Ucrânia, e é considerado um dos fundadores da música moderna da Polónia. Construiu o seu trabalho partindo de Chopin e Scriabin. Porque considerava que a música devia ser religiosa, mas não exclusivamente litúrgica (aspecto em que se aproxima de certa forma de Pergolesi), optou invariavelmente pelo polaco em detrimento do Latim. De acordo com muitos musicólogos, o seu Stabat mater foi o trabalho onde usou essa opção de forma mais triunfal
O Stabat mater de Szymanowski abre espaço a uma poderosa execução, simples e extraordinariamente ampla, com coro arrebatador e um soprano solista de voz comovente e pura. A condução de Karol Stryja que propomos é particularmente bem sucedida ao exaltar o arrojo harmónico de Szymanowski neste trabalho. Incomparavelmente menos luxuoso que o Stabat mater de Pergolesi, este trabalho possui outra elegância, maior voluptuosidade e um estudo mais sombrio do sofrimento, dando-lhe uma perspectiva mais épica e ao mesmo tempo barbárica, glorificando assim a dor.