Arvo Pärt, Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem

A espartana, simples e deslumbrante obra de Arvo Pärt é a mais transcendental visão artística da Paixão de Cristo. Eis a arrebatadora e clássica interpretação da Hilliard Ensemble com Paul Hillier.

Uma das obras mais extensas de Arvo Pärt, Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem é um dos exemplos mais genuínos do seu tintinnabuli – estética que é caracterizada por uma voz que harmoniza em arpégio a tríade tónica e uma segunda que se move em intervalos diatónicos. Pärt começou a planear esta composição no final dos anos 70, quando ainda se encontrava na Estónia. De acordo com o compositor, a ideia de compor uma encenação da Paixão surgiu-lhe durante uma Quaresma. A estrutura principal da composição foi criada em apenas dois dias e esse esboço era parcialmente monofónico. Após a sua emigração, Pärt recebeu uma comissão da Bayerische Rundfunk e reviu exaustivamente os seus esboços. A obra foi concluída em 1982 e estreada em Munique, em Novembro do mesmo ano, pela Bavarian Radio Chorus, conduzida por Gordon Kember. O álbum “Passio”, gravado pela Hilliard Ensemble com Paul Hillier foi lançado em 1988, pela ECM, trazendo um maior reconhecimento internacional à obra.

O texto de “Passio” é, naturalmente, extraído do Evangelho de São João e inclui partes narrativas e discurso directo. As palavras do Evangelista, que constituem a maior parte do texto, são divididas entre quatro cantores (soprano, contratenor, tenor e baixo) e acompanhadas por quatro instrumentos (viola, oboé, violoncelo e fagote). Dessa forma, o discurso do Evangelista pode receber uma grande variedade de variações tímbricas. As intervenções atribuídas a São Pedro, aos sumos sacerdotes, servos e outras personagens, bem como a multidão, são cantadas pelo coro, por vezes acompanhadas por órgão. A parte de Jesus é cantada por um baixo – o tipo de voz masculina mais grave e raro -, enquanto as palavras de Pôncio Pilatos são cantadas por um tenor. Ambas são acompanhadas por órgão.

A parte do Evangelista segue uma estrutura rigorosa. Arvo Pärt divide este texto em quatro secções. Cada secção começa com uma voz a solo diferente, que se une gradualmente a outras vozes e instrumentos, até se atingir uma configuração completa. Depois inicia-se um processo de inversão: reduzindo as vozes uma a uma, até que a textura se torna gradualmente menos densa, regressando a uma única voz. Há um processo semelhante aplicado em cada secção. O som das duas partes a solo inclui características que correspondem ao carácter e ao papel de Jesus e Pôncio Pilatos. A de Jesus é duas vezes mais lenta do que as outras, simbolizando a eternidade dessa forma. O dilema interno de Pôncio Pilatos é expresso pela politonalidade – usando simultaneamente teclas diferentes na melodia e vozes de tintinnabuli.

Esta não é uma composição que deva ser tomada de ânimo leve. Obras corais como esta não são propriamente melódicas e animadas. “Passio” é uma composição estruturalmente minimal e fortemente etérea. Todavia, é facilmente uma das mais apaixonadas (e apaixonantes) de Pärt. Ao contrário da maioria das interpretações da Paixão Segundo João, esta é bastante simples – nunca simplista – e espartana. Quase não há momentos de tensão. Mas também há muitos momentos de enorme e pura beleza. As melodias não são necessariamente memoráveis, mas essa não é a intenção. O foco é o texto evangélico e por isso os solistas e o coro desempenham um papel verdadeiramente preponderante e, no final, arrebatador. Com a repetição da audição, vão conquistar a capacidade de conseguir imergir totalmente nesta narrativa e aí, cristãos ou não, descobrir uma das mais comoventes obras musicais já escrita. Uma verdadeira experiência de transcendência.

Na verdade, e parafraseando Matthew Westphal, seria de esperar que o estilo meditativo e desprendido de Pärt – com pouca distinção entre consonância e dissonância ou emoção explícita – não se adequasse muito bem a uma Paixão de 70 minutos em latim, sem sequer uma pausa entre os andamentos. No entanto, se permitem a insistência, se conquistarem a capacidade de o ouvir com calma e atenção, esta obra é um portal para esse que foi um dos eventos centrais da crença cristã e na história do mundo. Quando Jesus canta (lentamente, numa escala simples de cinco notas) o versículo 19:30, «Está consumado», e o quarteto que representa o Evangelista entoa numa única nota, «E, inclinando a cabeça, entregou o espírito», é de partir o coração. O enorme crescendo do coro através da oração final de nove palavras é absolutamente deslumbrante.

De facto, o absoluto poder e peso do «Amen» final ou da entoação de abertura «Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem» valeriam, por si só, a escuta desta magnífica obra. Na nossa opinião, a melhor interpretação artística da Paixão Segundo João, superando mesmo a que será a mais célebre, a de Bach. Para um mundo que ainda detenha capacidade de abertura ao mistério, ao místico e ao deslumbramento…

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