Neo Genesis

Neo Genesis

Uma contemplação do quarto Evangelho, à luz de “Neo Genesis”, o segundo tomo de “The Unveiling”, o teológico álbum dos Why Angels Fall.

Nas escrituras de João afirma-se esta realidade: que Cristo é o Filho de Deus, com o Verbo e como Verbo desde o princípio de tudo, é em Jesus que se reflecte a Luz de Deus e Ele, o Filho, é o caminho para o Pai. Na Encarnação, o divino participa no ser humano e permite o acesso relacional de Deus ao homem, sob uma forma interpessoal e intimamente paralela – onde o Outro Absoluto não é apenas uma experiência situada num plano inteligível e se torna uma realidade sensível, uma realidade de encontro.

Na fé hebraica descobrimos um Deus do povo, de comunhão, que no Novo Testamento, através de Cristo, adquire uma dimensão pessoal – íntimo de cada ser humano, torna-se um Deus de relação, o Deus de alguém, o Deus de Jesus. Sendo israelita, Jesus não falou de um novo deus, mas do Deus de sempre, o Deus da fé hebraica, embora tenha falado de uma maneira nova desse Deus que conhece em plenitude e intimidade. Não há a pretensão de ensinar sobre um deus metafísico, mas de uma profundidade maior – um Deus com quem nos podemos relacionar. É na pessoa de Jesus que Deus se reflecte, pois Ele está em comunhão com o Pai; Ele é «meu Senhor e meu Deus» [João 20, 28].

Essa intimidade, fruto da Encarnação, provém da dinâmica relacional entre aquele que recebe e a Palavra dada (Deus é sempre oferta e Graça). E tal como, antropologicamente, o compromisso com a palavra define o homem, a sua integridade e traços pessoais, a Palavra define Jesus e faz constantemente a afirmação de uma questão angular do quarto evangelho – a Filiação de Jesus. Ser filho implica a natureza, aquela “physis” que é recebida torna-se parte dela – Jesus é de Deus, é Deus. No entanto, afirmar que Jesus é Deus não é afirmar que Ele é o Pai – embora o evangelho seja cristocêntrico, essa distinção é feita na própria definição do Logos: o Pai revela-se no Verbo e o Filho é a concretização sob a vontade do Pai, «o Pai é maior do que eu» [João 14, 28]. A relação entre a questão do Logos e a Filiação é vital na cristologia do quarto evangelho porque identifica Jesus e o distingue. (1)

O início do prólogo do quarto evangelho, “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1,1), é claro e muito directo – significa exatamente o que significa – o Logos é a expressão do Amor que dá forma ao Ser: o Verbo é eterno, é desde sempre e o Ser é iluminado pelo Verbo – o que não é verbalizado não é. Deus É – “EU SOU” (YHWH) – «Este é o meu nome para sempre, o nome pelo qual serei lembrado de geração em geração» [Êxodo 3, 15]; o Verbo é Deus desde o princípio, é por Deus e com Deus. O Ser é o verbo primordial, o eixo da Criação, o verbo “ser”; a partir daí, todas as coisas são através dele.

O Lógos (2) é a fonte da salvação e da comunhão com o Pai, Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida. Na fé não se pode ficar na inércia, na espera de sinais, é necessário um mergulho no interior de nós próprios para desvendar Deus no âmago do ser humano e foi Jesus que foi mais fundo no que significa ser humano. É atrás desse Jesus divino que os apóstolos correm e abandonam tudo procurando penetrar no mistério de Deus, nessa intimidade que traz a vida eterna – é aí que encontram e guardam esse Logos, que semeia e desvenda Deus dentro de cada um deles – pois Jesus é o Deus enviado, o Messias (o Evangelho de João é o único a traduzir este termo na forma grega: Cristo). O nome de Deus revela-se através de Jesus ao identificar-se Ele próprio com o nome de Deus: EU SOU, ao responder no Sinédrio à acusação de se ter afirmado Filho de Deus. Como refere Joaquim Carreira das Neves, «a expressão EU SOU (egô eimi) é típica do Jesus de João. (…) o facto de EU SOU na boca de Jesus revela também o seu ser e natureza divinos. Jesus não diz EU SOU YHWH, mas revela o seu ser divino. A declaração de João 8, 24 é bastante elucidativa: ‘se não acreditardes que EU SOU aquele que afirmo ser, morrereis nos vossos pecados’».

Ao dizer-se “EU SOU”, Jesus assume a natureza divina, mostra-se como um agente do Pai, não só verbalmente mas também activamente, assumindo, de facto, prerrogativas de tal natureza que o texto de João continua a mostrar-nos. Essas prerrogativas têm um carácter de escatologia realizada – os tempos finais de Deus têm lugar em Jesus. Assim acontece com a teologia do juízo divino. Ele assume também as prerrogativas de ressuscitar os mortos. Tem poder sobre o Sábado e, por isso, realiza obras de vida-salvação nesses dias, tal como o Pai. Segundo a ortodoxia bíblica de então, só Deus – mais ninguém – podia julgar os vivos e os mortos no último dia ou no juízo final, ressuscitar os mortos e trabalhar no Sábado. João apresenta Jesus Cristo, o emissário do Pai, com todos estes poderes divinos.

Assim, ao assumir essas prerrogativas, o Jesus de João assume a vontade do Pai e, consequentemente, a sua condição de filho. Tal pretensão é implicante, afirmar o Ser é a máxima verdade verbal, pois o que não é assim não pode ser dito ou subsistir num plano ontológico – nunca se torna.

A partir desta afirmação, a neogénese é preparada e completar-se-á com a Ressurreição; é um momento de ruptura com o mundo hebraico, com a Lei, pois aceitar a Filiação divina é um escândalo: um homem que blasfemasse «o Nome« [Levítico 24, 11-16] seria apedrejado até à morte. Assim, foi criada a superstição de que “o Nome” era demasiado sagrado para estar nos lábios humanos. No entanto, o Senhor não declarou que o Seu nome era impronunciável; apenas especificou que devia ser mantido sagrado – mesmo assim, os hebreus desenvolveram o costume de substituir pela palavra “Senhor” todas as ocorrências do nome “YHWH” na Sagrada Escritura.

Aprouve ao Pai, tendo enviado Jesus ao mundo, que todos os homens «honrassem o Filho como honram o Pai» e que não o fazer era desonrar o próprio Pai [João 5, 23] – a Graça, nessa dinâmica de entrega de Deus ao homem, ultrapassa a Lei – quem não se afirma em Cristo e por Ele no Pai não pode aceder à realidade oferecida da salvação, à interrelação entre o humano e o divino, à vida eterna: a melodia cadenciada do Logos é Graça, movimento descendente, gerador de uma ansiedade de ascensão – a semente torna-se voz interior e a resposta momento de encontro. «Aquele que crê tem a vida eterna» [João 6, 47].

A história da salvação tem dois tempos fundamentais: a) nómos (João 1, 1-12: o Logos como projecto na pré-história da sua revelação); b) gáris (João 1, 12-18: o momento em que o Logos irrompe na História, Ele que estava na intimidade de Deus), o tempo da nova criação. Neste quadro é o Verbo que estabelece a relação entre protologia e soteriologia, pois é nele que ambas se realizam. O Lógos encarnado é o agente transformador do coração humano; é nele que se dá o “Neo Genesis”, o novo princípio, o novo nascimento (ou renascimento) que traz uma nova sensibilidade, marcada por uma nova relação de comunhão.

É por isso que podemos contemplar a glória de Deus (impossível até então). Na verdade, quem vê Cristo vê o Pai. Assim, ligado ao processo de desvelamento (em ambos os tempos, realizado em Cristo) encontramos, no prólogo, três verbos importantes, relativos ao movimento de adesão do crente: a) ver (‘oráuo); b) crer (pesteuo); c) contemplar (théomai). De facto, para João, o crer conduz à contemplação, onde se toca a sensibilidade recriada na qual se sente Deus. Mais do que ver, a fé visa uma contemplação (exprime um envolvimento mais profundo, só por adesão estamos dispostos a contemplar). Neste sentido, a fé recria o homem e é pelo Espírito que ele adere ao mistério de Deus. A quem não estiver absolutamente envolvido pela pessoa de Jesus, no caminho do encontro e da descoberta, como fizeram os apóstolos quando deixaram tudo para O seguir, acontecerá o mesmo que a muitos dos seus compatriotas – não O poderá ver, nem encontrar.

O «homo incurvatus in se» de que fala St. Agostinho, no mau uso da sua liberdade e falsa sensação de autonomia, nega o Ser estruturante, fundamento da própria vida «in ipso enim vivimus et movemur et sumus» (Actos 17, 28), como se nega a si próprio como imagem desse EU SOU, da estruturação ontológica derivada da entrega que Deus faz do Seu nome. Cada ser é uma forma de ser – o Ser contém todas as formas de ser, é nesta perspectiva que Deus pode ser; é pela Graça que somos e, através dela, mostramos que Deus é. A negação desse encontro suscita no homem o pecado original – a separação da essência criadora; a elevação da imperfeição e da contingência da mortalidade sobre a suprema essência vivente: um homem que se pretende ponto ómega elimina o alfa reconstructivo no seu interior e permanecerá num perpétuo estado de imperfeição – um homem como imagem da matéria e não da transcendência.

O amor de Deus concretiza-se na geometria da cruz: a incompreensibilidade forma-se. Cristo é o Homo Dolores, o Cordeiro de Deus solidário com o sofrimento humano. Que Deus se tornaria homem por amor ao homem? A realidade transcendente cumpre-se na revelação da Páscoa – contemplar o mistério de Cristo traduz o Verbo Primordial. Um Deus que sofre ao nosso lado, que suporta o que o homem suporta, é um acto de amor que só um verdadeiro Filho de Deus poderia ter demonstrado, tornando-se, pela fé de quem o descobre, o Cristo Ressuscitado, Deus e Senhor que Tomé saúda na sua epifania (João 20, 28).

(1) Jesus, no evangelho e nas cartas de João, é chamado de “Filho de Deus”, enquanto os cristãos são chamados de “filhos de Deus”. Esta distinção mostra claramente a relação única entre Jesus e o Pai. Em 1, 18 ele é o FILHO ÚNICO (MONOGENÉS, diferente de UNIGENITUS, como é habitualmente traduzido por influência da Vulgata de Jerónimo que traduz por “unigenitus” como resposta a Ario que defendia que Jesus “foi feito” e não “gerado”). NEVES, Joaquim Carreira das, “Escritos de São João”, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2004. p.83
(2) O ambiente semântico desta palavra encontra-se no mundo grego. De facto, em João, é a primeira vez que é usada no NT. No entanto, o seu significado já se encontra na tradição dos LXX, onde o termo dabar (a Palavra) é traduzido 56 vezes por lógos e 147 vezes por rhêma. Os LXX entendiam que o termo dava forma a dois sentidos diversos: um relativo ao Verbo criador; outro relativo à lei. Mesmo a Sabedoria (como atesta a tradição alexandrina) era dita como lógos. Como vemos, o trabalho de elaboração e amadurecimento do sentido do termo já era um empreendimento no seio da própria tradição bíblica. Aqui Jesus é visto como a Palavra portentosa vinda de Deus, capaz de criar e recriar. Se as leis constituíam um caminho para Deus, Jesus concentra em si o sentido profundo da lei, de tal modo que ele surge como o Caminho.

A ilustração que abre o artigo é um trabalho de Dan Hillier.

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