Durante séculos silenciada na sua própria narrativa e transformada num monstro após a sua violação, Medusa tem sido reinterpretada numa perspectiva feminina. Poucos o fizeram de forma tão triunfal como a arte de Peter Paul Rubens ou os Graves At Sea em “Pariah”, um dos mais colossais malhões na história do sludge.
O relato canónico mais influente do mito provém das Metamorfoses de Ovídio, que nos diz que Medusa era sacerdotisa de Atena e uma das três Górgonas, filhas das divindades marinhas Fórcis e Ceto e irmãs das Greias (em algumas tradições também de Ladão). Portanto, todos os irmãos de Medusa eram monstros por nascimento e ela, embora não o fosse, teve a infelicidade de se transformar no mais hediondo de todos eles. Nem sempre foi assim.
Medusa era a única mortal das Górgonas e, também ao contrário das irmãs, era linda. O poeta Ovídio elogia especialmente a glória do seu cabelo, «o mais maravilhoso de todos os seus encantos». É descrita na tradição como vaidosa do seu aspecto físico, mas como uma acólita fiel num virginal templo de Atena. Mais que isso, o seu nome tem uma aproximação etimológica com a palavra grega antiga para “guardião”, assim Medusa era guardiã do templo e da própria virgindade. Contudo, Poseidon, deslumbrado por esta beleza e sem conseguir conquistar o coração de Medusa, violou-a no templo e aí a engravidou.
Enraivecida pela profanação do seu altar, a deusa virgem transformou o cabelo encantador da Medusa num ninho de serpentes, fazendo-lhe crescer uma presa (como a de um javali) e uma enorme língua que sibilava entre a irregular dentição. O seu rosto tornou-se tão hediondo e o seu olhar tão penetrante que a simples visão dela era suficiente para transformar um homem em pedra. Após esta brutal punição da vítima, os tormentos de Medusa prosseguiram. É aqui que a Górgona entra na bem conhecida saga de Perseu, com o final que todos conhecem em certa medida.
Mas há fragmentos peculiares da sua biografia que são póstumos. Estando grávida quando foi brutalmente assassinada pelo herói clássico, após a decapitação os seus dois filhos surgiram do seu pescoço. São eles o cavalo alado Pégaso e Crisaor, em algumas tradições um horrendo javali alado e noutra um belo guerreiro gigante, nascido a empunhar uma espada dourada. Despertas pela comoção, as Górgonas acordaram e procuraram vingar a irmã, mas não puderam encontrar Perseu que envergava o Manto de Invisibilidade de Hades e assim, regressaram ao seu covil chorando profundamente a morte de Medusa. O poeta Píndaro diz-nos que, ao ouvir o seu lamento sombrio, Athena ficou de tal forma emocionada que modelou a partir dele a música lúgubre do aulo ou tíbia.
Depois de escapar com a cabeça de Medusa, Perseu sobrevoou a Líbia. Nesse momento gotas de sangue da Gorgóna caíram no solo e instantaneamente transformaram-se em cobras. Por isto, até aos nossos dias, as serpentes abundam nesse país, diz-se. Quando, no final dos seus trabalhos, Perseu deu a cabeça de Medusa a Atena, esta recolheu o sangue que restava e ofereceu-o a Asclépio. O deus da Medicina usou o sangue esquerdo para exterminar a vida das pessoas e o sangue direito para as resgatar da morte. O restante sangue de Medusa, duas gostas recolhidas num frasco, foi oferecido a Erictónio, o primeiro Basileu de Atenas. O poeta Eurípides refere que uma gota curaria qualquer enfermidade e a outra era um veneno mortal.
Durante séculos, a nossa visão de alguns dos arquétipos femininos mais importantes da civilização tem sido moldada por autores e vozes masculinas e só assim se entende o brutal julgamento de Medusa. Em nenhum momento desta história podemos ouvir as experiências ou sofrimentos da Medusa narrados através da sua própria voz ou pelo seu próprio ponto de vista. Pelo contrário, a narrativa enfatiza o papel da Medusa como um objecto de cobiça e um prémio a ser reclamado, um símbolo dos triunfos heróicos de Perseu.
A sua trágica história é contada através de Perseu (Met. 4.793-803), que a menciona como um facto interessante para lhe acrescentar renome ao tê-la derrotado: uma «coisa digna de narrar», chama-lhe ele, e a ênfase está na sua beleza apenas – nada do seu sofrimento. Portanto, a versão mais conhecida do mito da Medusa silencia a sua voz e retira-a da sua própria narrativa, que é contada pelo seu assassino.

Muitos artistas pós-clássicos que responderam ao mito concentram-se nos mesmos aspectos de Medusa que Ovídio. Revelada em Florença em 1554, a famosa escultura de Benvenuto Cellini retrata Perseus triunfalmente de pé sobre o corpo da Medusa, enquanto segura a sua cabeça. Outros enfatizam a utilização da cabeça da Medusa como terrífica uma arma destrutiva. Diz-se que Atena prendeu a cabeça da Medusa ao seu escudo para aterrorizar os seus inimigos (Met. 4.802-3).
Em resultado disso, Caravaggio colocou a sua pintura da Medusa de 1598 num escudo, actualmente na galeria Uffizi. Os frescos de Annibale Carracci de 1597, no Palazzo Farnese, em Roma, retratam e insistem nas cenas das Metamorfoses de Ovídio em que Perseu mata Medusa e derrota os seus inimigos com a cabeça da Gorgóna.
A Nova Perspectiva de Peter Paul Rubens
Em contraste com outros artistas, a interpretação do mito por Peter Paul Rubens desloca a ênfase da narrativa. Nada nos é mostrado do triunfante Perseu, apesar de sabermos pelo mito que ele acabou de matar Medusa e que está ali mesmo. Ao contrário de Ovídio, Rubens remove Perseu da sua versão da narrativa e concentra-se nas experiências da Medusa. Ficamos cara a cara com a própria Medusa, aparentemente sozinhos na escuridão, enquanto ela está ali a morrer.

Rubens repulsa-nos com esta grotesca representação de serpentes contorcidas e o pescoço decapitado da Medusa a derramar sangue, mas ao mesmo tempo ficamos transfixados pela intensa vividez da cena e pelos seus pungentes detalhes. Ficamos também comovidos pelo sofrimento da Medusa, ao olharmos para a beleza do rosto da mulher, contorcida com a dor nos últimos momentos da sua vida. Como resultado, o nosso encontro com esta obra produz sentimentos de repugnância que são perturbados ou misturados com um instinto humanizador que nos guia a ver a Medusa como uma figura simpática, em vez de um rosto horrível que faz o espectador petrificar.
Podemos ficar momentaneamente enojados com o sangue ou com as cobras. No entanto, não temos qualquer noção de Medusa como uma ameaça monstruosa, pois ela já está a morrer e a desvanecer-se. Nem testemunhamos a capacidade destrutiva do seu terrível vislumbre de transformar os inimigos de Perseu em pedra – Perseu e as suas heróicas façanhas estão longe das nossas mentes neste momento. Pelo contrário, o que se destaca entre os detalhes horríveis é o rosto muito humano da Medusa em toda a sua dor e medo. A compaixão que sentimos por ela enquanto contemplamos o seu sofrimento pede-nos para reflectir sobre a sua perspectiva: a de uma vítima de agressão sexual, culpada por ter sido atacada, que é transformada num monstro, e depois morta por um homem que procede à sua utilização como objecto ou ferramenta para fazer avançar as suas próprias façanhas.
Triunfal
No final, somos forçados a reconhecer que o verdadeiro horror não é a massa de cobras que cai da sua cabeça, mas sim a tragédia de Medusa destruída por forças fora do seu controlo. A narrativa básica permanece a mesma, mas a versão de Rubens da história faz-nos mudar de perspectiva e abre a sugestão de um ponto de vista que até aí era pária. É esse o ponto de contacto com os Graves At Sea e a esmagadora “Pariah”, cujo riff central é tão colossal que vale pela discografia inteira de muitas bandas.
Editado num split com os Asunder, “Pariah” foca-se no sagrado feminino e usa como referência Medusa e as Górgonas para invocar a soberana sabedoria feminina, nos ciclos de morte e renascimento que são consumados no mito de Medusa, da sua dor e fertilidade, advindas de um acto vil, mas capazes de transformação e cura, por via do seu sangue que destrói e reconstrói. Da escuridão uterina para a luminosidade dos ciclos lunares e solares. Em “Pariah”, Medusa é triunfal. Essa sua reabilitação é uma das grandes conquistas da reinterpretação dos textos clássicos.
Um pensamento sobre “A Triunfal Reinterpretação de Medusa”